sábado, 8 de dezembro de 2012

O DETETIVE




Houve um tempo em que eu viajava muito para dar consultorias acadêmicas pelo Brasil. Era uma delícia conhecer novos lugares, novas pessoas, formas de educação diferentes,  por esses brasis afora. Isso se deu em finais da década de 90 e início do novo século.

De quebra, os anfitriões faziam questão absoluta de mostrar os “brincos” de suas cidades. Assim, conheci muitas delas pelas mãos de seus moradores e não como uma turista envolvida com panfletos e pressas descabidas de quem tem de descobrir o melhor em pouco tempo.

Algumas vezes, não dava tempo de passear. Tinha de voltar às pressas, para outros compromissos. Fui a Recife cinco vezes, por exemplo, e só consegui conhecer o aeroporto, o centro educacional e os trajetos que os envolvem. Foi preciso ir como turista, uma vez, para conhecer a Praia de Boa Viagem...

Mas, de modo geral, dava tempo para um bom convívio com os cidadãos. Belém, por exemplo foi uma ida muito proveitosa em todos os sentidos. E foi lá que conheci o primeiro porto transformado em área de lazer no Brasil... tomara que o do Rio fique tão bonito...

Mas voltemos à história que me fez escrever esse conto:

Fui a Florianópolis umas duas ou três vezes, para consultoria a professores e outros profissionais envolvidos com minha área de atuação. Como em todos os lugares em que estive, os contatos ficavam mais ou menos permanentes, com muitas orientações à distância. Naquele tempo, os mails não eram tão frequentes, mas os profissionais tinham permissão para se comunicarem por telefone ou eles mesmos tomavam essa iniciativa, quando necessitavam. Quase sempre ligavam para minha universidade, mas um ou outro profissional que eu percebia ser mais interessado, tinha o número de minha casa.

E foi assim que aconteceu.

Uma noite calma de verão carioca, lembro-me que voltava de um longo e delicioso passeio pela orla... cabeça tranquila de quem acaba de entrar em férias, após um semestre de muito trabalho e... de muitas consultorias.

O telefone tocou. Do outro lado da linha, uma voz tropeçada e engasgada começou a conversar comigo. No início, pensei que era trote, mas logo depois identifiquei uma das excelentes professoras da consultoria recém dada, em Florianópolis.

- Calma, fale mais devagar, o que você tem?

A voz, do outro lado, enrolada e esquisita, insistia numa comunicação impossível. Fiquei apreensiva, achei que ela estava passando mal e estava sozinha em casa. Pedi calma, mas a voz enrolada continuava a mesma até que... ouvi um som surdo e falta de comunicação total.

O telefone teria caído no chão ou a própria professora? E eu aqui, a quilômetros incontáveis de distância, sem saber o que fazer, sem outro número telefônico em mãos para ligar para alguma conhecida em comum!

Liguei para uma de minhas assistentes de projeto. Talvez ela tivesse o número de alguém. Negativo.  Liguei para o Centro Educacional. Atendeu o vigia da noite. Não sabia informar o número de ninguém! Liguei de novo para minha assistente, pois o marido é militar. Quem sabe, ele poderia me ajudar a fazer algum contato com alguém “oficial” de lá!

Na minha cabeça rodavam mil ideias! A professora estaria tendo um enfarto? Estaria desmaiada? Estaria precisando de algum socorro urgente? Apenas para a última pergunta eu tinha uma resposta: sim, com certeza, estaria!

O que fazer? O marido militar me aconselhou a ligar para a Polícia Militar de Florianópolis. Invoco o auxílio à telefonista e completo a ligação.  Do outro lado da linha, uma voz de poucos amigos pede o endereço do lugar para onde eu desejaria o socorro. Eu não tinha, só tinha o número do telefone (por sorte eu tinha!).

- A senhora é parente da vítima?

A professora já tinha virado vítima...

- Não. Apenas a conheço por ter ido lá a uma consultoria. Ela me ligou e algo caiu, não sei se o telefone ou ela mesma. Liguei de novo para lá e dá ocupado. Tenho certeza de que algo está muito errado e que ela precisa de ajuda urgente.

