sábado, 3 de abril de 2010

GOLPE DE MESTRE


Tudo começou quando vi o filme “Golpe de mestre”. Era bem moça e saí com aquele espírito aventureiro. Naquele momento, desejei ardentemente viver uma aventura assim, desde que me saísse como heroína da história, evidentemente. Eu não tinha os personagens, nem os fatos... mas tinha a essência: o suspense, o drama!

Levou anos para acontecer, como se um anjo estivesse bordando o roteiro, juntando os atores, enfeitando os detalhes.

Fins de janeiro de 1985: recebi um telefonema de uma vizinha de meu pai, de Braga, Portugal:

- Acho melhor você estar aqui, pois seu primo Manuel fugiu com todos os pertences de valor de seu pai, inclusive as carteiras de contas bancárias. Seu pai está mal, sem sair da cama, não entende bem as coisas e quem está cuidando de tudo, inclusive da prisão do Manuel, são uns os primos de Braga, que a menina não conhece.

Primo Manuel fugiu com tudo de valor de meu pai? O primo, em quem ponho toda a minha complacência, que me carregou no colo quando eu era pequenina, que não podia me ver sem que as lágrimas do carinho e da gratidão aos anjos do céu por ter me conhecido deixassem de escorrer pelas faces rudes de sua alma campesina? Não, não o primo Manuel, procurado pela polícia, foragido, enquanto meu pai estava entregue a uns primos dos quais nunca tinha ouvido falar. Muito, muito estranho.

Quando estive pela última vez em Portugal, em 1983, meu pai tinha me convidado para ficar definitivamente morando lá, cuidando da Quinta. Ah... a Quinta de San Martinho de Dume, o melhor vinho-verde que já provei na vida... mas isso é outra história, que talvez eu conte depois. O que vem ao fato é que, se lá ficasse, teria de abandonar uma carreira em ascensão, a um ano da defesa de tese do doutoramento, professora universitária no Brasil e um mundo de livros pela frente. Não aceitei. Ele, previdente, vendeu a Quinta, os pertences imóveis, cuidou para que tudo estivesse pronto para sua velhice e abençoou meu futuro - muito a contragosto, diga-se de passagem, mas abençoou.

Naquela altura (como dizem os portugueses), pedi a Manuel, afilhado de meu pai e meu primo querido, que cuidasse dele para mim. Pelo que eu sabia, quando meu pai adoecia, o fiel escudeiro deixava sua casa em Vila Verde (mulher, filhos, cabritos, parreiras, oliveiras e o escambau...) para dormir no chão, ao lado da cama de meu pai, fiel ao compromisso firmado comigo. Ué... o que aconteceu? Só indo lá para ver.

Estava pronto o roteiro, o script, o presente pedido ao mundo da aventura e eu nem tinha me dado conta ainda... santo anjo do senhor...

Em tempo, tinha pedido a meu pai que não tivesse nenhum piti (pelos deuses!) no inverno. Quem me conhece, sabe que coloco um casaco, mal o termômetro aponta os 20 graus. Pois então... amigos em alerta para me emprestarem roupas para o inverno europeu. Destaco uma roupa para esquiar, toda em vermelho, acolchoada, que coloquei na mala, por via das dúvidas. Não podia me imaginar andando pelas ruas de Braga, com roupa de esquiar totalmente vermelha, há quase trinta anos atrás, quando a cidade era praticamente um vilarejo, perto da modernidade de hoje. Mas o medo do frio era tão grande que a coloquei lá, no fundo da mala. Mal sabia eu que se transformaria no meu uniforme diário, tal o frio que fez em Portugal naquele ano...

Mas vamos aos fatos: passagem em punho, aterrei no Porto alguns dias depois e, como conhecia bem aqueles caminhos, não tive problema algum para chegar a Braga, num taxi de 40 minutos. Entrando em casa, fui direto ao encontro de meu pai, passando quase sem perceber por duas adolescentes, que, pouco depois, soube serem as meninas encarregadas pelos primos bracarenses de cuidar de suas necessidades.

