sábado, 10 de abril de 2010

MORAIS


Não fui aluna de latim do Morais. Infelizmente. Mas isso não quer dizer que não o considere um de meus maiores mestres. Fui sua aluna, de uma única aula, como você verá, a seguir.

Quando me formei e tive o privilégio de ser contratada pela própria universidade, ganhei de brinde o inestimável prazer de conviver com vários de meus mestres, na sala do cafezinho dos professores. Naquela época, existia.

No começo, sentia-me muito constrangida e pouco ia lá. Afinal, estaria tomando café com a maioria dos meus professores do ano anterior. Mas, aos poucos, fui me acostumando e lá aprendi muitas coisas do convívio acadêmico, chamado “informal”. Piadas como trocadilhos da língua portuguesa, entre conceituados gramáticos, alguns deles com renomadas gramáticas publicadas. Lembro-me do Morais conversando com um desses ilustres colegas que acabara de se mudar para a Barra da Tijuca. Na década de oitenta, isso significava muito luxo. E para um professor, então, só tendo mulher rica, no mínimo... mas isso não vem ao caso. O tal ilustre colega acabara de lhe dizer:

- Quando eu chegar à casa, avisarei.

Morais nunca perdia a oportunidade de um gracejo:

- Ah, claro, depois que você se mudou para a Barra só chega à casa. Eu, que moro em Botafogo, chego em casa mesmo.

É preciso dizer que Morais era queridíssimo dos alunos. Muitos madrugavam para se matricularem em seus cursos, quer por ser um mestre atencioso e sério em seus afazeres, quer por sua competência. A seriedade profissional, no entanto, não lhe tirava a graça, nem as piadas, sempre oportunas. Era competente e popular. Não fui sua aluna e lamento por isso, pois quando ele entrou para dar aula lá, eu já havia passado pelas disciplinas que ele ministrava.

Lembro-me de os alunos comentarem sobre suas aulas. Quando ele estava concentrado, com freqüência confundia o cigarro com o giz, tentando escrever com um e fumando o outro, pois sempre tinha os dois em suas mãos. Seria proposital, para manter a atenção? Como saber? E fazia da aula uma piada, o que ajudava a guardar o conteúdo. O que posso dizer é que não tinha nenhuma intimidade com ele e apenas o admirava à distância, restringindo-me a cumprimentá-lo gentilmente.

Não é apenas esse, no entanto, o Morais que trago no coração. Outro, muito mais grandioso se apresentou a mim, no momento mais adequado. O flash que tanto me marcou aconteceu numa manhã, depois de uma reunião do departamento.

Ocorre que a Chefe de Departamento tinha uma especial aversão por mim. E desde que subira ao posto, isso se tornava cada vez mais claro, não só a mim, mas a todos que me cercavam. Passou a ser uma coisa tão pública que não tinha como esconder. Aliás, ela não fazia nenhuma questão de esconder, verdade seja dita. Minha promoção que seria certa naquele ano deu adeus a meus sonhos. Meus artigos eram vetados, a revista que eu organizava com os trabalhos dos colegas simplesmente parou em sua mesa. Nada que eu fizesse ia para frente. Parecia que ela buscava pinçar ou adivinhar os meus passos para cortá-los antes que eu pudesse chegar lá. Só não conseguiu tirar minhas aulas de grego, mas até minha carga horária foi substancialmente diminuída.

Tudo corria às péssimas maravilhas e chegou ao ápice na tal reunião. A tal professora parecia meio neurótica. Marcava as reuniões sempre em uma sexta, às 7h30min da manhã e nunca terminava antes das 12horas. Quatro horas e meia de falação geral. Não havia tanto assunto assim, mas, uma vez por mês, ela nos reunia para seus infindáveis discursos sem muito objetivo e com implicâncias de todos os tipos. Uma chatice. Na verdade, era um suplício não só para mim, mas para todos os colegas. Naquela reunião, em especial, ela vetou três de meus projetos: o da revista, o de um congresso, o de uma pesquisa. Havia votação a favor, mas o argumento que ela apresentou, embora sabidamente não verdadeiro, era irrefutável: não havia verba para isso.

Então, eu estava lá, sentada, vencida, mas bem quieta, para não me arriscar a mais uma de suas pauladas. Num determinado momento, no entanto, senti necessidade de ir ao banheiro. Levantei-me, o mais discretamente que pude, e me dirigi para a porta. Como estava no fundo da sala, ir e voltar seria uma questão de momentos. Ademais, outros colegas já estavam fazendo isso, quer com o mesmo objetivo, quer para descansarem um pouco daquela lenga-lenga. Mas bastou que eu ameaçasse sair que fui logo abordada por ela:

- Eulalia, posso saber quem lhe deu licença para sair?

