sábado, 27 de março de 2010

O CRESTA



Trabalhei por 12 anos como professora em uma universidade particular. Lá, fui professora de Grego e de Cultura Clássica (essa vale um conto à parte), de Língua Portuguesa e de Linguística. Não ao mesmo tempo, é claro, embora o grego estivesse presente como pano de fundo, pois foi o que me valeu o início do contrato. Isso se deu de 1974 a 1986.

Felizmente, peguei o período de auge do Curso de Letras dessa Instituição e saí por conta do concurso que tinha prestado em uma Universidade Pública, em 1986. Saí na hora certa, pois o curso vinha ladeira abaixo e para quem gosta do que faz isso é de uma tristeza sem tamanho. Sentíamos que não tínhamos como segurá-lo, pois todos os incentivos da direção da Universidade estavam sendo direcionados para outra área de ensino. Hoje, pelo andar da carruagem, nem sei se o curso ainda existe.

O importante é que, enquanto estive lá, a minha vida deu panos para mangas. São tantas as histórias que nem saberia por onde começar. Assim, escolhi pinçar uma delas, ocorrida com uma das mais queridas turmas que tive, uma de Português-Inglês.

Os professores, geralmente, não ficavam mais de dois períodos corridos com uma turma. Podíamos até encontrá-la, novamente, em outra disciplina ou mais adiante, mas era praxe mudarem os professores para que pudessem conhecer a diversidade. Parece que havia entre mim e esta turma, no entanto, um encantamento mútuo, uma atração irresistível e refratária a qualquer mudança. O fato é que fiquei os dois primeiros períodos por pura coincidência ou conveniência de distribuição de carga horária por parte da coordenação. No terceiro período, confesso que fui pedir só mais um periodozinho. Veio como prêmio. Na quarta vez, houve um abaixo assinado da turma pedindo a minha permanência e foi a única vez na vida que me enfiei de cabeça para estudar uma disciplina que eu nunca tinha dado, uma tal de Gramática Histórica, só pelo prazer de ficar com eles. Na quinta vez, a coordenação mesma já estava disposta a me manter na turma, mas... cdf como eu sou, fui eu mesma quem se sentou com os alunos para convencê-los (e a mim também...) que deveriam experimentar outros mares.

Você pode imaginar o que é uma empatia de quase dois anos. Quando eu entrava na sala, sentia a temperatura da turma no ar ao percorrer o curto caminho entre a porta e a mesa.

Naquele dia, a turma estava, digamos... esquisita. Me virei para o quadro negro, apaguei todos os escritos da aula anterior. Era o tempo de eu sentir a turma mais de perto, além de não gostar de escrever por cima de outras informações. Isso sempre me incomodou e sempre ensinei a meus alunos, futuros professores, a jamais saírem da sala sem apagarem o quadro negro, uma gentileza ao colega que viria a seguir. Deve estar na conta das delicadezas de minha educação rigorosa, mas o fato é que é mesmo uma beleza você entrar numa sala e o quadro estar limpinho, esperando por você. Quem é professor sabe disso. Pois então, estava eu apagando os escritos da aula anterior e sentia a turma, enquanto isso. Eles estavam com bicho carpinteiro nas cadeiras, inquietos mesmo. Não resisti. Me virei e perguntei de frente:

- Afinal, o que há com vocês?


Silêncio.

- Vocês estão preparando alguma?

- Não.


- É sobre algo que eu possa saber ou vai ficar por isso mesmo?

- Poder saber você pode, mas é um bocado delicado. E começaram a rir, como quem já havia rido muito antes e a lembrança abrisse, de novo, as comportas do coração.

- Mas afinal, o que houve?

- Tivemos um probleminha com o Professor LF.


Ora, o tal professor LF era um dos muitos professores portugueses que aportaram no Brasil por conta da independência das colônias portuguesas da África. Ocorre que os portugueses tiveram de abandonar tudo às pressas e voltarem para Portugal, expulsos que foram pela famosa independência das colônias africanas, lá pelos anos de 1975 ou 77 não me lembro bem. A coisa tinha ficado preta e me lembro muito disso, pois a revolução foi em torno do mês de abril e eu fui em julho visitar meu pai que morava em Braga. A confusão ainda era tamanha que, quando desci no aeroporto de Lisboa, centenas de portugueses exilados ainda estavam acampados nos saguões e dependências do aeroporto. Enfim, foi mesmo difícil acomodar tantos portugueses em um país tão pequeno. E, vocês sabem da generosidade do povo brasileiro. Acolhemos muitos deles com os braços e corações abertos, dividindo nosso espaço acadêmico com esses exilados de tudo e de todos.

Não fosse o ar um tanto arrogante que, em geral, esses colegas apresentavam, como se eles é que estivessem fazendo o favor de serem acolhidos em nossas universidades, teria sido perfeito. Apesar desse “senão” os acolhemos bem, com o natural carinho brasileiro, bastante tolerantes com esses colegas de além-mar desabituados a nossos costumes. Entre os hábitos mais difíceis de convívio, custava-lhes entender nossa maneira de ser na academia universitária, nosso contato estreito com os alunos, nossa forma descontraída, termos em comum os mesmos elevadores (lá havia elevadores só para os professores), idem os papos pelas escadas e, porque não dizer, vez por outra a mesma mesa de bar para um chopinho descontraído, sem que isso jamais desmerecesse a seriedade do trabalho acadêmico. Poucos foram os que se adaptaram e, justiça seja feita, quando conseguiam, tinham a nossa maior admiração. No fundo, agora, mais madura, fico imaginando como muitos desses colegas sofreram com a necessidade dessas adaptações. Não deve ter sido nada fácil enfrentar os costumes e o clima brasileiros.

