Sou
do tempo em que existiam os" médicos de família". Desses que cuidavam de seus clientes desde sempre, conheciam as mazelas de cada um e atendiam ao
telefone com voz atenciosa, doce e suave. Na verdade, o meu médico de família
não era bem da minha família, mas da família do meu ex.
O
doutor morava no mesmo prédio e nos atendia a qualquer hora, com dedicação,
amizade e gentileza. Sem falar na competência. Fosse a hora que fosse, ele
estava pronto para receitar aquelas pilulinhas salvadoras, as gotas amarguinhas
que salvavam qualquer estômago do desastre iminente ou fazer as indicações
certeiras para as dores mais esquisitas que assolam nosso corpo, nas horas mais
desavisadas.
De
quebra, era um bom papo e, muitas vezes, ficávamos lá, conversando, sem vermos a hora
passar. Com frequência, ele tinha jovens ao seu redor e falávamos da vida, da
espiritualidade, da existência.
Como
seu filho era amigo de infância do meu ex, fazia questão de não cobrar por sua
pronta dedicação em cada atendimento. Não sabíamos como compensá-lo e ele fazia
questão absoluta de nos tratar como filhos. Até que, um dia, sem querer ele
soltou essa:
- Relógios bons
são os suiços. Nunca tive um Longines... esse era o tipo de relógio que
valeria a pena andar no pulso. Mas é difícil encontrar relógios analógicos por aqui... ainda mais um Longines...
Já
estávamos na época do relógio de quartzo, é claro, mas a palavra
"Longines" e "analógico"saíam de sua boca com voz doce e aveludada.
Viramos
a cidade, meu ex e eu, em busca de um" Longines analógico" novo, evidentemente, que fizesse honras a tal pedido.
Não achamos. Nem no Rio, nem em São Paulo. Queríamos fazer uma surpresa. Seria
ótimo ver aqueles olhos azuis, já tão vividos, brilharem de forma diferente
diante do novo brinquedo. Mas nada... até
que, em 1977, fomos a Londres, já esquecidos do caso.
Geralmente,
em viagem, usávamos roupas bem batidas. Calças jeans prontas para o descarte,
tênis velhinhos, camisetas...
E
era assim que estávamos quando um Longines, numa vitrine chiquérrima nos pegou
desprevenidos. Claro, nos dispusemos a concretizar, ali mesmo, o sonho de nosso
amigo e benfeitor.
Logo
à entrada nos deparamos com um porteiro impecavelmente vestido, com luvas
brancas, que nos abriu as portas como quem abre as portas para a família real.
Por dentro, a loja imensa ostentava um tapete de veludo vermelho que levava a
uma escadaria pomposíssima e linda. Meu espírito feminino rapidamente se deu
conta de que não estávamos vestidos de acordo com tanta ostentação. Mas o que
mais me chamou a atenção foi que isso não parecia fazer a mínima diferença para
os atendentes. Nos cumprimentavam como se fôssemos um par real.
Perguntamos
pela sessão dos Longines. Era no segundo andar. Subir por aquela escadaria de
filme, por si só, foi uma aventura. No topo da escada, um jovem de mais ou
menos trinta anos nos atendeu. Explicamos nossa demanda e fomos por ele
encaminhados a uma vitrine brilhantemente limpa, onde pude descortinar uma
linha de Longines dos mais variados tipos.
O
jovem atendente, diante de nossas explicações, desdobrou-se em cuidados e
passamos ali, perto de uma hora, olhando um e outro, duvidosos deste por causa
dos ponteiros, daquele por causa dos números ou por conta da caixa que era
muito delicada ou rústica demais para o pretenso dono. Depois de muito tempo e muita conversa,
finalmente, o atendente mostrou-nos uma prenda que seria impossível deixar de
comprar. Era bem caro, mas esse não era o problema, diante de tantos anos de
dedicação e amizade desinteressada que
se escondia por trás do pretendente ao presente. E tínhamos, felizmente,
condições de pagar.
