sábado, 11 de maio de 2013

O RELÓGIO



Sou do tempo em que existiam os" médicos de família". Desses que cuidavam de seus clientes desde sempre, conheciam as mazelas de cada um e atendiam ao telefone com voz atenciosa, doce e suave. Na verdade, o meu médico de família não era bem da minha família, mas da família do meu ex. 

O doutor morava no mesmo prédio e nos atendia a qualquer hora, com dedicação, amizade e gentileza. Sem falar na competência. Fosse a hora que fosse, ele estava pronto para receitar aquelas pilulinhas salvadoras, as gotas amarguinhas que salvavam qualquer estômago do desastre iminente ou fazer as indicações certeiras para as dores mais esquisitas que assolam nosso corpo, nas horas mais desavisadas.

De quebra, era um bom papo e, muitas vezes, ficávamos lá, conversando, sem vermos a hora passar. Com frequência, ele tinha jovens ao seu redor e falávamos da vida, da espiritualidade, da existência.

Como seu filho era amigo de infância do meu ex, fazia questão de não cobrar por sua pronta dedicação em cada atendimento. Não sabíamos como compensá-lo e ele fazia questão absoluta de nos tratar como filhos. Até que, um dia, sem querer ele soltou essa:

- Relógios bons são os suiços. Nunca tive um Longines... esse era o tipo de relógio que valeria a pena andar no pulso. Mas é difícil encontrar relógios analógicos por aqui... ainda mais um Longines...

Já estávamos na época do relógio de quartzo, é claro, mas a palavra "Longines" e "analógico"saíam de sua boca com voz doce e aveludada.

Viramos a cidade, meu ex e eu, em busca de um" Longines analógico" novo, evidentemente, que fizesse honras a tal pedido. Não achamos. Nem no Rio, nem em São Paulo. Queríamos fazer uma surpresa. Seria ótimo ver aqueles olhos azuis, já tão vividos, brilharem de forma diferente diante do novo brinquedo. Mas nada... até que, em 1977, fomos a Londres, já esquecidos do caso.

Geralmente, em viagem, usávamos roupas bem batidas. Calças jeans prontas para o descarte, tênis velhinhos, camisetas... 

E era assim que estávamos quando um Longines, numa vitrine chiquérrima nos pegou desprevenidos. Claro, nos dispusemos a concretizar, ali mesmo, o sonho de nosso amigo e benfeitor. 

Logo à entrada nos deparamos com um porteiro impecavelmente vestido, com luvas brancas, que nos abriu as portas como quem abre as portas para a família real. Por dentro, a loja imensa ostentava um tapete de veludo vermelho que levava a uma escadaria pomposíssima e linda. Meu espírito feminino rapidamente se deu conta de que não estávamos vestidos de acordo com tanta ostentação. Mas o que mais me chamou a atenção foi que isso não parecia fazer a mínima diferença para os atendentes. Nos cumprimentavam como se fôssemos um par real.

Perguntamos pela sessão dos Longines. Era no segundo andar. Subir por aquela escadaria de filme, por si só, foi uma aventura. No topo da escada, um jovem de mais ou menos trinta anos nos atendeu. Explicamos nossa demanda e fomos por ele encaminhados a uma vitrine brilhantemente limpa, onde pude descortinar uma linha de Longines dos mais variados tipos. 

O jovem atendente, diante de nossas explicações, desdobrou-se em cuidados e passamos ali, perto de uma hora, olhando um e outro, duvidosos deste por causa dos ponteiros, daquele por causa dos números ou por conta da caixa que era muito delicada ou rústica demais para o pretenso dono.  Depois de muito tempo e muita conversa, finalmente, o atendente mostrou-nos uma prenda que seria impossível deixar de comprar. Era bem caro, mas esse não era o problema, diante de tantos anos de dedicação  e amizade desinteressada que se escondia por trás do pretendente ao presente. E tínhamos, felizmente, condições de pagar. 

