sábado, 28 de agosto de 2010

O GALO



Você já foi à Bahia? Não? Então vá.

De preferência, buscando ajuda no Senhor do Bonfim. Guardo a experiência como se tivesse acontecido hoje. Foram quinze dias particularmente interessantes em minha vida, no que se refere ao contato com energias desconhecidas.

Tudo porque eu precisava vender uma casa que havia comprado, no Humaitá, por sonho de meu ex-marido, em conseqüência de uma herança do meu pai. Uma casa em condomínio, na qual vivi por um ano, dez meses, vinte e um dias e nove horas. Pelo contar do tempo, você pode imaginar a alegria intensa que senti ao voltar para meu querido apartamento de Copacabana. É que o condomínio era do tipo “ame-o ou deixe-o”. E eu deixaria meu ex-marido na época, se dependesse disso para sair de lá. Sério.

Para quem conhece o IBAM, no Humaitá, o condomínio fica por trás, trepado morro acima, cinco casas por andar, umas grudadas nas outras. Sem nenhuma privacidade. Nenhuma!!! Eu ouvia tocar a campainha do telefone do meu vizinho e, naturalmente, todo o barulho e o som escandalosamente alto dos aparelhos de som de seus filhos adolescentes, mesmo no decorrer da noite. É preciso acrescentar que tinha de dar exatamente para o meu quarto de dormir. A varanda deles dava para este mesmo quarto, suportando as festas de todos os sábados, até as altas da madrugada, ou melhor, por que não dizer... manhã? E reclamar era completamente inócuo. Não fazia efeito algum. O jeito seria esperar que crescessem, mas pela idade deles, na época, levaria séculos de minha felicidade e ânsia por sossego. Não tinha como me concentrar para estudar, base de minha vida acadêmica. Mas isso nem era o pior! Tinha aquele cheiro de churrasco e cerveja invadindo minhas narinas todos os domingos... e um elevador, em plano inclinado, que funcionava vez por outra. E eu morava no último andar e como as casas tinham dois andares, décimo primeiro andar significava o dobro para quem sobe pelas escadas. Havia quem adorasse. Não eu, com certeza, pois não tinha a opção de ficar em casa: eu trabalhava e tinha de enfrentar as escadas, quer chovesse, quer fizesse sol...

Também não havia muita intimidade. Os vizinhos me visitavam, melhor, me invadiam, por mais reservada que eu “tentasse” ser - lá isso não funcionava, a não ser que eu resolvesse ser, literalmente, grosseira, o que não faz parte do meu temperamento. Não conseguiam se perguntar se eram bem-vindos, ao simples cheiro de um café gostoso que, modéstia à parte, sei fazer muito bem.

Meu ex-marido adorava o lugar. Como viajava muito, curtia os poucos dias que esta casa de suposto veraneio poderia lhe proporcionar. Eu, que ficava ali direto e só saía para trabalhar, fiquei com a parte pesada: a obra da casa, que durou um ano e quase meio e o resto do convívio. Não consegui acabar de escrever um dos meus livros acadêmicos, embora faltasse apenas o último capítulo e a conclusão. Não tinha como, no meio de um bulício e uma agitação constante, da invasão de minha privacidade, nas horas mais impróprias, e, principalmente, do barulho infernal dos vizinhos de baixo.

Também não conseguia ver meus amigos, em minha casa, com a mesma privacidade de sempre. Minhas visitas, desnecessário dizer, combinam com o meu perfil e não achavam muita graça em virem me visitar e não poderem usufruir da minha companhia, senão com o compartilhamento desnecessário de convivas que não eram convidados por mim. Apenas passavam pelo jardim e entravam, convidando-se eles mesmos a serem apresentados e a participarem de conversas que deixavam de ser privadas, naturalmente. Com isso, deixei de receber minhas visitas queridas, como acontecia no meu apto de Copacabana. Pediam desculpas, eram sinceros ao dizerem os motivos de seu afastamento e, simplesmente, desapareciam. Não os condeno. Eu teria feito o mesmo. Caramba, onde fora atracar o meu belo e tranquilo barco...

