domingo, 21 de março de 2010

O VIGIA



Se você mora em prédio, certamente tem ou já teve um porteiro, um vigia, um faxineiro, um vizinho, um alguém que futrica a vida de todo mundo e está sempre por dentro das fofocas, quando não é o próprio autor das mesmas.

No meu prédio, essa figura histórica era o Seu Geraldo, vigia da noite. Acresce que sentia uma satisfação particular em ficar circulando por ali, também durante o dia. Como o Sr. José (vulgo baiano ou Zé), nosso porteiro, ele participara da construção do prédio. Conheciam, portanto, todos os moradores pelo nome e sobrenome e guardavam os registros da vida cotidiana, desde sua entrada no prédio até os dias de suas aposentadorias como funcionários, o que já ocorreu há uns pares de anos.

Mas Geraldo dava show de fofoquice. Era mesmo o sacrossanto vigiador do pedaço. Creio que não escolheu por acaso a profissão de vigia. Fazia parte intrínseca de sua personalidade.

Lembro-me de vários momentos em que pude constatar, viver ou ser vítima de seus olhos, ouvidos e bocas (um homem desses não tem uma só boca... tem todos os sentidos perceptivos em dobro).

As melhores delas aconteceram quando me separei, depois de 22 anos de casamento. Tínhamos mudado para o prédio em 1978 e estávamos em 1994. Antes, morávamos em frente, o que, para o Geraldo, deveria dar no mesmo, pois ele não se contentava com tomar conta da vida das pessoas do prédio, zelador de seu cotidiano e seus segredos. Sabia também as histórias de toda a rua.

Como eu entrava e saía do prédio sempre às pressas, era quando esperava o elevador que eu percebia isso. Não havia dia em que Geraldo não estivesse comentando com algum colega sobre algo que sabia dos arredores. Em alto e bom som, diga-se de passagem, e era impossível não ouvir que o cachorrinho da D. X tinha machucado a pata ao esbarrar no vaso, quando não eram coisas mais particulares e invasivas da vida dos moradores. Como ele conseguia as informações, só os deuses sabem.

No que se referia a mim, em particular, a coisa ficava difícil por conta de minha constante discrição e reserva. A par de ser gentil e até brincar com eles, saber de minha vida só lendo nos envelopes das correspondências que eu recebia. E, é claro, pelas horas de saídas e entradas no prédio, com carro ou sem ele, vestida assim ou assado. Só por esses vestígios, por incrível que pareça, ele sabia se eu estava saindo para trabalhar, passear ou fazer compras. E podia, muitas vezes, determinar a hora de saída e chegada. Parecia que tinha planilhas sobre nossas vidas... e acho que as tinha, em sua mente aguçada. Descobri isso eventualmente, quando um de meus alunos, por causa de um atraso meu, me esperava na portaria (eu costumava receber meus orientandos em casa, por conta das consultas a meus livros e outras facilidades para pesquisas que nossas universidades públicas não podiam – ou ainda não podem – oferecer). Ao subirmos pelo elevador, o aluno comentou que o Geraldo havia dito que, às terças, geralmente estou em casa a essa hora, mas que, naquele dia eu tinha ido ao banco e não iria demorar. Como ele sabia que, realmente, eu tinha ido ao banco? E, mais, que não iria demorar? Deduzi, pouco depois, pensando que eu tinha saído de casa apenas com minha carteira e uma conta a pagar nas mãos! Claro, estes pequenos detalhes não passavam despercebidos ao nosso ilustre zelador...

Mas voltemos ao fato da separação que foi feita na maior discrição. Uma saída de casa do ex-marido, tendo levado suas coisas aos poucos, comigo ajudando, em diversas viagens de carro, no decorrer do mês. Enfim, não se parecia em nada com uma mudança.

Isto posto, fui viver o meu cotidiano, sem satisfações a dar, como sempre. Como meu ex-marido viajava muito a trabalho, no começo, sua ausência não foi notada.

Para mim, tanto fazia, nem pensei nesses detalhes. É claro, no entanto, que passei a ter uma vida mais liberada, sem preocupações com a hora de chegar em casa e coisas assim.

Um mês depois, ao voltar de um chopinho com amigos, em pleno sábado, em torno das duas da manhã, estava esperando o elevador e ouvi esta pérola:

- D. Eulalia, o Sr (nome do meu ex) viajou?