O problema, no entanto, empacou no tipo de pulseira. Aquela, com certeza, não combinava com o que imaginávamos no pulso de nosso amigo. O rapaz nos disse que, se quiséssemos, poderia providenciar a pulseira desejada, mas... só na parte da tarde. Se pudéssemos passar por lá...

Sim, claro, poderíamos. Combinamos um horário e nos despedimos, garantindo voltar. 

Saímos encantados com o atendimento e felizes com a descoberta do presente tão almejado. Eu já previa a expressão de alegria e espanto de nosso amigo que nos esperava na volta. Lembro-me de que cheguei a comentar, também, do luxo da loja e de como eles pouco se importaram com nossa maneira de vestir. Provavelmente, imaginariam que não poderíamos comprar aquele presente e, mesmo assim, nos atenderam como príncipes.

Na hora estipulada, voltamos. Ao subirmos a escada, no entanto, notei um certo ar de espanto no atendente, como se não nos esperasse ali. Mas foi apenas por um breve momento. Teria sido apenas uma impressão?

O atendente pediu-nos um momento, retirou o relógio da vitrine, puxou uma outra vitrine, retirou uma pulseira que combinava com a descrição que tínhamos feito e ali mesmo providenciou o encaixe. 

Foi então que entendi tudo! Ele poderia ter feito a troca de manhã mesmo, no momento em que estávamos escolhendo o relógio, pois era isso que ele estava fazendo naquela hora! Por que não fez, então? A dedução veio rápida e simples: diante de nossa aparência e com  tantas exigências de detalhes, provavelmente, concluiu que não queríamos comprar relógio algum e que estivéramos, o tempo todo, procurando um pretexto apenas para entrar naquela loja tão bonita e vermos como era por dentro.

Olhei-o com uma cara de marota, de quem tinha entendido a situação. Não resisti:

- Você pensou que não iríamos voltar?

Mas o inglês não se rendeu.

- De jeito nenhum! Peço-lhe muitas desculpas! É que do momento em que saíram, até agora, estive muito ocupado. 

Uma desculpa muito esfarrapada de quem havia afirmado, de manhã, não ter a pulseira na loja à disposição, mas que poderia mandar buscá-la para a parte da tarde. Apenas sorri de volta.

Ao acabarmos de ser atendidos, elogiei a forma tão especial com que fomos contemplados e lhe pedi um cartão.

Ele me estendeu um finíssimo cartão com um logo dourado ostentando, nem mais nem menos, um nome com o sobrenome da loja! Era o filho!

Podem imaginar a minha surpresa! O filho do dono de uma das mais elegantes lojas de jóias e relógios de Londres, na época, atendente do setor de relógios Longines. E mais: ele próprio trocando pulseiras e atendendo a um casal que, segundo ele, estivera ali de manhã só para tomar-lhe o tempo...

Saí dali entendendo as raízes da tradição inglesa e o que me pareceu  significar a expressão "passar de pai para filho", no mais profundo do seu termo: com os justos valores de saber o quanto vale um trabalho sem que a fortuna lhe caia nas mãos sem esforço algum. E fazer direito!

Muito depois descobri que a loja em que entramos era a mesma onde a família real se servia... Imagine! um Longines que poderia ter sido comprado pela rainha! 

É... mas esse veio para o Rio e, por muito tempo, enfeitou um pulso que ficou muito feliz da vida de ostentá-lo. 

Para mim, é claro, além do presente, valeu (e, talvez muito mais...) a aventura!

5 comentários:

Celina disse...

Adorei a parte das roupas batidas, perfeitas para "doação internacional". Mas ainda hoje, acho que se julga o padres pela batina.

Nossa Jovem Guarda disse...

Parabéns !
Seu blog é ótimo, posts interessantes e inteligentes.

Abraço

Miriam disse...

Como sempre a aparência engana!!!!!

Carlos Alberto disse...

Gosto como você extrai a essência das situações.

Eulalia disse...

Bom compartilhar com vocês minhas experiências... tem cada coisa, né? Adoro seus comentários.
beijos