De veraneio, aquela casa só tinha a aparência para mim. E também não podia chover. O subsolo inundava por uma infiltração vinda direta do morro, por dentro do solo, o que dava a impressão de que a casa poderia despencar morro abaixo, a qualquer instante, problema que só resolvi com uma obra monumental nos oito últimos meses.

Comprar um jornal era uma excursão. Descer pelo plano inclinado (como chamavam aquela “espécie de elevador”), andar três quadras em busca da primeira banca. A padaria? Que padaria? Naquela época, por ali, nenhuma. Farmácia idem. Supermercado, só de carro. Sem contar com subir com as sacolas, em dia de greve de elevador. Mais comentários?

Havia as orquídeas enfeitando o quintal, que eram cultivadas com muito carinho. Tinham vindo do apto de Copacabana onde a coleção chegara a vinte vasos, com floradas todos os anos. Adoraram o quintal ensolarado. Essa era a parte boa. Também havia os pássaros, com seu canto sonoro e sempre primaveril, fosse qual fosse a estação do ano. Eu podia tomar sol como num campo naturalista, quando conseguia fazer minha presença despercebida de meus vizinhos, o que exigia uma estratégia particular ardilosamente arquitetada, é claro. Também resolvi um problema de dor no joelho direito, conseqüência dos tempos em que jogava vôlei no time do colégio. De tanto subir aquelas escadas de inumeráveis degraus, consegui musculatura suficiente para mantê-lo saudável. Gostava de respirar o ar da montanha que ficava logo atrás de mim. A vista das árvores lembrariam repouso, não fosse o constante barulho dos já citados vizinhos de baixo...

Desfiadas as principais razões, voltei radiante para o apartamento de Copacabana, que felizmente não tinha vendido. As orquídeas vieram também e acho que também muito contentes, diante das alegrias de sua dona. Morara naquela rua desde 1973 e é onde estou até hoje, fora esse intervalo de pesadelos. A vida em Copacabana só me inspira boas lembranças. O apartamento é uma graça, com sol pela manhã, lua à noite, sossego de rua meio afastada, com beija-flores na janela (imagine!!!) e tudo à mão, bastando andar uma quadra: farmácia 24 horas, padarias e mercados à disposição.

Dizem que quem compra um barco tem duas alegrias: uma quando compra e outra quando vende. Era o mesmo, com aquela casa. Só que eu não conseguia vendê-la de jeito nenhum!

Mas tudo tem seu tempo e agradeço por isso! Ficou empacada, dando despesas de impostos e manutenção de 1989 a 1993.

Em 1993 precisávamos vendê-la de qualquer jeito, pois o divórcio veio à tona e tínhamos de dividir os bens. Aí é que dou graças à vida. Se não tivesse ficado empacada, talvez o dinheiro tivesse ido embora e eu não teria, então, como negociar os bens. Como disse, tudo tem seu tempo. Só que... continuava lá, grudada, sem sair do meu pé... sem compradores.

Foi então que uma amiga me recomendou ir ao Bonfim. Olhei-a meio crédula, meio incrédula, mas o desespero me convenceu. Segui à risca a receita dada: saia do Rio direto para Salvador, numa sexta-feira, passe pelo mercado modelo, compre flores brancas, vá direto ao Bonfim, acenda uma vela, procure uma das senhoras que cuidam da igreja, peça um vaso, arrume as flores, peça que ela as coloque no altar. Vá a um dos bancos, faça seu pedido e volte direto para o Rio. Nada de passear.

Saí daqui bem cedo na manhã de uma sexta, como mandava o figurino, cheguei ao aeroporto de Salvador, peguei um taxi que me esperou comprar as flores e fui direto para a igreja. Acendi as velas, e busquei uma das tais senhoras. Encontrei imediatamente uma e fiz o meu pedido. Ela gentilmente me trouxe um vaso, no qual arrumei as flores e, como dizia a receita, pedi que ela o colocasse no altar.

É aí que começa a história do galo. A senhora me olhou com um sorriso acolhedor e me perguntou se eu mesma não gostaria de colocar as flores no altar.

- Claro, se me for permitido.

Ela me conduziu ao altar, indicou o lugar onde deveria colocar o vaso e me perguntou:

- Gostaria de ver o sacrário por dentro?