Cuidar de suas necessidades? Se eu não fosse uma pessoa muito educada, criada em colégio de freiras, diria “puta que o pariu” (que aliás, deveria deixar de ser um impropério, já que virou nome de um bairro na cidade Bela Vista de Minas. Mas voltemos ao texto). Meu pai estava num pequeno quarto do primeiro andar (o seu tinha pegado fogo – conto detalhes, depois), semi-consciente. Na verdade, prefiro dizer semi-inconsciente - um melindre lingüístico, mas que, para mim, faz toda a diferença. Ao meu ver, disse:

- E você veio no inverno, não é minha filha?

E logo depois, perdeu o rumo da prosa, falando coisas desconexas.

O quarto cheirava mal, muito mal... quem leu o Cortiço, de Aluisio de Azevedo, sabe do que estou falando. Quem não leu, imagine o que quiser. Algo assim bem patético e horripilante fica perto da verdade. Magérrimo, totalmente sujo, pois as donzelas, é claro, não cuidavam de sua limpeza corporal, apenas o alimentavam, segundo me disseram. Eram meninas e ele homem, “estás a saber?” O que ele come? Uma sopa. Uma sopa que eu vi: de couve, só couve... talvez boiassem umas batatas. Há quantos dias, não sabia. O que eu conseguia ver era algo como um pedacinho de ser, jogado na cama. A primeira coisa que fiz, foi chamar um médico, vasculhando a carteira de endereços de meu pai. Depois eu soube que quem escolhi era mais um daqueles médicos com quem ele já havia brigado e, turrão como sempre fora, não teria tomado remédio algum. Mas isso não importou à ética médica, pois ele nem comentou o fato, apenas disse que estava a caminho... e chegou rapidíssimo. Deve ter sido pelo tom da minha voz. Santo médico. Eu estava tão sob choque que nem lhe pedi desculpas pelo estado de meu pai, por não ter tido tempo de fazer a higiene de praxe. Era fácil perceber a urgência de minha solicitação, roupa de viagem e mala ainda abandonada na sala de entrada. Acho que o médico entendeu e, se não entendeu na hora, entendeu à noite, quando meu pai já estava todo cheirosinho. O fato é que eu estava com medo que meu pai morresse a qualquer minuto, tal o estado em que se achava. Mas, como diz o povo, vaso ruim não quebra. E não foi mesmo daquela vez. O diagnóstico foi simples: completamente desidratado com necessidades básicas de atendimento caseiro, sem nenhuma infecção ou inflamação. Traduzindo: abandono e maus tratos. Agradeci ao médico como quem agradece a um deus e ele prometeu voltar à noite.

A sessão limpeza, para vocês terem uma idéia, incluiu uma tesourinha para cortar os pelos íntimos, para, só então, conseguir lavar a região, tal era a situação que o abandono havia alcançado por ali. Trocar os lençóis sujos de tudo que se pode imaginar, desde restos de comida, como outros tipos de restos, foi fácil, pois eu consegui levantar meu pai no colo (eu, pesando apenas 44 quilos na época, levantando, sem sacrifício, meu pai que deveria estar pesando menos, provavelmente...). Enfim, coloquei o velhinho cheirando como um bebê, barba feita, roupas limpas e com uma sopa decente no estômago. A cabeça continuava pirada, falando coisas que nem Deus entendia. Mas reclamava pela prisão de Manuel, queria vê-lo atrás das grades, era o que pedia, entre as poucas coisas que a consciência deixava escapar. Que coisa incrível... e eu nem podia questioná-lo, pois ele não sabia me contar o que tinha acontecido.

Mal fiz tudo isso, quando pensava em atender a minhas necessidades básicas, de quem acaba de chegar de uma viagem de mais de 10 horas, recebo o seguinte telefonema:

- Priminha, sou eu, Manuel, estou sendo procurado pela polícia. Preciso falar com a prima, com urgência, mas cuide de não ser seguida. Encontre-me amanhã, às 10. Saia de casa, tome a direita, siga pela segunda à direita até o final, vire à esquerda e encontrará um bar, com um homem de chapéu preto, à porta. Ele estará a conduzi-la. Cuide de não ser seguida, não quero ser preso. Preciso de sua ajuda. Tenho os primos de Braga e a polícia a minha busca. Não confie nas meninas que aí estão, pois são da confiança deles. Estou nas mãos da prima.