Pronto, ela achou, provavelmente, que era uma das freiras do meu antigo internato a quem uma aluna teria de pedir licença para fazer xixi. Meu sangue jovem subiu, mas cautelosa, desceu rápido também. Não iria entregar os pontos, depois de ter resistido quieta, até ali. Fosse outra pessoa, talvez eu brincasse, mas apenas respondi seriamente:

- Desculpe, mas, infelizmente, a sala não nos oferece toalete. Eu preciso me retirar para cumprir uma necessidade física.

Não soou como piada, pois não era essa intenção. O enfoque era mesmo de indignação. Virei as costas e saí, não antes de notar que muitos de meus colegas olharam diretamente para ela, igualmente indignados. A essa altura, a perseguição era tão aberta, que eu tinha conquistado, mesmo sem querer, a simpatia de todos, mesmo de meus antigos professores, que eram antigos colegas de trabalho dela. Alguns já até tinham falado comigo, pedindo paciência. E paciência era mesmo o que eu tinha, a duras penas, mas tinha. E a exercitava calando-me. Há tempo para tudo e eu estava consciente de que aquele... era tempo de silêncio. Dadas as circunstâncias, eu sabia que o contrário seria o mesmo que dar murro em ponta de faca.

Este dia, no entanto, foi a gota d’água. Decidi pedir demissão. Eu era jovem e não precisava me subjugar a tanta perseguição. Haveria outros empregos. Eu estava terminando o doutorado, não havia razões a temer. Aos meus trinta e poucos anos, o mundo se abria em oportunidades para mim. Deixaria para trás grandes amigos e uma universidade de que gostava muito. Tinha me formado ali, me sentia muito querida por alunos e colegas. Mas resolvi me demitir e deixar que a rainha seguisse com seus súditos em paz.

A universidade em que eu lecionava naquela época tinha uns janelões lindos que davam para um lugar privilegiado do Rio de Janeiro. Como aluna ou professora, quantas vezes eu me debrucei ali para olhar a paisagem, conversar com colegas ou simplesmente descansar meus olhos. Nessa ocasião, no entanto, o olhar era de despedida. Queria decorar a paisagem que jamais veria de novo. Sairia dali para escrever minha carta, entregá-la no mesmo dia e nunca mais voltar. Estava acabado, eu me rendia.

Absorta, assim, em meus pensamentos, não percebi a aproximação de ninguém até que uma mão suave pousou em meu ombro. Virei-me. Era o Morais. Havia estado na reunião, que assistira calado, sem intervenções. Sequer tinha dado por sua presença, já que éramos 40 professores. Mas ele estivera lá, agora eu percebia. O mestre me sorriu, como se fôssemos aluno e professor. Devolvi-lhe um sorriso triste, sem palavras. Nada diria a ele. De que adiantaria? Não tínhamos qualquer intimidade. Ademais, isto era um segredo interior, algo que só cabia a mim arquitetar, colocar em prática e me retirar. Sem mais conflitos. Mas ele estava ali e, na verdade, eu não sabia o que ele pretendia. Nunca viera falar diretamente comigo. Nossos encontros se davam, apenas, na sala dos professores. Mas ele estava ali, sorrindo docemente até que me perguntou:

- Você me permite que lhe diga uma coisa?

- Claro, respondi.

Olhou-me profundamente, seu sorriso era brando e doce:

- A inimigo, querida, não se pede nada. Nem demissão.

Alisou meu cabelo, virou-se e afastou-se devagar, sem olhar para trás. Ele percebera. De todos, ele percebera. E buscara a palavra certa para o meu coração.

Não pedi demissão. E tive, desse grande e silencioso amigo, uma das aulas mais importantes de minha vida. Uma única aula. Inesquecível.

Dois anos depois, mudamos de chefe de departamento e eu fiquei ali, ainda, por uns três ou quatro felizes e maravilhosos anos.

Doce amigo, obrigada. Sua frase foi repetida por mim, várias vezes, no decorrer de minha vida. Esteja certo de que você salvou não apenas a mim, mas a muitas outras pessoas, através de mim, boa aluna que fui, naquela manhã de sexta.

2 comentários:

Virgem Casa 6 disse...

Lali, adorei o conto! O texto é daqueles que dá vontade de ler uma tacada só.
Aproveito também para dizer que, como o Morais, você é um desses mestres da vida. A gente sempre aprende cada vez mais ao seu lado!

Beijo!

João Carlos disse...

Noooossaaaa! Que tocante!! Deu-me vontade de chorar. Até porque não tive a felicidade de conhecer o Morais, o que, talvez?, me levou a pedir demissão a um inimigo... E concordo com Daniele: vc também é um dos mestres da vida! Beijos