- Aconselho-a a telefonar para alguém que a conheça e que esta pessoa vá lá ver o que houve.

- Eu já teria feito isso se soubesse! Por favor, qualquer auxílio é imprescindível agora! Pode ser uma questão de vida ou de morte!

- Lamento, mas esse número de telefone não faz parte de nossa área de atuação. Não podemos fazer nada. Além disso, não tenho como saber o endereço.

- O senhor vai deixar por isso mesmo?

Minha voz, com certeza, pareceria esganiçada ou algo assim, pois eu estava simplesmente perplexa e me sentindo completamente impotente!

- Calma, minha senhora, a senhora já fez o que podia. E não há nada possível a fazer daqui.

Desliguei desesperada. Auxílio da telefonista de novo. Queria a Defesa Civil. Achei que seria a indicação certa, desta vez.

- Número do Corpo de Bombeiros de Florianópolis, por favor.

- Há vários, qual a senhora quer?

- Tem algum com um código que comece com esse número?

E dei o código de área do número que eu tinha.

- Não temos não senhora.

- Então, dê qualquer um!!!

Ela me deu um e liguei você pode imaginar como!!! Antes, já ligara de novo para a casa da professora e continuava dando ocupado. Com certeza, a mesma situação permanecia. Estaria viva? Eu já nem sabia o que pensar...

- Emergência do Corpo de Bombeiros, em que posso ajudar?

Contei a novela.

- Não tendo o endereço nada podemos fazer.

- Eu não acredito que vocês podem estar deixando uma pessoa morrer falando com essa calma! Alguma coisa tem de ser feita! Não posso eu mesma pegar um avião agora e ir achar o endereço dela aí para fazer alguma coisa. Por favor, só posso contar com vocês!

- Mas não podemos fazer nada, senhora. Nem sei se é da nossa área de atuação!

Queria xingar a mãe dele, mas o desespero nem deixou. Será que se fosse a mãe dele ele ficaria tão calmo e indiferente?

Desliguei o telefone. Liguei de novo para a professora. Nada... ocupado... andei pela casa como barata tonta... e... lembrei-me da Polícia Civil.

Se você leu o conto “O policial” sabe do que estou falando. Aliás, eu já tinha tido mais duas experiências positivas com a Polícia Civil – talvez conte um dia – e isso me inspirou.

Auxílio telefonista. Número da Polícia Civil de Florianópolis.

- Temos vários, senhora, qual a senhora quer?

Dei o  número que eu tinha, pedindo o mesmo código de área.

- Não temos nenhum.

E o tempo passando...

- Me dê qualquer um!

Ligo para a casa da professora. Ocupado. Você pode imaginar meu nível de estresse? Ligo para a Polícia Civil.

- Detetive (não me lembro do nome), em que posso ajudar?

Contei a novela.

- A senhora tem o endereço?

- Não, só tenho o número do telefone!

- Tem como conseguir o endereço com urgência?

- Não! Não tenho!

- Senhora, acalme-se um pouco, desligue o telefone, vá tomar um copo de água com açúcar, que vou tomar as providências necessárias e muito em breve lhe darei retorno.

Desliguei estupefata. O homem me mandou tomar um copo de água com açúcar e esperar! Estou pirando?

Fui à cozinha, não sabia o que fazer. Tomei o tal copo de água com açúcar. Ele estaria me enrolando e ficaria por isso mesmo?

Liguei para minha assistente. Falei com o marido.

- O que vamos fazer?

- Eulalia, daqui do Rio não há mais nada a fazer. Ele disse para esperar! Dê uns vinte minutos, ele disse que iria retornar!

Contei um dos “vinte minutos” mais longos de que posso me lembrar. Houve outros, em outras situações de vida, mas esses também me marcaram profundamente. Eu mal conhecia a tal professora, mas a situação era totalmente crítica e escapava ao meu controle. Eu nada mais podia fazer! Se o chão da minha sala fosse de terra, teria gasto, com certeza. Não conseguia parar de andar, não conseguia sentar.

Uns vinte minutos depois, o telefone toca.

- Sra Eulalia?

- Sim!