Tudo isso, evidentemente, falado em português do norte, ao desespero. Mas o amor, a angústia, a ansiedade intuíram o conteúdo da mensagem e, principalmente, o roteiro traçado. Ok, pensei, peguei o fio da meada. Menos mal. Como o primo sabia que eu chegara? Com certeza, sozinho de todo não estaria, pois eu mal chegara e nem vira os tais primos bracarenses e ele já chegara a mim, em primeiro lugar.

Colocar o telefone no gancho e perceber que aí estava a minha aventura, a tal aventura pedida há muitos anos atrás, foi uma questão de segundos. Não sei se agradeci, sei que um frio geladérrimo subiu de pronto pela minha coluna, alcançando o âmago do meu estômago. Liguei o estado de alerta. A gente tem um on-off não sei onde, mas tem. E uma consciência de que eu não poderia errar o roteiro da empreitada se apossou de mim. Não tinha recebido o script, mas intuí, imediatamente, que eu era a peça central da trama. Tal como havia pedido. Não fosse trágico, seria sublime... mas era trágico: a máfia existia e o cheiro de podre que eu expulsara do quarto de meu pai, tomava um outro espaço, mais pontual e consistente. Como no filme, havia pessoas em perigo. E estava tudo em minhas mãos, como um ponto-chave de tudo. Isso explicava o frio geladérrimo, o medo e, também, a coragem.

Mais meia hora, quando ensaiava tomar um banho e entrar no meu quarto, a campainha toca e entram pela minha porta os gentis e solícitos primos que eu nunca tinha visto... e olha que conhecia um bocado de minha família por lá, nas não poucas idas a visitas a meu pai. Onde esses tais tinham se metido até então? O fato é que contaram uma novela de traições e desenganos, de heroísmos jamais vistos, na defesa de meu pai. Muito esquisito... mas eu não tinha dados para duvidar de ninguém.

Como entraram, saíram, colocando-se à disposição de tudo e de todos, dizendo que eu poderia ficar tranqüila, pois estariam ali, para cuidarem de tudo, tão logo eu os ajudasse a prender o tal Manuel e ter a documentação perdida de volta e todos os preciosos pertences que ele roubara. Que eu ficasse tranqüila, no Brasil, que, daí por diante, cuidariam de tudo.

Com salamaleques que eu nunca tinha recebido em corte alguma, se despediram de mim, como quem se despede de uma princesa, dizendo-se valentes como os mosqueteiros do rei (eram três por sinal: pai e dois filhos).

Isto posto, finalmente, subi ao meu quarto, vistoriei a casa: o quarto de meu pai, colado ao meu, totalmente destruído. O que acontecera? Pegou fogo, informaram as adolescentes. O cobertor elétrico pegou fogo durante uma noite daquelas e, por milagre, meu pai, embora já meio inconsciente saira nu do quarto salvando-se. Eita portuguesinho danado... os bombeiros foram chamados e, felizmente, o fogo não afetou o resto da casa.

Entrei no quarto como um detetive... mas as paredes não me disseram nada.

De brinde, o fogo tinha afetado o aquecimento central da casa. Apenas três cômodos tinham aquecimento: meu quarto (os deuses existem...), o que meu pai estava e a cozinha (onde as meninas passaram a dormir). Rodei pela casa tentando ver não sei o quê. Resolvi assuntar a cidade e me preparei para sair. Não havia mais nada a fazer até as 10 horas da manhã do dia seguinte... um século. E quem conseguia se deitar para descansar? Eu estava literalmente ligada na tomada e a minha luz “on” piscava em vermelho sem parar. Me vesti e saí. Um pé fora e outro dentro: frio de rachar. Não tinha jeito... se quisesse sair tinha de ser mesmo com a roupa de esquiar. E foi o que fiz. Braga que se danasse, o meu corpo pedia aquecimento. Me convenci psicologicamente de que estava vestida como qualquer outro ser vivente e fui em frente. Ignorei os olhares da cidade sobre este ponto vermelho andando pelas ruas. Imaginem uma cidade do tamanho de Copacabana, com muito menos habitantes, onde quase todos se conhecem e uma estranha, com sotaque de brasileira entrando e saindo dos lugares, com aquela roupa de Alpes Suiços. Aluguei um carro. Sabia que iria precisar de um. Meu pai, entre os pertences, havia vendido o dele.

