Doutor
Paulo atende seus pacientes na Penha, um bairro do subúrbio carioca. De carro, leva-se
cerca de 50 minutos para chegar lá, se o trânsito estiver bom. É preciso
atravessar uma das avenidas mais atravancadas do Rio, a que serve de saída para
quase todo o subúrbio e também para outros Estados do Brasil.
Ele
apareceu na minha vida em 1992, quando tive um gravíssimo acidente com minha
mão direita: queimei-a por completo com óleo fervente.
A
situação é indescritível e vou privar você dos detalhes. Não valem a pena em
qualquer hipótese, muito menos em um conto de gratidão à vida. Mas queimei a
mão de tal forma que o que sobrou de queimaduras pelo resto do corpo me
passaram despercebidas, por causa dessa dor.
Após
ser atendida numa emergência, só deveria tirar as ataduras, segundo me
informaram, em próxima consulta. Mas, menos de dois dias depois,
começou a doer até o cotovelo. Foi quando um colega de trabalho do meu ex, que
também já havia queimado sua mão em um passado distante, sugeriu que eu fosse
ao tal do Doutor Paulo, seu cunhado, que tinha cuidado dele na ocasião.
O
tal médico nem era especialista, mas clínico geral. Não sei por que, não
discuti. Quis o Dr. Paulo e não outro médico qualquer super hiper especialista
em queimaduras.
Tem
coisas que a gente não sabe explicar. Cisma e pronto. E não adiantava
argumentar que era muito longe de casa, mesmo numa situação grave como essa. Eu
queria ir no Doutor Paulo e com a gravidade e a dor do momento, não cabia
discussão.
O
consultório era bem simples, como são a maioria dos consultórios de médicos do
subúrbio carioca. Entrei sem muitas explicações, pois o motivo era óbvio.
Lembro-me de que, quando ele tirou as ataduras, não resistiu a fazer uma cara
meio esquisita. Eu traduzi como nojo e só soube o que realmente representou um
ano depois. Mas deixo para contar, mais adiante, o verdadeiro significado.
O
médico fez um curativo sem descrições
literárias. Este não é um conto de terror. Em seguida, me receitou antibióticos
e anti-inflamatórios fortíssimos.
Tenho
uma aversão natural e física a anti-inflamatórios. Meu estômago não aguenta
tomá-los e a impressão é de que vou morrer envenenada a qualquer momento.
Antibióticos tudo bem... mas anti-inflamatórios são o meu desespero. Mas ele não
arredou pé.
O
que mais me chamou a atenção nele foi a seriedade e até uma certa rudeza. Homem bem
mais moço do que eu, mas firme, seguro, seriíssimo... para não dizer carrancudo.
Embora estivesse com muita dor e, nesses casos, geralmente não conseguimos dar
atenção a detalhes, não me escapou a impressão de que aquele homem nunca
deveria ter sorrido na vida. E pensei que poderia estar exagerando nos
procedimentos, embora minha mão estivesse mesmo muito feia. Uma de minhas
cunhadas, ao insistir para vê-la (pois eu a escondia sempre), não resistiu e
soltou esta prenda:
-
Nossa, parece mão de filme de terror.
E
o pior é que parecia mesmo.
Mesmo
assim, uma semana depois, pedi arrego:
-
Doutor, por favor, quando posso suspender o anti-inflamatório? A dor da
queimadura é tanta que não enlouqueço porque não consigo mas... com esse
estômago conturbado, revolucionando-se a todo instante estou chegando além dos
meus limites.
Certamente,
eu deveria estar meio verde de tão pálida e de tanto passar mal. Mesmo assim, ele
só suspendeu o anti-inflamatório passados sete dias, mantendo apenas o
antibiótico. E foi aí que aconteceu: dois dias depois, eu continuava com uma
dor indescritível, mas, pelo menos, o meu estômago estava em paz. Quando entrei
no consultório, fui recebida com essa observação:
-
Hoje você está com outra cara!
Não
resisti:
-
A minha cara é essa. A outra é que era outra. Agora estou com dor, mas consigo
sobreviver.
O
homem não resistiu e, pela primeira vez, sorriu. Olhei para ele, me lembro
muito bem, com lágrimas nos olhos:
-
Ah, doutor, como me fazia falta um sorriso nessa dor.
Acho
que ele se deu conta. E parece que foi um estalo de vida. Daí por diante, nossa
relação mudou completamente e ele passou a me receber sorrindo. Foi quando vi o
quanto ele sabia ser acolhedor.
Hoje,
como terapeuta, conheço por dentro o valor do sorriso. E não importa o que eu
esteja sentindo nas entranhas. Aprendi. Meus clientes sempre são recebidos com
um sorriso sincero e acolhedor. Faz toda a diferença...
Mas
voltemos aos fatos.
Estive
nesse trajeto Copacabana-Penha por duas semanas seguidas, de dois em dois dias.
Quando passei a ir duas vezes por semana, um mês depois, já estava dirigindo.
Com muita dificuldade, mas estava. A partir daí, as visitas foram se espaçando
até 1996. Esses detalhes são importantes para você saber como o relacionamento
médico-paciente foi-se estreitando. Passamos a ser amigos e uma parte do sucesso do
tratamento, com certeza, se deu por conta dessa imensa cumplicidade que
estabelecemos.