De pronto, caiu a ficha. O filme de minha vida no decorrer daquele mês passou como um bólido em minha mente. Eu não tinha me tocado, mas, de repente, percebi tudo. Minhas entradas e saídas diferentes, meus horários, talvez minhas atitudes mais despreocupadas não tinham passado em branco aos olhares de nosso detetive predial. Pensei rápido que não podia perder a oportunidade, talvez a única na vida, de dar a cutucada, talvez há muito tempo esperada, mas nunca conscientemente percebida. Olhei com ingenuidade forçada para ele e respondi apenas:

- Não sei.

- Não sabe?

- Não.


Seus olhos mudaram de cor, juro a você que foi a impressão que eu tive. Éramos conhecidos como o casal 20, desde nosso casamento, morando no edifício em frente (quantos casais à beira do enfarte conjugal são socialmente vistos como casal 20...). Se nosso casamento não deu certo, virgem santa, que casamento daria? Não sei se foi isso ou se foi a estupefação de não ter conseguido acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Parecia que eu tinha burlado a sua vigilância!!!

Levantou-se da cadeira para abrir a porta do elevador. Ele nunca tinha se dado a esse trabalho. Afinal, ficar sentando era tão bom! Mas segurar a porta poderia ser a base para um prolongamento da conversa, foi o que percebi imediatamente e, claro, me preparei para cortar o papo ali mesmo. Mas, como lhe disse, não podia perder a oportunidade. Geraldo atacou:

- D. Eulalia, a senhora se separou? Olhar estupefato.

Respondi com a simplicidade de uma criança:

- Ué, há mais de um mês.

- Mas eu não sabia!

- E precisava saber?

- Ninguém soube!


Foi aí que entrei, pela primeira vez num juízo de valor explícito em relação a ele, pois nunca tinha lhe feito qualquer alusão a sua característica fofoquística:

- Ah, Geraldo, não se preocupe. Amanhã cedinho, antes mesmo de eu me levantar, todo o prédio já estará sabendo. E acrescentei: não que isso faça diferença.

Sorri delicadamente (lembro-me de meu sorriso até hoje), tirei também delicadamente a mão que segurava a porta e fechei o elevador. O sorriso que me levou até o oitavo andar deve ter feito um interessante contraste com o semblante do Geraldo. Meu último olhar ao fechar a porta percebeu a estupefação, a indignação de se sentir enganado, ludibriado, falido, considerado incapaz de ter percebido antes e, por que não dizer, incompetente no que julgava mais valoroso para ele.

O fato é que, no dia seguinte, ao sair do prédio de manhã, aconteceu o que eu já esperava: me senti uma bolinha de tênis em disputa de campeonato internacional. Já viram a platéia durante o jogo? Correm com a cabeça, de um lado para outro, acompanhando a jogada. Foi isso. Meu prédio era povoado por senhores aposentados que, não raro ficavam em pé, na portaria, aos grupos, batendo papo. Não sei por que não preferiam ir à praia, a apenas três quadras de distância ou ficarem na praça, com tantos bancos ao sol ou à sombra, a suas escolhas. Não. Ficavam em pé, na portaria. Com o correr dos anos, esses velhinhos foram enfeitando o céu e agora o edifício começa a ter outro perfil, mas, na minha lembrança, essas manhãs eram uma marca de nosso prédio.

Naquele dia, especialmente, quase todos tinham descido e a portaria estava enfeitada pelos moradores. Por que seria? Difícil deduzir? Ao sair do elevador, o burburinho habitual transformou-se, subitamente, em silêncio. Saí e como sempre, cumprimentei a todos, com o mesmo sorriso matinal de sempre e segui. Todos os pescoços acompanhando os meus saltos altos, até a entrada do prédio. Podia ver, pelo reflexo da vidraça (mal eles sabiam). Mas ninguém teve coragem de perguntar nada.

Com o passar dos dias, passei a me acostumar com os olhares acompanhantes e comecei a me esquecer deles. Perdeu a graça. Mas não parou por aí.

É natural que minhas saídas noturnas fossem mais freqüentes. Chegar mais tarde também. Aí, começou outro problema. Esqueci de dizer que Geraldo dormia solenemente. Solenemente! A garagem deve ser aberta pelo vigia e isso me obrigava a sair do carro, em plena madrugada, para tocar a campainha do prédio e... esperar, pois ele nunca estava na portaria. Se enfiava lá pelos cantos, sabe-se deus onde e demorava a chegar. A tal ponto que tive de levar o caso à síndica. Houve um dia que esperei mais de dez minutos. Conversa vai, conversa vem, Geraldo decidiu o caso com muita praticidade:

- É muito simples. A senhora, ao sair, me diga a que horas vai voltar. Assim, eu fico sabendo e presto atenção.