Eu não tinha nenhum interesse em ver sacrário algum por dentro, mas, para retribuir tanta delicadeza, não pude recusar. Ele me instruiu a esperar ali no altar mesmo, enquanto iria buscar a chave. Demorou um pouco e voltou com uma daquelas chaves antiqüíssimas, do tempo do império, enrolada numa corrente meio fina. Entregou-me a chave enrolada e disse:

- Enquanto desenrola a chave, faça o seu pedido.

Será que a mulher lia pensamentos? Pois não é que era justamente da chave de uma casa que eu queria me livrar? Não discuti. Sem fazer nenhum comentário, desenrolei a chave devagar, contrita em meus pensamentos. Finalmente, entreguei a chave à senhora que, sorrindo, me disse.

- Bem, já que estamos aqui, vamos ver o sacrário.


Com esta frase, ficou claro para mim que a visita ao sacrário era apenas uma formalidade. O importante ela já tinha feito, que era me oferecer a oportunidade de “desenrolar a chave”!

Vimos o sacrário e depois de agradecer-lhe, estava pronta para me despedir. Foi quando ela, sempre muito simpática e acolhedora, me disse:

- Uma parte foi feita. Mas é preciso completá-la. Há alguém que trabalha com você que sabe o que deve ser feito a seguir. Pergunte a ela e terá a orientação necessária. Ela também poderá ajudá-la a completar o que falta.

Pelos deuses! Eu não havia dito nada àquela mulher! Como saberia de meus desesperos? Olhei aquele sorriso franco, acolhedor e, sobretudo, sábio. Agradeci sinceramente e voltei direto para o Rio, como mandava a receita. Alguém que trabalha comigo? Que alguém? Onde? Caramba, como achá-la? Na Universidade onde dava aula? Passaram-se os dias. Numa sexta (numa sexta de novo!) dia de minha faxineira, me lembrei que ela era chegada a esses cultos. Resolvi, ainda que discretamente, comentar sobre o assunto. Ela sorriu como quem sabia o que estava acontecendo (ou teria sido só impressão?) e me disse que perguntaria a seu conselheiro espiritual. Na outra sexta, veio com a resposta: ele disse que sabia, sim, o que deveria ser feito e já tinha trazido uma lista com as coisas para comprar: uma casa de cera em miniatura, chave idem e mais um monte de coisas como velas e outros apetrechos dos quais tenho pouca lembrança, mas que me pareceram bem cerimoniais.

- Ok, e o que faremos com isso?

- Vamos fazer uma oferenda num lugar que indicarei à senhora. Já que a senhora mora na zona sul e o lugar tem de ser tranqüilo, podemos ir à Barra da Tijuca. Chegando lá, saberei achar o lugar.


Não sei por que, minha intuição perguntou:

- E, depois de vendida a casa, o que terei de fazer?

Mostrou-me outra lista, para agradecimento, incluindo um galo vivo. Intui que seria sacrificado. Nada feito. Matar bichos não. Definitivamente, agradecia muito, mas dava o caso por encerrado. Pedi que agradecesse sincera e fervorosamente ao seu consultor espiritual, mas que não poderia fazê-lo. Ela disse que voltaria a falar com ele. Uma semana depois, voltou com o recado:

- Ele disse que não tem importância. O galo não precisa morrer, podemos entregá-lo vivo.

- Tem certeza?

- Pode confiar.

- Então tá. Já que estou no barco e não tem bicho morto, vamos em frente.


Comprei a lista inicial e, na outra semana embicamos para a Barra. Em 1993, não tão povoada quanto hoje. Achar uma rua tranqüila, vulgo encruzilhada, foi fácil. Ali ela depositou as oferendas, tomando o cuidado de colocar tudo num arranjo bem interessante, inclusive as comidas. Minha função era apenas estar presente. Eu não precisava pedir nada, segundo ela. “Ele” já sabia de tudo.

Estava eu, ali, peça do sincretismo brasileiro. Respeitosa, disciplinada, confesso que um pouco perplexa, mas contrita.

Desnecessário dizer que vendi a casa em torno de quinze dias. Sem problemas, à vista, pelo preço pedido, sem pechinchas. Num relâmpago. A família mora lá até hoje e simplesmente adora o lugar. Incrível.

