sábado, 24 de abril de 2010

O VOO


Voltei em um voo da VARIG de um congresso em Portugal, no ano, dia e hora do jogo final da Copa do Mundo, Brasil versus França, aquele jogo, jamais esquecido em nossa história. Um avião daquele tamanho com menos de um terço de passageiros. Talvez todos portugueses, quem sabe. Brasileiro, mesmo não fanático por futebol, geralmente não perde os jogos da Copa, principalmente a final. Eu faço parte da exceção, para confirmar a regra, e, desta vez, para viver o vôo mais emocionante da minha vida e uma aventura amorosa digna de nota.

Acomodados todos, aeronave nos céus, eu com assentos à vontade para refestelar-me, preparava-me para aproveitar a tranquilidade de um clássico vôo internacional.

Alcançadas as alturas, ouvimos a simpaticíssima e atraente voz do comandante:

- Caros passageiros, aqui fala o comandante X... bem-vindos...

E seguiram-se os indicativos de praxe aos quais já nos acostumamos como passageiros: altitude e demais informações. Logo após, no entanto, veio o convite:

- Como temos poucos passageiros, nesse dia tão especial para o Brasil, convido os interessados a visitarem a cabine e para isso, peçam orientação junto a nossos comissários de bordo.

Eu nunca tinha visto um painel, muito menos uma cabine e não tinha um programa especial para fazer, a não ser ler meu livro. Daria tempo de sobra para um belo e diferente recreio. Fui logo encaminhada à cabine. Ao entrar, a visão do painel foi imediatamente obscurecida pela imagem sedutora daquele homem. Interesse redobrado, perguntei sobre todos os detalhes, que foram imediatamente descritos, com a mesma atenção das perguntas. O co-piloto, uma gracinha de rapaz, estagiário de voo internacional há seis meses, mexia nos equipamentos, atento aos comandos do instrutor-comandante. Eu não sabia o que era mais sedutor: a voz, os olhos, o sorriso, os movimentos ou o saber-se sedutor com a simplicidade de um gentleman. Aproveitei o que pude e me aprontei para sair e deixar que outro visitante tomasse o meu lugar. Ele insistiu para que eu ficasse. Sorri. Vontade não faltou, mas, discreta, aproveitei a deixa para escapulir.

Voltei sorrindo comigo mesma, pela pequena aventura. O “Nome da Rosa” me esperava, largado displicentemente na poltrona. Voo longo, leitura longa. Tinha tido um bom começo, o dia parecia promissor. Deitei-me ao longo de três poltronas vazias, como quem se deita no conforto de uma rede, livro em punho, e comecei a ler o primeiro parágrafo. Confesso que custei a engrenar na leitura, pois aquela voz maravilhosa ainda ressoava em meus ouvidos. Passei uns segundos para perceber, no entanto, que a voz não ressoava, soava:

- Eu já expliquei a você que um avião como esse praticamente voa sozinho, mas o resto dos passageiros não sabe disso. Quando eles virem o comandante em pé aqui no corredor, pensarão que deixei a aeronave à deriva e podem entrar em pânico. Você não acha mais conveniente evitar tudo isso e voltar comigo para a cabine?

Levantei os olhos, embaraçada. Ele, ali, de pé, um metro e oitenta de sorriso branco e puro. Claro, ninguém iria querer colocar os passageiros em pânico, nem a aeronave em risco e segui as ordens do comandante, acompanhando-o obediente e compenetrada ao que seria minha deliciosa prisão, nas próximas 10 horas.

Foi um vôo de sonhos. De quebra, o co-piloto ouvia o jogo por um comunicador sei lá de que e, delicadamente, não dava ouvidos a nosso papo. Falamos de tudo, como acontece com quem não quer deixar a peteca cair. Aliás, seria difícil deixar uma peteca cair diante daquele homem. Cheguei a me perguntar se aquela voz precisava ter conteúdo. Não precisava. Mas tinha, o que tornava tudo bem mais interessante. A cabine, convenhamos, é desconfortável, assento atrás do co-piloto. Mas quem liga, numa hora dessas? Ele também não estava lá muito bem, pois tinha de se sentar de lado para conversar com sua prisioneira, que, pelo que tudo indicava, também lhe parecia bem interessante. Lanchamos ali mesmo, almoçamos conversando, bandejas ao colo. A cabine é estreita, pois não foi feita para passageiros. Não havia privacidade, mas havia encanto. Por enquanto, era suficiente. Escala em Recife. Preparei-me para sair, quando vi a aeronave fazer os primeiros ensaios de descida. Imediatamente ele me perguntou se eu queria perder a parte mais interessante da viagem: aterrissar ali, em pé, entre os assentos do piloto e do co-piloto, vendo o bico do avião na pista. Perguntei se podia. Podia. O soberano da aeronave é seu comandante, por que não? Meu coração saltou. Senti-me a primeira dama. Levantei-me, vi a pista lá embaixo naquele final da tarde, sol começando a cair no horizonte. Muda, emocionada, hipnotizada, enquanto o co-piloto se preparava para realizar o pouso, como tarefa de seu estágio, sob o olhar agudo de seu instrutor.

