Contos verdadeiros, talvez enfeitados pelo meu amor pela vida. Agradeço a motivação insistente de amigos e amigas, sem a qual eles jamais teriam saído do meu computador (sorriso).
domingo, 24 de agosto de 2014
CORAÇOES INFANTIS
Aprendi Tai Chi Chuan na década de 90, com Cheng, monge taoista chinês, infelizmente, já falecido.
Cheng era um mestre exemplar. Lembro-me de seu porte alto e esguio encurtando-se até chegar a minha altura - até hoje não sei como - para ensinar-me detalhes da técnica:
- Faz de conta que sou seu espelho.
Colocava-se a minha frente, fazendo os gestos espelhados, acompanhando os meus com dedicação e seriedade.
- Inspira, expira, inspira, expira... leveza, suavidade, dedicação... pensa por dentro em cada gesto... deixe seu pensamento iluminar o seu movimento... assim... suave, brando, concentrado... inspira, expira... sua alma é a vida de seu movimento... suavidade, doçura, concentração, cuidado interior... inspira, expira... para dentro... para fora...
Preciso urgentemente voltar a praticar Tai Chi Chuan. Cheng deixou uma marca indelével de cuidado interior. Gratidão. Vou voltar a praticar e é prá já.
Com este pensamento, caminhava pela praia, hoje, até chegar ao Posto 6 (para quem não é do Rio, corresponde ao final da praia de Copacabana). O pensamento no Tai Chi e o encontro com os barcos dos pescadores fez-me lembrar o quanto aquele pedacinho de praia tem histórias para me contar. Hoje, vai a do meu encontro com as crianças do Morro do Cantagalo por causa do Tai Chi.
É que eu costumava praticar Tai Chi exatamente ali, entre os barcos e o mar, ao anoitecer ou, muitas vezes, à noite mesmo, no final de um dia exaustivo de trabalho.
O lugar é tranquilo e convidativo à meditação ou repouso. Muitos casais ali vão para namorar, conversar a beira-mar. Pessoas ficam por ali, naquela nesguinha de areia, na praia que se estreita e se junta ao calçadão. E por ser seguro e tranquilo, era para lá que eu ia, em busca da areia, do mar e da energia inebriante, suave e branda, em pleno bulício carioca.
Num desses dias, estava especialmente concentrada em meus movimentos. Há dias em que eles fluem melhor e mais plenamente, propiciando uma imersão interior mais profunda. Os ruídos à volta se dispersam, ou melhor, somem. Até o barulho gostoso do mar fica distante e profundo. A mente flui nos gestos... bom, intenso, gostoso, restaurador... até que... sem essa ou aquela, naquele dia, uma evidência exacerbada de sons me tirou a concentração:
- "É qui nem" no filme," é qui nem" no filme!
Percebi crianças a minha volta. De imediato identifiquei os meninos moradores do Morro do Cantagalo. Um deles era o autor da frase, chamando a atenção dos outros. Provavelmente, ao verem meus gestos, confundiram-nos com alguns daqueles filmes de luta oriental. Sorri por dentro. Pensei neles, atuando durante o dia, considerados marginais, rondando as pessoas pelas ruas... escorraçados pela sociedade, pivetes.
Mas ali, eram "de novo" apenas crianças... e, no imaginário, me viam como uma figura de filme. Não resisti:
- Chega mais que eu ensino.
Não precisaram de outro convite. Vieram todos, eram uns seis ou sete.
- É só copiar, bem devagar.
Ficamos assim, por algum tempo, até que cansaram. Afinal, para tanta energia e vitalidade infantis, movimentos de Tai Chi, assim, sem mais nem menos, exige muito esforço.
- Por hoje chega, tia. Você vem de novo amanhã?
- Não posso vir todos os dias, mas, quando vier, se vocês quiserem, fazemos mais.
- Tá bom, tia, a gente tá por aqui.
E saíram correndo, brincando e pulando, imitando alguns gestos aprendidos, em ensaios de luta entre eles.
Saí dali pensativa. Quanta coisa poderia ser feita por esse meninos abandonados ao léu social... meninos condenados à marginalidade, escondendo corações infantis como qualquer criança... prontos para florescerem como em qualquer jardim... dependendo apenas de uma boa rega.
Como naquela noite, a lembrança mas fez voltar pensativa para casa. Uma sensação de inércia incontida e engasgada, interrompendo a fluidez do ar na garganta.
Tristeza, impotência... um sem saber o que fazer desse descaso social que nos envolve...
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4 comentários:
Que delícia! Só vc mesmo!
Sensação controversa de solidariedade e inércia...
Que maravilha, movimentos remetendo a uma meditação interior, à alquimia chinesa. O círculo em ação e você minha mestra, precisa dar continuidade a esses movimentos...
É amiga... Bons tempos os do Tai Chi...
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