Hora de agradecer e comprei toda a lista necessária. Menos o galo. Tinha de ser um galo especial que só minha faxineira sabia onde vendia. Trouxe na véspera do dia da oferenda para que ficasse aqui em casa. Que animal. Lindo! Porte de rei, empinado, garboso. Se eu fosse galinha...

Servi sua majestade com grãos que vieram junto e ele ficou em minha área de serviço até o dia seguinte, sem dar trabalho algum. Também não precisei dar muitas explicações ao meu então marido, pois sua mãe também era chegada a essas coisas (nunca me aprofundei muito em até que ponto) e ele não comentou nada.

Manhã cedo, acomodei as oferendas e o galo, este cuidadosamente embrulhado em jornal para não se debater no carro e seguimos em direção à Barra da Tijuca.

- Ok, perguntei, para onde vamos?

- Para o mesmo lugar, disse a faxineira.

- Mesmo lugar? Como assim? Você não disse que teria de ser o mesmo lugar!!! Eu não sei voltar lá!!!

- Ah, patroa... tem de ser no mesmo lugar!


E agora??? Desespero interno, meu coração aos pulos. Não sei por que sussurrei:

- Só se o galo nos ensinar, ora essa...

Do banco de trás, o galo, que estivera mudíssimo até então soltou um “coc”. Achei estranho e segui em frente. Vou tentar lembrar mais ou menos onde foi e o resto é contar com a memória, nem que a gente fique aqui o dia todo, pensei. Dei a volta por baixo de uma ponte (disso eu me lembrava) e peguei uma das pequenas ruas vicinais. Quando me aproximei de uma esquina, o galo, de novo: “coc”. Um só, como o primeiro. Instintivamente, virei. Dirigi passando por um ou duas quadras e, de novo: “coc”. Virei. Para resumir, os “cocs” me guiaram exatamente ao ponto das oferendas da primeira vez. Sozinha, tenho certeza, eu não o teria encontrado com tanta facilidade, enfiado que era, no meio daquele fim de mundo dos meus deuses! Minha faxineira achando tudo natural. Eu, divina e silenciosamente perplexa!

Descemos, peguei o galo com carinho. Suas penas (plumas?), suaves ao toque, enfeitavam a sua altivez. Deveria segurá-lo, enquanto ela preparava as oferendas, muito ou mais bonitas do que da primeira vez. E o galo? Seria o último. Finalmente, com tudo pronto, deveria depositar o galo ali. E, como mandava o ritual (tinha sido assim, também da primeira vez), sairmos sem olhar para trás, pegarmos o carro e irmos embora. Minha faxineira o fez, sem a menor hesitação. Eu, no entanto, à medida que me afastava, tinha ímpetos de olhar para trás, como a mulher de Ló, no episódio bíblico de Sodoma e Gomorra. Mas não o fiz. Obedeci à ordem do misterioso e do místico. Afastei-me do local deixando para trás o farfalhar forte, garboso e incessante das asas de sua majestade.

Sem saber como, envolvida que fui desde minha ida ao Bonfim, vivi a certeza de que mistérios como esses existem... e desafiam a nossa razão.

4 comentários:

Celina disse...

Eulalia, seu blog pode virar livro. Eu simplesmente adoro seu jeito de escrever, parece uma coreografia. E que estória essa, hein?! Senhor do Bonfim tem poder tem.
bjs

Eulalia disse...

OI, querida, obrigada pelo comentário...
Por enquanto, estou me divertindo com escrever... quem sabe, se der samba, um dia... (rs)

Daniel Gnattali disse...

Oi Eulália! Nem me fale! Acabamos de nos livrar da pior vizinha do mundo! Mas fora isso, aqui é o nosso lar querido :) E uma boa notícia: os elevadores funcionam! Só continuam lentos, mas a paciência é uma virtude né? beijos!

Anônimo disse...

Por falar em vizinhos, os meus não devem estar nada satisfeitos com as minhas gargalhadas gostosíssimas, ao lado da janela, em plena madrugada...
Muito bom, querida! Adoro o seu texto, seu jeito de contar.
Beijos