Aliás, o aluguel do carro é uma novela à parte e vale a pena ser contada. Primeiro, que eu nunca tinha dirigido aquela marca. Mas era o que melhor tinha de aquecimento disponível. Uma aulinha rápida para os comandos principais foi, por si, uma aula de lingüística. O ponto morto arrancou risos ininterruptos do dono da loja. Claro, por lá se denomina ponto zero. Marcha ré, com certeza deve ser um palavrão, pois ele me olhou com cara de parede. Para andar para trás, nada mais justo do que a marcha atrás. Muito lógico. Onde se liga o aquecimento e lá vamos nós. A distância entre o centro da cidade e minha casa era de dois quilômetros, no máximo. O problema era apenas entender o trânsito. O dono da loja, muito gentil, me explicou o intrincado roteiro para ir da Praça Central à Av. da Imaculada Conceição.

Já perguntou a um português como se vai a algum lugar? Se perguntou, sabe o que passei. Se não perguntou não morra sem ir a Portugal, só para passar por essa experiência. Para encurtar a prosa, fiz tudo exatamente como ele mandou e fui parar exatamente no mesmo lugar: em frente à loja. Ele saiu de lá pensando que havia algo errado com o carro. Não. Não havia. Havia algo de muito errado com uma brasileira tentando entender a lógica portuguesa. Ouvi todo o manual de explicações e deu no mesmo: acabei em frente à loja de novo, só que, desta vez, não parei. Não sei se de vergonha ou de irritação. Perguntaria a outra pessoa, mas foi necessário mais de uma e... a cada vez que parava para perguntar a um transeunte, abria o vidro da janela e o carro se enchia de ar gelado. Há quem possa? Fiz isso algumas vezes, sem sucesso... não dava em lugar algum. Saira da loja às 17horas e já eram quase 18. Restava uma saída drástica: seguir as setas para a cidade do Porto, pois, vindo do Porto, eu sabia chegar em casa. Pode isso? Pode. Quando você se sente falando a mesma língua como se falasse uma língua estrangeira, tudo é válido. E lá fui eu para o Porto, em busca do primeiro retorno. Retorno, o que é isso? Para que precisam eles de um retorno na estrada? Provavelmente, como as cidades quase se encostam umas nas outras, bastaria entrar numa vila daquelas para fazer o retorno lá por dentro. E eu iria me expor a entrar em alguma outra arapuca de cidade àquela altura para pedir qualquer informação, de novo? Nada disso. Nem que tivesse de ir ao Porto... e rezar para conseguir sair de lá, seguindo as placas em direção a Braga. Enfim, um retorno dos deuses. Deve ter sido providenciado pelo tal anjo que havia engendrado essa trama toda para mim, com minúcias de detalhes dramáticos, incluindo esse. Mas, tudo bem... o importante é que, pegado o retorno, me senti a mulher maravilha e cheguei em casa certinho, às 19h. Um passeio à toa, para quem tinha atravessado o Atlântico durante a noite e chegado a Portugal naquela manhã.

Nunca saboreei com tanta alegria uma sopa de legumes bem quente. Aliás, feita por mim, senão, seria a de couve mesmo. Alimentei meu pai e esperei a visita do médico. Chegou às 20.30 e, depois de examinar o paciente já cheirosinho, sorriu:

- O Sr. Joaquim é muito forte, fique tranqüila. Agora que a menina está aqui, com certeza estará bem cuidado.

Acompanhei-o até a porta. Ao se despedir, não se conteve:

- Soubemos do incêndio... é bom que a menina esteja aqui.

A observação entrelinhavada me pegou de surpresa. Se havia uma pulga atrás da orelha, com certeza, não habitava só a minha orelha... Me despedi com aquela cara de sonsa de quem, se entendeu, não deu por entendido. Bem-vindo o médico, mas não sabia se podia confiar no homem. Acho que ele entendeu, sorriu meio sem graça, mas apertou minha mão com confiança. Agradeci. Acho que até hoje ele não sabe se agradeci pela visita ou pelo aviso.

