sábado, 25 de fevereiro de 2012

O FUSCA


Quem da minha geração não teve um fusca? Eu, claro, também tive o meu. Um fusquinha lindo, azul marinho, de segunda mão. Aprendi a dirigir em 1980, mas ele já estava lá, esperando que eu o dirigisse, desde 78, doido para ser meu dono. Isso mesmo. Meu coração apaixonou-se por ele desde o primeiro beijo.

Esse fusquinha tem mesmo mil histórias, a começar pelo fato de que nunca me deixou na mão. Era velhinho velhinho velhinho... mas nunca me deixou na mão. Quando ele não queria pegar, nunca era comigo. E a única trapaça que ele fez foi furar um pneu e, mesmo assim, na porta de casa. Um companheirão.

Ah, teve outra trapaça e desta, ainda me lembro com o coração apertado: foi na hora de vende-lo. Estava difícil me separar dele e logo descobri que estava difícil para ele também se separar de mim. Isso foi em 84, se não me engano. Ocorre que tínhamos comprado um Gol e tínhamos de levar nosso fusquinha, como entrada, para a loja que, por sinal, ficava em Bento Ribeiro. Para quem conhece o Rio, é longe pra caramba de Copacabana. Eu estava triste na ida e nem sequer quis dirigi-lo.

Descobri que ele também estava à beira do enfarte quando pifou no meio do caminho. Um mecânico de rua foi chamado e viu que tinha rompido a correia do ventilador. Colocou uma novinha e lá fomos nós... mas fomos só por uns quilômetros. Ele pifou de novo! Chamamos outro mecânico. Correia do ventilador novinha rompida. Era óbvio que ele estava tendo um problema sério de ventilação. Uma embolia? Um enfarte? Não sei... algo para combinar com a dona que estava a ponto de desistir de vendê-lo e guardá-lo em um museu.

Não sou do tipo de me apegar a coisas materiais. Por que aquele fusca fazia isso comigo? Tive uma boa meia dúzia de carros depois dele e nenhum me despertou tanta compaixão na hora da venda. Eu sabia que precisávamos de um carro novo, mas meu coração olhava para o fusca como um membro da família. Afinal, fora com ele que eu dera os primeiros passos ao volante. Na verdade, estava desconfiada que ele praticamente tinha me ensinado a dirigir...

Decididamente, aquele fusca tinha história. E tinha mesmo. Muitas. Mas vou escolher apenas uma para este conto.

Ocorre que eu estava fazendo meu curso de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, naquela época, ainda era na Av. Chile, no Centro da cidade, e não na Ilha do Governador, como é hoje. O curso de Letras funcionava em um prédio velho nem me lembro mais em que trecho enfurnado da Av. Chile e o curso de pós, para completar, funcionava no subsolo. E você pode imaginar em que condições...

As instalações do Fundão estavam prometidas, entrava ano, saía ano, mas eu brincava com o meu orientador de tese que não se mudariam antes de eu terminar o curso. Motivo simples: a Av. Chile fica logo ali... já o Fundão, como o próprio nome indica...

O fato é que minha boca funcionou. Fui a última tese defendida, em 1984, na Av. Chile. Dois meses depois, começou a mudança para as magníficas novas instalações da Ilha do Fundão. Até lá, no entanto, mais precisamente até 1984, meu fusquinha me levava de casa para a pós, de casa para a universidade onde eu dava aula e de casa para o sonho. Em síntese, eu já me considerava cabeça, tronco e rodas.

E foi justamente por causa do doutorado que vivi um dos melhores convívios acadêmicos de minha vida, tendo o meu fusquinha como sala de visitas!

É que eu sonhava por conhecer um lingüista chamado Bernard Pottier. Tinha lido toda sua obra e o imaginava portentoso, em sua cátedra da Sorbonne. Quem sabe, um dia, iria a Paris e pediria uma audiência... será que me seria concedida?

Não foi necessário. Ocorre que o dito lingüista era amigo do catedrático de Língua Portuguesa da UFRJ. Quem será que se lembra do olhar taciturno, compenetrado e gramatical do Professor Celso Cunha? Pois é, esse mesmo. E foi um de meus professores, logo no primeiro semestre de doutorado. Foi ele quem trouxe, como convidado, o eminente catedrático da Sorbonne para os subsolos da Avenida Chile. A disciplina intitulava-se Semântica e Sintaxe aplicadas à Língua Portuguesa e eu fui uma das primeiras a me matricular, sem dúvida.

No primeiro dia de aula, com o coração aos pulos e todos os livros relidos durante as férias, lá estava eu embevecida, diante daquele Professor que, desde o primeiro instante, num português impecável, nos falava com uma simplicidade acadêmica inesperada, sobre os meandros de sua disciplina.

De repente, a porta se entreabriu e a cabeça do Professor Celso Cunha apareceu compenetrada:

- Quem está de carro?