- Detetive (não lembro do nome). Estou ao lado da professora. Ela já está sendo socorrida, está bem.

- Como você conseguiu acha-la? Como conseguiu entrar? Como posso agradecer? O que ela tem?

Todas as perguntas amontoadas de uma vez só. Ouvi uma voz risonha do outro lado:

- Sou detetive, não sou? Ela está sendo socorrida, não se preocupe, logo estará bem.

- O que ela tem?

A gentileza e delicadeza do outro lado, me poupou da resposta:

- Não se preocupe, houve um pequeno desmaio, mas ela já está bem. Estou com uma vizinha, aqui ao lado, que tinha a chave da porta. Amanhã ela estará novamente em forma, foi mesmo só um mal estar.

Aproveitei a ressaca de toda a tensão e desabafei:

- Não é a primeira vez que a Polícia Civil me salva de um aperto. E você só me comprovou isso, mesmo sendo de outro Estado.

E desfiei todo o rosário de angústias que passei até chegar a ele. Em seguida, pedi:

- Quero seu nome todo, nome de seus superiores, endereço para enviar uma carta contando toda essa minha história.

- Não fiz mais do que meu dever, senhora.

- Eu sei, mas os outros também tinham um dever a cumprir e não o fizeram. Sei que, provavelmente, pode ter sido um desleixo de quem atendeu a ligação, comprometendo o bom nome da corporação em si, mas o fato é que não me ajudaram e nem a quem estava precisando de socorro!

Ele me passou os nomes solicitados, endereços e todos os dados necessários. No dia seguinte, fiz a melhor carta de elogios que já escrevia na vida e mandei.

Não me lembro do nome do detetive... até andei buscando a tal carta por aqui, antes de escrever o conto para resgatar o nome desse meu herói. Acho que não a tenho mais.

Onde ele estiver, no entanto, espero que esteja sempre protegido pela sorte e pelo merecimento de ter sido o anjo da guarda que me salvou num momento de desespero. Um anjo e um cavalheiro, pois, na hora H, me poupou de saber o real motivo do desfalecimento.

Não era coração, não era doença... nada disso. Motivo da voz enrolada e discurso desconexo: ela tinha tomado o maior porre da vida e caíra no sono, no meio da ligação.

E cismou de ligar logo para mim para desafogar suas mágoas. Me pegou no contrapé a quilômetros de distância, nesse imenso Brasil.

Mas o detetive, além de bom profissional, era um perfeito cavalheiro e me poupou dessa. Só fui saber dias depois, por outra professora, bem íntima dessa tal. E soube, também, da vergonha que ela mesma tinha ficado quando lhe contaram como o detetive chegou até ela.

E, evidentemente, nunca mais me ligou.

A gente passa por cada uma...



5 comentários:

Dani Dias disse...

kkkkk, tô rindo muito dessa história! Inacreditável! Aliás, só acredito q é vc q tá contando... bebida e telefone, combinação q nunca dá certo! Se beber, não ligue.

Anônimo disse...

Realmente uma história e tanto. Estou rindo tanto quanto a amiga que postou o primeiro comentário. Aliás, achei ótima a ideia dela: se beber, não ligue! E se ligar, não ligue para a Eulalia, porque ela não deixa por menos: vai até o fim do mundo para tirar a limpo a história!
E de uma próxima vez, Eulalia,que algo do tipo te acontecer, não ligue ...
bjs, décio

Eulalia disse...

Eu é que estou rindo dos comentários!

Depois do aperto que passei, só mesmo com esses comentários!

Polly Moraes disse...

Nossa, que aflição!
Na realidade tem dois heróis nessa história, você,que moveu mundos e fundos pra ajudar alguém do outro lado do Brasil, e o detetive, que fez um trabalho dele brilhantemente, (apesar do caso não ser de saúde, rsrsrs)!
Mas o que vale é a intenção,não é?
Mas um conto hipnotizante, Eulália :D

Eulalia disse...

Oi, Polly, foi mesmo uma "aflição" como você disse...

Obrigada pela visista!

Tenho entrado em seu blog... mas você tem escrito pouco, né?

beijos