Não é preciso dizer que dormir não estava no meu cardápio. Eu não sei se dormi nesses dez dias que se seguiram... devo ter dormido, pois dizem que a gente pira, se não dorme. Mas... não me lembro... acho que eu desmaiava de vez em quando. Quem pode dormir, se ganha de presente uma aventura dessas? Cada minuto é absolutamente essencial. O que posso dizer é que, nesta primeira noite, contava os minutos para as dez horas da manhã.

Amanheceu. Eu soube pelo relógio, é claro, pois estava escuro como breu. Inverno europeu. Desci, cuidei do meu pai, que falava uma bobagem atrás da outra. O médico havia dito que ele, aos poucos, voltaria ao normal. Deuses o ouçam. E como será que ele sabia disso? Sei lá. Uma coisa de cada vez... naquela hora era a vez do Manuel. Comi e, para despistar, disse às meninas que iria ao centro da cidade. Elas perguntaram por quê. Me fiz de surda e saí... Não estava com a roupa vermelha, pois chamaria muita atenção. Descobri, de manhã, que eu vestira o papel do suspense e coloquei uma meia de lã comprida (uma das emprestadas) e duas calças, uma por cima da outra. Idem vários casacos e um pulôver por cima de tudo. Queria parecer discreta. Uma mancha vermelha andando por aí é logo percebida e reconhecida. De fato, eu vestira o papel. Nem me dava muito conta disso, mas vestira. Dei umas voltas pelo quarteirão antes de tomar o rumo certo, rezando por ter entendido as instruções do dia anterior. A experiência com o roteiro do carro me entorpecia a confiança. Mas fui em frente. Não queria ser seguida e consegui me certificar disso. Tomei a direção do encontro: direita, direita, esquerda, homem de chapéu preto. Tudo conferiu. Alívio e tensão. Ao me aproximar não sabia o que dizer. Não estava explícita uma senha no script... eu tinha de improvisar. Arrisquei:

- Você espera alguém?

Resposta imediata:

- Sim, a menina.

Sorri aliviada. Ele abriu a porta de um bar bem português: balcão, mesinhas antigas, dessas de filmes de bandido e mocinho. Ao fundo, um homem, de capa preta e chapéu idem, cabeça baixa, sentado, corpo voltado para a porta. Até aí, tudo bem... os aldeões se vestem assim, ao norte de Portugal (ou se vestiam na década de oitenta). Entrei, olhei em volta... mais ninguém. O homem de fora, continuou lá fora, parado em frente à porta. O homem da capa levantou os olhos e sorriu... olhos de lágrimas, sinceros, aliviados, abençoados. Dali para o abraço, não houve tempo ou espaço. Não importava o mundo, importava o encontro... e nós dois sabíamos o que habitava ao fundo, sem palavras. Num relance, ainda na entrada, ao vislumbrá-lo, confirmei apenas que nunca teria havido qualquer dúvida em meu coração.

Nos sentamos frente a frente, silenciosos, cúmplices, atores do drama, peças principais. Meu pai se tornou pequeno, motivo, instrumento, jargão. O mundo se tornou ínfimo diante da grandiosidade daquele homem, trinta anos mais velho do que eu... poderia ter sido meu pai. Sua alma sempre quis ser meu pai. E esse era o olhar que se desprendia dele para o meu rosto, conferindo a cria, que carregara no colo. Suavidade e doçura de aldeão, semi-analfabeto nas letras, PHD em tudo mais. Eu teria ficado assim, embevecida diante da grandiosidade daquele homem horas a fio. Eu não me mexeria, se ele não se mexesse. Acho que ficamos assim, esperando um ao outro, por algum tempo.

O homem da porta entrou e se aproximou dizendo:

- Manuel, tens pouco tempo.

Desfez-se o encanto, mas jamais o encantamento que trago vivo em meu coração até hoje. O homem saiu novamente. Manuel abriu o casaco e se transformou num desses homens que sacam de tudo de diversos e incontáveis bolsos. Foram surgindo na mesa: cadernetas de contas bancárias, o relógio de ouro de meu pai, dinheiro vivo, documentos, passaporte...