Vislumbrei uma emergência, para uma interrupção tão brusca. Eu e meu fusquinha estávamos ali, mas confesso que titubeei diante da possibilidade de ter de abandonar logo a primeira aula no meio. Mas, enfim, o coração falou mais forte:

- Eu estou, professor.

- Então, faça o favor de levar o Pottier para o Hotel, no final da aula, porque houve um imprevisto e eu vou precisar sair.


Assim, de sopetão! Eu, levar o eminente e digníssimo Dr. Bernard Pottier para o hotel, sozinha? O que eu vou conversar com ele? Meu estômago deu duas voltas no ar e eu pensei que nunca mais ele voltaria a se aquietar no lugar! Mas não tinha jeito, a sentença estava lançada. Professor Pottier lançou-me um simpático sorriso francês e me agradeceu. Juro que ele deve ter notado a cor amarela do meu sorriso.

Evidentemente, nenhum colega quis me acompanhar para me ajudar a contornar a delicada situação. Tive mesmo que enfrentar sua magnificência sozinha. Sozinha, não: meu fusca e eu.

O fato é que consegui leva-lo com muita cerimônia e dirigindo com redobrados cuidados até o Hotel Vermont, em Ipanema. Ufa. Entregue. Muito gentil, ele me cumprimentou, na saída, dizendo:

- Espero não te-la desviado muito de seu caminho de casa.

- De modo algum, é meu caminho, foi um imenso prazer!


Prazer tinha sido, embora minha respiração ainda fluísse aos trancos! Mas eu ia dizer que minha casa ficava em Copacabana, justamente entre o centro da cidade e Ipanema, e que eu tinha de dar uma volta incrível em pleno rush para deixa-lo no hotel? Nem por um decreto.

- Bem, já que é seu caminho, você poderia passar por aqui para me buscar e trazer sempre?

Ouvi minha voz responder, automaticamente, já que minha mente e minhas emoções não conseguiam atinar com o que estava acontecendo:

- Claro professor, será uma honra para mim!

Professor Pottier dava um curso intensivo de dois meses para nós, o que significava três aulas por semana, em vez de uma, como ocorria com as outras disciplinas. Isso quis dizer que eu passei a conviver com ele, de Ipanema para o Centro da Cidade, ida e volta, segundas, quarta e sextas por toda essa temporada.

Nas primeiras vezes, certamente percebendo o meu embaraço, ele mesmo se ocupou de falar a maior parte do tempo. Mas, decorridos alguns dias, tendo percebido que eu era a única aluna que realmente conhecia sua obra e estava intensamente envolvida com a disciplina, passei a ter aulas particulares de lingüística atravessando a cidade. Passei, não, passamos: eu e meu fusquinha.

Aos poucos, comecei a me sentir à vontade e, em um mês, descobri que muito mais do que o excelente lingüista que sempre fora, Pottier era um filósofo moderno para ninguém botar defeito, um homem conhecedor da alma humana, uma jóia de ser humano, um homem muito mais do que um estudioso, um experiente cidadão do mundo. Falávamos sobre tudo, mas principalmente sobre a vida, sobre ética, sobre ser professor, sobre ser humano.

Com ele, pela primeira vez, fui apresentada ao Tao. E, de certa forma, fui por ele impulsionada a procurar o Tai Chi Chuan como forma filosófica de viver e não apenas o que o Ocidental supõe ser o Tai Chi.

No último dia em que o levei ao Hotel, conheci sua gentil esposa, finalmente. Uma professora de Literatura Hispânica, tão gentil como o marido e de sorriso suave e doce.

Ao me despedir, disse-lhe, já com saudades;

- Quando vender o meu fusca, acho que vou tirar o assento do carona para guardar para o museu Bernard Pottier, no Brasil.

Ele, sorridente, me respondeu:

- Basta que me guarde e também a nossas conversas em seu coração. Seu fusca foi muito gentil em me receber.

“O fusquinha” , minha única fiel testemunha da realização deste sonho de minha vida.

Foi nele que aprendi a enfrentar o trânsito e ver que os ônibus são ônibus, os táxis são táxis, os carros são carros e não monstros inquietos no trânsito carioca. Foi ele que, tantas vezes, enfrentou inundações na volta do trabalho e nunca se afogou. Foi ele que me viu sorrindo e chorando em seu volante, em minha insegura mocidade, ronronando como um gatinho para que meu coração ouvisse...

4 comentários:

Celina disse...

Ai Eulália, que delícia de conto! A começar pelo fusquinha, que eu também já tive um, aliás dois para chamar de meu! E que delícia de encontro... Amei!

Celina disse...

PS assim que chegar e "me recuperar do choque termico" agendamos nosso curso intensivo de samartphone!
bjs

Eulalia disse...

Pois é, fusca é fusca, né?
Lembrança de amor prá sempre!
Quanto ao curso:
Oba! Feito! Prometo um ar condicionado. (sorriso)

pblower disse...

Lembro do fusca. Lembro de seu encontro com B Pottier. Boas histórias que me fazem lembrar que eu também já tive uma Rural Willis que era como gente!