- Muito legal, Geraldo, está combinado. Então, de hoje em diante, eu, que não preciso dar satisfações a ninguém, lá pelas tantas, vou ter de interromper a minha noite para dizer, onde quer que eu esteja, que “me desculpe, preciso voltar para casa porque marquei com o vigia do meu prédio que chegaria às duas horas e trinta e dois minutos em casa. Ele está lá me esperando.” O que você acha?


Tentava deixá-lo desconcertado dessa forma.

Esse era o Geraldo. Que os deuses o tenham no Olimpo, bebendo as delícias de Baco.

Eu nunca tinha brincado em carnaval. Antes, por causa do internato e das férias familiares, sempre muito casmurras. Depois, por causa do casamento. Eu nem sabia se sabia pular carnaval. Sabia dançar e, segundo dizem, muito bem. Mas a dois, em festas, bailes, etc. Mas... carnaval? Essa eu tinha de experimentar. Não se pode morrer sem pular um carnaval carioca, ainda mais morando no Rio de Janeiro!

No primeiro carnaval depois do divórcio pensei nisso. A idéia bailou pelo ar, freqüentou os papos com amigos, mas pareceu não vingar. Claro, eu não queria qualquer carnaval, queria O carnaval. Não servia ir ver o carnaval em arquibancadas. Eu queria pular o carnaval, ser ativa, vivê-lo na raiz. Muito em cima da hora. Sem chance. Vamos deixar para o ano que vem. E tinha o problema da grana, pois eu estava bancando com muitas despesas, muitas dívidas, inclusive do divórcio, recém concretizado.

Sexta-feira carnavalesca. Nada. Um convite gentil para sair com amigos para um tradicional lugar gostosinho para dançar, restaurante-bar-dançante, à beira da Avenida Atlântica. Pista pequena, mas música variada, além de pratos muito bem preparados e dignos de nossa apreciação. Pena não existir mais. Saí bonitinha, com meu salto alto e pronta para uma noite com amigos. Perto da meia-noite, um outro amigo, Marcos, me chama pelo celular:

- Querida, quer desfilar pela Unidos do Cabuçu? Tem fantasia sobrando e precisam de participantes.

Me pegou de surpresa. Quanto é a fantasia? Quase nada, quinze reais apenas por uma blusinha e chapeuzinho de malandro. Ala do jogo de letrinhas. Jogo de letrinhas. Ótimo para uma lingüista, pensei sorridente! Calça jeans branca (eu tinha!), tênis branco (tinha).

- Quer?

- Quero. Compra a blusa para mim, eu pego com você amanhã.

- Amanhã coisa nenhuma, a Escola sai hoje, às quatro da manhã.


Convidei os amigos do bar, ninguém queria. Aceitei, me despedi deles e fui correndo para casa.

Claro, quem seria o vigia de plantão? Geraldo, of course. Entrei compenetrada, sem palavras, com aquele meu sorriso cotidiano que nunca lhes revelou nada, senão a delicadeza do convívio. Salto alto, saia semi longa, uma lady.

- Boa noite, professora (era como me chamava, tanto ele, quanto o Zé, o porteiro).

- Boa noite.

Subi sorrindo. Ele acha que vou me deitar, pensei. A essa altura, mais consciente do processo, driblar a cabeça do Geraldo passou a ser um divertimento para mim.

Entrei em casa, pensando se daria tempo para uma soneca. Não daria. Melhor buscar algo para vestir. Meu amigo tinha sido categórico: vestir uma blusa bem justa e pequena pois não há onde trocar de roupa e não pode aparecer nada por baixo da fantasia. Nós nos encontraríamos na rua... como eu iria? Abri o guarda-roupa confiante, vesti minhas blusas. Pelo que ele tinha descrito da fantasia, tinha de ser algo bem pequeno mesmo e muito justo. Na época, eu não tinha. Nada. Abri as gavetas, mexi em tudo. Uma hora da manhã. Não dava nem para pedir ajuda a alguma amiga. Nada feito. Fuxiquei tudo que tinha. Só sobrou mesmo aquele corpete. Puxa vida, aquele corpete que, na verdade, era um sutiã preto rendado, com cara de corpete. Não tinha outra coisa. Pode imaginar uma calça jeans branca, tênis e um corpete justíssimo preto rendado em plena sexta-feira de carnaval? Pois foi isso mesmo. Não tinha opção. Vesti. Me senti, na verdade, um pouco constrangida. Nunca tinha saído à rua de sutiã, mesmo incrementado. Me olhei no espelho. Não estava indecente, mas que estava com aparência comprometedora estava sim.