Em poucos minutos resumiu o que fora a invasão da família bracarense, em dias que meu pai não estava bem de saúde e, bastante depauperado. Por todo o tempo, até o desenlace da noite da confusão, papai contara com sua presença, aos pés de sua cama, como havia me prometido. Ocorre que esses primos, que ele também mal conhecia, e que haviam se transferido para Braga, começaram a visitá-lo com freqüência e haviam colocado as duas meninas lá, a guisa de cuidarem melhor da casa. Coincidência ou não, meu pai piorava dia a dia. Foi quando, numa noite, eles foram em grupo, tentando convencer meu pai que o bronco Manuel ali estava para explorá-lo, já que não saía da casa dele e que por sua ignorância não tinha condições de gerenciar os bens. Queriam convencer meu pai a passar-lhes uma procuração, já que eles, mais cultos e preparados, poderiam assessorá-lo melhor. Meu pai sempre fora muito esperto com esse tipo de coisa e como Manuel o seguira por toda a vida, no princípio, ficou confiante e não pensou que pudesse dar em coisa alguma. Mas as noites se sucederam e meu pai não melhorava, pelo contrário. E eles voltavam, insistiam na procuração, queriam ver as contas dos bancos e Manuel começou a irritar-se, pedindo que deixassem o padrinho em paz. Não deu outra. Numa dessas noites, irritaram-se todos, disseram que o estavam expulsando de lá e que não aparecesse mais. Foi então, que, vendo que estaria mesmo sendo expulso, deu a volta à mesa da sala, palco do drama, abriu a gaveta onde sabia que meu pai guardava todos os pertences procurados, que eu mesma lhe indicara há anos atrás, passou a mão em tudo que pode e, literalmente, saiu correndo, perseguido pelos três, os tais mosqueteiros. Sumiu nas trevas da noite, escondeu-se em casa de amigos, soube que estava sendo procurado pela polícia e pediu que alguém avisasse à tal vizinha que precisava de minha presença lá. Explicado o telefonema que recebi no Brasil.

A coerência: meu pai, tendo presenciado o suposto roubo, também pensava em prendê-lo.

A incoerência: o que eles poderiam lucrar com isso, se continuavam sem acesso às contas de meu pai? Ledo engano: soube que, finalmente, havia uma procuração em suas mãos. Meu pai dando uma procuração era coisa inédita para mim! Eu, a pessoa em quem ele mais confiava no mundo não tinha uma... muito estranho...

Voltemos ao bar e ao relato: Duas noites depois do ocorrido, houve o incêndio do quarto, para desespero do Manuel, mas eu já havia sido avisada e ele soube que eu estava a caminho. Então, só lhe restava esperar. Exposto o drama, completou:

- Priminha, cumpri o prometido. Sou um homem honrado, mas estou sendo perseguido pela polícia. Conto com sua ajuda para limpar o meu nome.

Dito isso, empurrou para longe de si, sobre a mesa, em minha direção, os pertences do meu pai. Meus olhos pousaram nas mãos rudes daquele camponês, irmão gêmeo da ética, da lealdade, da honra, da sensatez. Suas lágrimas corriam e eu já não sabia se da alegria por me ver ou do sofrimento por que passava. Talvez por ambos.

Perguntei-lhe se tinha um advogado. Sim, tinha. Os amigos o aconselharam a buscar um, tão logo tudo tinha acontecido. Eu lhe disse que não conhecia as leis de Portugal e que precisava, em primeiro lugar, me aconselhar com esse advogado.

Era em Vila Verde, perto de Braga, mas precisava alimentar meu pai. Deixei-o ali, fui para casa, cuidei do que precisava, peguei o carro e saí novamente. Uma das moças prontificou-se a ir comigo, para me ajudar. Eu não lhes dissera para onde ia... para que tanta solicitude? Disse-lhes que cuidassem da casa e de meu pai, que não se preocupassem. Algo no ar estava bem claro: a trama, a traição, a insensatez. Disse-lhes que a qualquer momento, o médico chegaria e que deixassem meu pai em paz. Pura mentira, mas foi o que me ocorreu no momento. Eu não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Vila Verde: inesquecíveis momentos. O advogado atendeu-me de toga (!!!). Sua mesa mais parecia a mesa de um juiz, imensa e toda entalhada em madeira escura, antiga. Lembro-me de sua barba grisalha muito bem aparada e do sotaque puro e limpo português. Estava longe de parecer um filho de aldeão, o que seria o mais natural em Vila Verde. Mas a lingüista cedeu rapidamente o lugar à filha, à prima, à heroína da história e, rápida, me vi contando ao supremo que tudo que o primo havia dito a ele era a mais pura e plena verdade e que eu precisava salvá-lo daquela situação.