Aeronave embicada, ouvi o comandante perguntar ao co-piloto:

- Como vai indo o jogo?

O rapaz respondeu:

- Não sei, retirei o fone.

E continuou compenetrado levando o avião rumo à pista. O comandante olhou para ele e sorriu. Dei-me conta da competência, do cuidado, da agudeza de professor, da segurança, do treino, do cuidado com a avaliação constante de seu discípulo. Engrandecido a meus olhos, mais uma vez.

Pouso sereno, parabéns dados ao discípulo.

Sentamos na primeira classe, completamente vazia. Apenas ali, volta e meia, nossos corpos se tocavam, com suavidade propositada. Ali mesmo me senti completamente pronta para uma noite amorosa, sem preliminares, ou melhor, com todas as preliminares já meticulosamente consumadas, em céus internacionais. A cabeça não pensava nada, mas a mulher desejava que o vôo terminasse no Rio de Janeiro, mais especificamente, em minha casa. E eu ainda não sabia das emoções que ainda me aguardavam...

Hora da partida e eu já me via ali, entre as duas poltronas para ver o avião alçar seu vôo sem limites. Desta feita, o próprio comandante levou o aeronave aos céus, explicando que levantar é muito mais difícil do que descer e que o co-piloto só faria sua primeira tentativa depois de mais não sei quantas horas de estágio, dos seis meses que já possuía. E eu que pensava que descer era mais difícil...

A noite se fazia plena e pura. À esquerda, a lua em quarto crescente, linda! Voo estabilizado, o grande presente:

- Agora você vai ver uma das coisas mais maravilhosas, que fazem a vida de um piloto valer a pena.


Dito isso, levantou-se e me convidou a sentar-me em sua poltrona. Nossos corpos se tocaram como nunca, nessa troca na cabine não tão apertada, mas cúmplice. Sentei-me, o comandante ordenou ao co-piloto que todas as luzes da cabine se apagassem e me disse para ficar ali, sem pressa.

De repente, me esqueci de tudo. Colei-me ao vidro, a lua parecia estar ao meu lado. O céu intenso em suas estrelas, a vida explodindo dentro do meu corpo, da minha alma, do meu espírito. Dentro da cabine, silencio total, respeitoso, cúmplice. A luz interior vívida, pura, completa. Deus e eu. E nada. E tudo. Naquele momento, ele não era o homem, era o anjo que me levara ao encontro com o divino. Fiquei ali, muito tempo, eu acho, perdida, achada, inteira, perplexa, maravilhada, surpresa, extasiada, feliz.

Foi a melhor e mais linda cantada que recebi em minha vida. Aquele homem queria o encanto. E o teria, se quisesse.

Custei a voltar a mim, a me levantar devagar, a trocar de lugar novamente. Corpos se tocando, desta vez, em êxtase. Ficamos em silêncio, os três, por mais algum tempo. Eu estava muito emocionada e eles sabiam. Toquei seu ombro por trás, em agradecimento. Lembro-me do toque de sua mão sobre a minha, seu rosto voltando-se para trás, sorrindo suavemente e percebendo a necessidade do silêncio contemplativo.

A conversa foi voltando aos poucos, suave a princípio, alegre, gentil, bem humorada depois. O tempo passou transformando horas em segundos e eu já estava em pé, vendo a ponte Rio-Niterói, os pontos magníficos de nossa cidade amada. Mas apenas eu desceria no Rio... ele seria transportado para um vôo doméstico, como passageiro, depois de tão árdua viagem, para pousar em São Paulo, destino traçado em sua escala. Que pena. Mas ali mesmo pediu o meu cartão, dizendo que me telefonaria tão logo chegasse ao Rio, na semana seguinte. Acompanhou-me até a saída da aeronave, eu, primeira passageira a sair, com minha mala de mão já cuidadosamente a minha espera, trazida por um dos comissários. Mínimos detalhes.

Nos despedimos ali, sem um beijo, sem um toque senão o do olhar.

Uma semana depois, ao chegar em casa, sua voz alegre me esperava na secretária eletrônica. Estava no Rio e esperava ansiosamente, frisou, pelo meu retorno à ligação, pois só poderia ficar durante um dia.
Único deslize, mas fundamental, em toda a história: esqueceu-se de deixar o número para que eu desse retorno...

E homem tem dessas coisas: acha que, se não retornamos, foi porque já esquecemos ou não demos tanta importância. Pode ter sido isso, pode ter sido a fluidez do momento, podem ter sido outras aventuras. Não ligou mais.

Ficou-me a sensação do sonho jamais esquecido, e, vez por outra, vivido e resgatado em momentos preciosos pelo meu coração. Um terno e gracioso brinde à vida, à delicadeza e ao prazer do corpo e do espírito.

Um comentário:

nrtaddei disse...

Muito legal ler de novo esse conto tão delicioso, agora online! Bjs e saudades