Vesti a calça, o tênis, o corpete e a minha cara de pau. Saí do prédio com o mesmo ar de lady com que entrara. Geraldo propositadamente ficou em silêncio, me olhou de cima abaixo e abaixou os olhos. O que ele deve ter imaginado enfeitou meus pensamentos. Riso por dentro, cara de professora invulnerável por fora. E o corpete preto enfrentando seus princípios.

Encontrei meus amigos. Felizmente estavam a minha espera e riram muito ao me verem. Marcos é um amigo e tanto. Disse logo que eu já estava fantasiada... e que fantasia! Pena não ter tirado uma foto. Gostaria de vê-la depois de tanto tempo. Vesti correndo a blusa da Escola, pus o chapéu e já me transformara em outra pessoa, foliã novata, pronta para o trote.

Marquês de Sapucaí. Essa parte, não posso descrever. Não tem como. Quem desfilou sabe o que é. Você descobre que sabe sambar ali. A passarela, em si, mexe com seus pés. A alegria é interna, passa num segundo, mas carimba a alma, numa verdadeira confirmação de cidadania carioca, enfim, reconhecida e consagrada. Inesquecível.

É claro que o desfile atrasou. Naquela época, ainda atrasava. A Escola não saiu às quatro. Saiu às seis, acabou em torno das sete e voltamos exaustos, depois de uma noite de muita alegria e diversão. Entrei no prédio perto das dez da manhã. Geraldo não poderia ter ido dormir. Com certeza, estava esperando o resultado daquela noite pecaminosa. Esperaria ver em minha expressão, provavelmente as marcas da noite, quem sabe bêbada, um caso perdido. Entrei fantasiada, bem diferente do que saíra. Estava inteira, só tinha bebido refrigerantes, meu rosto transcendendo a alegria da pureza carnavalesca. Na boca um bom dia cristalino, pleno, feliz. Ele, perplexo. Eu sentia isso em cada célula de minhas retinas. Na verdade, perceber esses impactos passara a ser uma diversão para mim. E esta noite tinha sido esplendorosa nesse sentido.

Entrei em casa e me lembrei que tinha marcado manicure. Faltava meia-hora para estar no salão. Pus um vestidinho bem simples, uma sandalinha e saí voando, apenas com a carteira e a chave nas mãos. Dona de casa. O homem ainda estava na portaria cochichando com o Zé. Os dois me olharam avassaladores. Sorri, desejando-lhes bom dia. Era evidente e desconcertante a minha inteireza, a minha singeleza.

Em menos de doze horas, começando às 22 horas do dia anterior, Geraldo tinha configurado em sua mente a dama e a vagabunda, a carnavalesca e, finalmente, a dona de casa.

Ao voltar da manicure, a única vizinha com quem eu realmente conversava mais no prédio comentou, quando nos encontramos no elevador:

- Ouvi o Geraldo dizer que, depois que você se separou e mudou de vida, pode-se esperar de tudo.


Sorri. Pirei o homem, coitado. E brindei à vida.

Passei o resto do carnaval descansando, bem quieta, no meu canto, indo à praia e curtindo preguiça. Por dentro, o coração em festa.

6 comentários:

vladmir.avellar disse...

Gostei muito!
Princiapalmete, por conhecer o Geraldo, personagem sui generis.
O conto reflete tantas particularidades suas que parece 100% real. E, será?
Beijos, Vladmir.

pblower disse...

Que bom que sou a primeira a postar um comentario. Portanto sou a madrinha do blog (rsrsrs).

Delicioso texto
mil beijocas

pat

M disse...

Amei o texto, Eulalia.

Estarei sempre por aqui.

Beijo carinhoso,
Margareth

André disse...

Excelente! Adorei o texto e as cambalhotas em todos os Geraldos do prédio :o)

Unknown disse...

O texto e muito bom., se le como uma cavalgada....também vivi as aventuras e as investigações do GERALDO., figura única., comigo ele era também controlador e talvez protetor..nao solar mas protetor no sentido de proteger...alguém de quem eu me divorciei na época me mandava PIZA., eu era casado perante DEUS e perante os homens...DEUS não me criou problema...Geraldo recebia as pizas na portaria e dizia ao entregador.. O SR MICHEL NAO GOSTA DE PIZA...e a PIZA voltava ..onde eu não sei..talvez para uma rua de Botafogo onde morava minha DULCINEA da época...gostei,,, me lembrei de seu marido sr W.....me lembrei da sua luz na parte de serviço sempre acesa..Ele me disse uma vez.. e melhor deixar acesa o dia todo que vivendo apagando a luz...e mais em conta...so uma RESALVA o CELULAR havia CELULAR NA EPOCA eu acho que não...PARABENS......

Eulalia disse...

Adorei seu comentário, ilustre desconhecido... que sei bem quem é... obrigada!