LF era um desses mais rígidos colegas. Acresce que tinha um sotaque terrível e dava aula de História Externa da Língua Portuguesa. Para você entender melhor os fatos a seguir, preciso explicar um pouquinho o que isso significa: história externa refere-se aos acontecimentos históricos que acorreram na Península Ibérica, mais especificamente, em Portugal, e que poderiam ter influenciado as mudanças lingüísticas, a história da língua por influência externa. Cito, como por exemplo, oito séculos de invasão árabe e as influências que o convívio com esta língua pode ter trazido à nossa, quer sob o ponto de vista de palavras importadas, quer das estruturas de frases. Isso era a matéria de LF. Eu dava História Interna, ou seja, a descrição da gramática, propriamente dita. A tal matéria em que eu estava enfiando a cara só para ficar mais esse semestre com a turma, já que não era a minha especialidade.

Eu tinha três horas de aula por semana com eles e entrava logo depois das duas aulas do LF, às quartas-feiras de manhã se não me engano. Tudo sempre correra às maravilhas, mas naquele dia, com certeza, alguma coisa muito diferente tinha acontecido.

Puxei uma das cadeiras desocupadas dos alunos, me sentei junto à primeira fila e pedi que abrissem o jogo. Foi então que eles se dividiram por contar ou não contar, entre uma gostosa gargalhada e outra, quem sabe por puro descontrole ou, talvez, para aguçar a minha curiosidade e aumentar o suspense. Finalmente, me contaram o que se segue:

Eles estavam estudando a invasão da Península Ibérica pelos chamados bárbaros. E a forma que o LF dava aula era aquela bem típica do professor de antiga geração que fazia da aula um “ditado”. Na prova, caía exatamente o que ele tinha dito, não adiantava estudar nos livros. Os alunos, então, copiavam tudo, tim-tim por tim-tim, como taquígrafos, e depois ajudavam uns aos outros a completarem as informações. Gloria era uma excelente aluna, e conseguia juntar dois atributos valiosos: era aplicadíssima e, também, engraçadíssima. Sem contar com a forma esdrúxula com que se vestia. Quem a visse, juraria que ela estaria cursando Letras por farra. Parecia que estava indo a uma discoteca, ou melhor, chegando de uma, já que as aulas começavam às 7h30min. Ledo engano: quando sentava para escrever, era difícil tirar menos de 10. Incrível. Pois bem, foi Gloria quem conseguiu suster o riso para contar:

- É que esse professor tem um sotaque do cão e é muito difícil entender o que ele diz. Anotamos tudo, nos ajudamos uns aos outros, pois ele fica muito irritado, quando pedimos que ele repita. Mas hoje não dava mesmo para entender. Ele estava contando sobre a invasão dos bárbaros e nos disse:

- Então, vieram os godos, os visigodos... o cresta...

- “O cresta”,
acrescentou ela para mim, que diabo de povo seria esse? Além do que, parecia erro de concordância: os godos, os visigodos... o cresta? Não seriam os crestas? Como não entendi, me armei de coragem e perguntei:

- Professor, me desculpe: os godos, os visigodos... depois? E ele repetiu já um pouco intrigado:

- Os godos, os visigodos... o cresta...


- Aí, acrescentou Gloria, fiquei na mesma e pedi ajuda a Patricia (sentavam-se próximas). Ela não tinha entendido também. Armou-se de coragem e pediu que ele repetisse. E ele, que já estava irritado, levantou a voz e repetiu:

- Os godos, os visigodos... o cresta...

- Outro aluno, veio em nosso socorro, pois afinal, ninguém estava entendendo e, com certeza, era assunto de prova:

- O cresta, professor?


LF pos-se diante da turma, em fúria, segundo eles, e redargüiu a plenos pulmões:

- O cresta... o que sobra, o que fica!!!

Quem diria: “u kresta” = “o que resta”, referindo-se ao restante de outros invasores, dito assim, num genuíno e carregadíssimo sotaque português!!!

Você pode imaginar como a turma teve de se segurar para não cair numa tremenda e estrondosa gargalhada, diante daquela eminente figura de um metro e cinqüenta e cinco centímetros de altura. Pois foi o que fizeram até que o professor saísse de sala e, é claro, sobrou para mim.

A partir daí, não teve jeito: a turma sapecou-lhe, às escondidas, o apelido de “Crestinha”, pois aluno não deixa passar em branco nada, nadica. Aproveitaram o mote e juntaram a ele o metro e cinqüenta e cinco do “ilustre” professor e, em conseqüência, só poderia dar diminutivo, bem ao estilo carioca.

Muitas vezes, meus colegas me perguntaram se eu sabia por que os alunos o chamavam assim, meio às escondidas, pelos corredores. Claro, cúmplice de meus filhotes, eu armava uma cara bem inocente e dizia:

- Coisas de aluno. Quem sabe, um dia a gente descobre...

LF já faleceu faz tempo, como aliás, a maioria dos meus colegas de academia, já que eu era muito mais moça. Quase todos tinham sido meus professores.

Mas os que ainda existem, se lerem este conto, agora saberão.

3 comentários:

André disse...

Ha, ha, ha! A do Seu Crestinha eu já tinha ouvido. Agora está lida e registrada :-D
Muito boa!

Unknown disse...

E eu participei da cena!!!

beijocas

pat

Unknown disse...

Muito legal saber que alunos e professores formam um mesmo mundo onde quer que se encontrem. Pode ser Rio, Sampa ou POA, as histórias são sempre parecidas. Mais gostoso ainda é ler uma história onde os personagens são amigos da gente, hahahah
Soraya