Com
o tempo, passei a ter minhas intimidades. Quando entrava na sala da consulta,
punha minha mão para trás, como uma criança que quer fazer suspense. Algumas
vezes, eu amarrava, no pulso, um laço de fitas desses de embrulhar presentes.
Sentávamos à mesa e observávamos a evolução da recuperação. Falávamos da mão,
como se ela fosse uma terceira pessoa, sendo examinada por dois observadores:
-
Agora podemos passar para a fase de infiltrações, vamos ver como podemos
melhorar esta outra parte...
Um
dia, confessei:
- Cheguei a pensar que iria perder esse dedo aqui.
-
E eu estava o tempo todo tentando salvar a sua mão...
Fiquei
completamente impactada:
-
Como assim? Por que não me disse?
-
Não tive coragem... você me perguntava todas as vezes, quanto tempo levaria
para você escrever de novo!
Foi,
então, que entendi e como já tinha mais intimidade, não escondi:
-
No primeiro dia, quando você olhou para minha mão, tive a impressão de que
sentiu nojo.
-
Não, não era nojo... quando a olhei, tive a impressão de que tinha batalhas a vencer para salvá-la. E acessei meus
colegas para ver se passaria você para eles.
Foi
só então que soube que Doutor Paulo era professor universitário e, por todo o
tempo, foi assessorado por vários colegas para levar adiante meu tratamento. E
soube que, nos primeiros meses, eu tive uma equipe por trás dele, pronta para
entrar em ação, se fosse necessário.
Em
sua simplicidade e para me poupar de desesperos, ele levou toda a história sem
nada me dizer, para manter-me psicologicamente calma o suficiente no meu
restabelecimento. E resolveu assumir a responsabilidade de não me dizer. Percebi o tamanho do risco que assumiu como profissional.
Algo
na minha intuição o escolheu e algo, na intuição dele, assumiu este risco para
me ajudar a enfrentar uma das grandes dificuldades de minha vida.
Nesse dia, lembro-me bem, eu chorei de
gratidão. E, se já havia uma cumplicidade, passou a existir uma amizade
consagrada. Nesse período, ele acabou por me contar que estava pensando em fazer
uma pós-graduação, mas estava com dificuldades quanto à formulação do projeto.
Como professora universitária, passei a dar-lhe dicas de metodologia científica
e nossas consultas, além de consultas, passaram a ser encontro de amigos.
E
foram assim durante os quatro anos seguintes. Até que recebi alta completa.
Elegi
2006 como ano da gratidão. É que me dei conta de que vamos passando a vida e
não percebemos o quanto de pessoas e situações especiais nos ajudaram a viver e
a enfrentar terríveis dificuldades. E, é claro, Doutor Paulo era um dos nomes
de topo de lista.
Foi
muito difícil encontrá-lo, pois havia mudado de lugar de atendimento. Ainda era
na Penha, mas, agora, ele não tem mais um consultório e, sim, uma clínica.
Nunca vi um sucesso tão bem merecido!
Marquei
a consulta, sem me comunicar com ele. A secretária era outra. Perguntou se eu
tinha ficha. Disse-lhe que não sabia, pois fazia dez anos que não ia lá. Não
achou. Deveria estar guardada com fichas antigas, não imediatamente
accessíveis. Em 1992 não se usava computador! As fichas ainda eram feitas à mão! Eu disse que , provavelmente, ele nem se lembraria de mim, não
fazia diferença.
A sala de espera estava repleta. Eu, provavelmente, esperaria
muito. Mas, ali, nada disso importava. Pelo contrário, fiquei muito feliz por
vê-lo repleto de pacientes.
-D.
Eulalia, por favor, sua vez.
Entrei
na pequena, simples, mas aconchegante sala de consultas. Ele não mudara nada...
apenas os anos tinham-lhe dado uns abundantes quilinhos a mais. Ao me ver, ele
levantou-se imediatamente:
-
Como vai a dona da mão mais linda do mundo?
-
Você se lembrou!
-
Claro! Essa história é inesquecível!!!
Instintivamente,
repeti a brincadeira e coloquei minha mão para trás. Nos abraçamos, minha
gratidão transbordando pelos poros.
-
O que traz você aqui?
-
Isso!
Coloquei
minha mão sobre a mesa, na mesma postura em que a examinávamos antigamente. Ele
pegou minha mão, examinou-a e perguntou:
-
Ela está ótima, a recuperação foi fantástica!
-
Isso foi fruto do que seu trabalho, de sua dedicação e é por isso que estou
aqui.
-
Como assim?
Expliquei-lhe
sobre meu ano da gratidão e ele, com certeza, estava no topo da lista. Era um
dos primeiros que recebia minha visita.
É
claro que, para um médico acadêmico, sério e objetivo como ele, estava sendo
difícil de entender. Eu tinha saído da minha casa, distante, só para agradecer?
Muito esquisito.
-
Paulo. Esta mão, hoje, aplica Reiki. Ela continua sendo a base do meu trabalho.
Não serve apenas para o que servia antes, mas para muito mais. Como poderia
deixar passar em branco tanta gratidão?
Falamos
de tudo, de amenidades, de sua nova clínica, de nosso trabalho. Da vida. E...
tenho certeza... especialmente... da gratidão.
Voltei
para casa feliz. E, tenho certeza, deixei uma flor linda no coração daquele
anjo.