O
problema, no entanto, empacou no tipo de pulseira. Aquela, com certeza, não
combinava com o que imaginávamos no pulso de nosso amigo. O rapaz nos disse
que, se quiséssemos, poderia providenciar a pulseira desejada, mas... só na
parte da tarde. Se pudéssemos passar por lá...
Sim,
claro, poderíamos. Combinamos um horário e nos despedimos, garantindo voltar.
Saímos
encantados com o atendimento e felizes com a descoberta do presente tão
almejado. Eu já previa a expressão de alegria e espanto de nosso amigo que nos
esperava na volta. Lembro-me de que cheguei a comentar, também, do luxo da loja
e de como eles pouco se importaram com nossa maneira de vestir. Provavelmente,
imaginariam que não poderíamos comprar aquele presente e, mesmo assim, nos
atenderam como príncipes.
Na
hora estipulada, voltamos. Ao subirmos a escada, no entanto, notei um certo ar
de espanto no atendente, como se não nos esperasse ali. Mas foi apenas por um
breve momento. Teria sido apenas uma impressão?
O
atendente pediu-nos um momento, retirou o relógio da vitrine, puxou uma outra
vitrine, retirou uma pulseira que combinava com a descrição que tínhamos feito
e ali mesmo providenciou o encaixe.
Foi
então que entendi tudo! Ele poderia ter feito a troca de manhã mesmo, no
momento em que estávamos escolhendo o relógio, pois era isso que ele estava
fazendo naquela hora! Por que não fez, então? A dedução veio rápida e simples: diante
de nossa aparência e com tantas
exigências de detalhes, provavelmente, concluiu que não queríamos comprar
relógio algum e que estivéramos, o tempo todo, procurando um pretexto apenas
para entrar naquela loja tão bonita e vermos como era por dentro.
Olhei-o
com uma cara de marota, de quem tinha entendido a situação. Não resisti:
- Você pensou
que não iríamos voltar?
Mas
o inglês não se rendeu.
- De jeito
nenhum! Peço-lhe muitas desculpas! É que do momento em que saíram, até agora,
estive muito ocupado.
Uma
desculpa muito esfarrapada de quem havia afirmado, de manhã, não ter a pulseira
na loja à disposição, mas que poderia mandar buscá-la para a parte da tarde. Apenas
sorri de volta.
Ao
acabarmos de ser atendidos, elogiei a forma tão especial com que fomos
contemplados e lhe pedi um cartão.
Ele me estendeu um finíssimo cartão com um logo dourado ostentando, nem
mais nem menos, um nome com o sobrenome da loja! Era o filho!
Podem
imaginar a minha surpresa! O filho do dono de uma das mais elegantes lojas de
jóias e relógios de Londres, na época, atendente do setor de relógios Longines.
E mais: ele próprio trocando pulseiras e atendendo a um casal que, segundo ele,
estivera ali de manhã só para tomar-lhe o tempo...
Saí
dali entendendo as raízes da tradição inglesa e o que me pareceu significar a expressão "passar de pai
para filho", no mais profundo do seu termo: com os justos valores de saber
o quanto vale um trabalho sem que a fortuna lhe caia nas mãos sem esforço algum. E fazer direito!
Muito
depois descobri que a loja em que entramos era a mesma onde a família real se
servia... Imagine! um Longines que poderia ter sido comprado pela rainha!
É...
mas esse veio para o Rio e, por muito tempo, enfeitou um pulso que ficou muito
feliz da vida de ostentá-lo.
Para mim, é claro, além do presente, valeu (e, talvez muito mais...) a aventura!
5 comentários:
Adorei a parte das roupas batidas, perfeitas para "doação internacional". Mas ainda hoje, acho que se julga o padres pela batina.
Parabéns !
Seu blog é ótimo, posts interessantes e inteligentes.
Abraço
Como sempre a aparência engana!!!!!
Gosto como você extrai a essência das situações.
Bom compartilhar com vocês minhas experiências... tem cada coisa, né? Adoro seus comentários.
beijos
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