Foi então que o letrado bacharel me informou que as contas bancárias estavam sendo usadas pelos tais primos, à custa de uma tal procuração reconhecida com as impressões digitais do meu pai, considerado incapaz de assinar. Só me faltava essa. Eles tinham ido a minha casa e me ocultaram a informação! Explicada a atuação da máfia, inclusive os salamaleques ao constatarem minha inesperada visita. Canalhas. Não preciso dizer do rombo que constatei, mais tarde, nas contas do meu pai. Naturalmente, tudo à guisa de atendê-lo em suas necessidades: pagando as moças e a sopa de couve...

Já escrevi, parágrafos atrás que, se eu não tivesse sido criada num colégio de freiras, como uma moça bem educada... bem... você pode imaginar quais palavras vieram à minha cabeça... mas só à minha cabeça, pois, diante de tal figura magistral eu só conseguia ter o comportamento de uma princesa, adida da nobreza, à altura de suas considerações. Engoli em seco, pronta para as exigências requeridas. Perguntou-me se eu conseguiria uma assinatura do meu pai, numa procuração para mim. Se eu conseguisse, poderia procurar a polícia, dizer da honradez do Manuel, dizer que tudo fora um mal entendido e que estava solicitando a cassação da procuração existente (naquele momento, jurei a mim mesma que conseguiria). Em seguida, poderia mover um processo daqueles contra os tais, que acabariam bem mal das pernas, com certeza. Foi então que eu lhe disse que levaria meu pai para o Brasil o mais depressa possível e perguntei-lhe se tal atitude poderia prendê-lo e também a mim, em Portugal ou exigir a nossa volta lá, eventualmente. Poderia, dependendo dos trâmites da justiça.

Voltei-me para Manuel, provavelmente, seco por uma revanche contra a tal quadrilha e ansioso por ser reconhecido em sua honradez. Perguntei-lhe se poderia ignorar toda a parte do processo, desde que limpasse o seu nome, pois, no momento, estava falando mais alto cuidar de meu pai e isso só seria possível trazendo-o para o Brasil, sem pendências. Eu não poderia ficar lá e, tampouco, ele poderia passar a viver com meu pai, com a família e seus afazeres em Vila Verde. Não era justo.

O olhar doce e puro de Manuel só poderia ser acompanhado de uma resposta:

- Sim, se a priminha achar que é melhor para si.

A resposta veio pronta, sem meneios, sem pensar duas vezes. Limpa, pura, direta. Desafio você a me apontar outro homem desses dando sopa por aí. Escorraçado, perseguido, insultado... íntegro, sensato, superior.

Consegui a procuração assinada, pois em três dias, meu pai estava em condições de assinar, na presença do escrivão, certamente, com duas testemunhas, como era necessário em tais circunstâncias. Tinha de ser algo tão solene e poderoso que pudesse agir rápido sobre outra, de menos porte, já existente. E você não imagina o que eu passei para conseguir uma assinatura de próprio punho e de própria confiança de meu pai, por pura convicção de que não acreditava em procurações e porque ainda não estava entendendo direito o que estava acontecendo. Mas consegui. Consegui cassar a procuração da quadrilha. Para isso, apresentei-me na delegacia, pronta para um interrogatório, que desafiou a fundo minha inteligência feminina. Mas, afinal, a mocinha da história era eu. E consegui me fazer de sonsa para o delegado, quando me perguntou pelo incêndio (putz! Braga inteira sabia do incêndio no quarto do Sr. Joaquim... e Braga inteira achava aquele incêndio esquisito...). Consegui repetir-lhe o que seria a desculpa mais deslavada que a quadrilha arranjou, única peça da trama urdida por eles que foi ardilosamente aproveitada por mim para poder não abrir um processo:

- O cobertor elétrico pegou fogo, dizem que isso é muito comum.

O delegado, tenho certeza, porta-voz de toda Braga, quase indignado redargüiu:

- Você não pretende abrir um processo contra eles, nem que seja por causa de uma procuração suspeita?

Cara de sonsa, outra vez:

- Não. Creio que, naquele momento, fizeram o que acharam que era o melhor. Eu apenas quero torná-la inválida, pois já estou aqui e não há necessidade de outra. Não o faço pessoalmente, pois não os conheço e me sentiria constrangida.

Contra evidência de sonsice ou burrice de tal tamanho, nada mais havia a fazer. Lembro-me de vê-lo recostar-se desanimado em sua cadeira, como um cão de caça que perde sua presa.

Explicado que teria havido um tremendo engano quanto a um suposto roubo feito por Manuel, pois todos os documentos estavam em minhas mãos, fui dispensada da delegacia, com a mesma cara de sonsa, para desespero da lei. Em nome da saúde do meu pai e da urgência em resolver essa parte, deixei que a lei da vida cuidasse do resto.

Nunca soube o que aconteceu com a quadrilha. Apenas os vi, na hora exata em que já estava saindo para o aeroporto. Entraram em casa, perguntaram como as coisas ficariam, se eles cuidariam da casa enquanto meu pai estivesse fora (mal sabiam que meu pai jamais voltaria). Tudo assim, com aquelas caras de anjos que nunca foram. Receberam como resposta que não se preocupassem, que a procuração estava sendo cassada e que eles seriam informados pela polícia disso. Pode você imaginar a cara deles? Não, não pode... tenho-as retratadas na minha mente, como uma marca de vitória conquistada. Despedi-me dizendo que a vida se encarregaria de cuidar do que tinha acontecido. Não era uma maldição, mas chegou perto, confesso. E senti que ficaram com medo. Bem feito.

Desnecessário dizer que, dias antes, fiz questão de passar horas a fio caminhando de braços dados com o Manuel por toda Braga. Vestida de vermelho, pagando o preço do frio pela honradez. Passeamos muito, entramos em todos os bancos, pedi que ele sacasse quantias que eu mesma poderia sacar, já que era a filha e tanto eu quanto ele tínhamos os nomes em conjunto com meu pai nesses bancos. Mas queria que toda a população soubesse do homem honrado que seguia ao meu lado, para que qualquer dúvida jamais pairasse por toda parte, até a mais oculta viela da cidade, e que ele pudesse, orgulhoso de si mesmo, caminhar livre de suspeitas por todo Portugal. Voltei a Vila Verde, almocei em sua casa, passeei grudada como um carrapato em seu braço, também para que todos vissem. Claro que, a esta altura, a filha de seu Joaquim, que passou a ser bem conhecida por aquelas bandas, o colocava acima de qualquer suspeita. Ao contrário, imagino o que a cidade estaria falando da quadrilha. Creio que esta foi a única, mas a doce vingança de Manuel.

Voltei para o Brasil, trouxe meu pai, que faleceu em paz, seis meses depois. Trago na lembrança a cátedra do advogado, as expressões de espanto do delegado, a roupa vermelha de esquiar, como panos de fundo do olhar tranqüilo, doce, gentil, corajoso de Manuel.

Até hoje, recebo uma carta por mês, desse quase iletrado primo, das quais reproduzo começo e fim:

- Minha priminha Eulalia, eu muito istimo que estas letras a vão encontrar de muita saúde. Que nos na data istamus bem graças a Deus (.........) e sempre guardo minha priminha no coração e espero cá por sua resposta e a Deus. Manuel.

A Deus – de quebra, uma aula de etimologia... até filologia esta doutora das letras aprendeu com esse primo...

Sei as palavras das cartas de cor, pois é isso que ele sabe escrever. Mas mesmo sendo as mesmas, são sempre novas para mim. E aguardo a cada mês, que estas mesmas linhas cheguem, prova de que ainda posso sabê-lo por perto, mesmo que tão longe.

3 comentários:

pblower disse...

Deliciosa aventura. Acompanhei à distancia minha amiga neste periplo europeu.
beijocas

Unknown disse...

Excelente!!! Para um golpe de mestre, um conto de Mestre!Incrível o primo Manoel! Ele merecia ler o conto.
Só faltou uma foto do "ponto vermelho"...
Bjs.

Anônimo disse...

Lali, gostei muito da sua história. Andei muito por Bracara Augusta quando estive no Porto. Que sabe não cruzei com seu primo manuel.beijos.Marcos