Houve
um tempo em que eu viajava muito para dar consultorias acadêmicas pelo Brasil. Era
uma delícia conhecer novos lugares, novas pessoas, formas de educação
diferentes, por esses brasis afora. Isso
se deu em finais da década de 90 e início do novo século.
De
quebra, os anfitriões faziam questão absoluta de mostrar os “brincos” de suas
cidades. Assim, conheci muitas delas pelas mãos de seus moradores e não como
uma turista envolvida com panfletos e pressas descabidas de quem tem de
descobrir o melhor em pouco tempo.
Algumas
vezes, não dava tempo de passear. Tinha de voltar às pressas, para outros compromissos. Fui a Recife cinco vezes, por exemplo, e só
consegui conhecer o aeroporto, o centro educacional e os trajetos que os
envolvem. Foi preciso ir como turista, uma vez, para conhecer a Praia de Boa
Viagem...
Mas,
de modo geral, dava tempo para um bom convívio com os cidadãos. Belém, por
exemplo foi uma ida muito proveitosa em todos os sentidos. E foi lá que conheci
o primeiro porto transformado em área de lazer no Brasil... tomara que o do Rio
fique tão bonito...
Mas
voltemos à história que me fez escrever esse conto:
Fui
a Florianópolis umas duas ou três vezes, para consultoria a professores e
outros profissionais envolvidos com minha área de atuação. Como em todos os
lugares em que estive, os contatos ficavam mais ou menos permanentes, com
muitas orientações à distância. Naquele tempo, os mails não eram tão frequentes,
mas os profissionais tinham permissão para se comunicarem por telefone ou eles
mesmos tomavam essa iniciativa, quando necessitavam. Quase sempre ligavam para
minha universidade, mas um ou outro profissional que eu percebia ser mais
interessado, tinha o número de minha casa.
E
foi assim que aconteceu.
Uma
noite calma de verão carioca, lembro-me que voltava de um longo e delicioso
passeio pela orla... cabeça tranquila de quem acaba de entrar em férias, após
um semestre de muito trabalho e... de muitas consultorias.
O
telefone tocou. Do outro lado da linha, uma voz tropeçada e engasgada começou a
conversar comigo. No início, pensei que era trote, mas logo depois identifiquei
uma das excelentes professoras da consultoria recém dada, em Florianópolis.
- Calma, fale
mais devagar, o que você tem?
A
voz, do outro lado, enrolada e esquisita, insistia numa comunicação impossível.
Fiquei apreensiva, achei que ela estava passando mal e estava sozinha em casa.
Pedi calma, mas a voz enrolada continuava a mesma até que... ouvi um som surdo
e falta de comunicação total.
O
telefone teria caído no chão ou a própria professora? E eu aqui, a quilômetros
incontáveis de distância, sem saber o que fazer, sem outro número telefônico em
mãos para ligar para alguma conhecida em comum!
Liguei
para uma de minhas assistentes de projeto. Talvez ela tivesse o número de
alguém. Negativo. Liguei para o Centro
Educacional. Atendeu o vigia da noite. Não sabia informar o número de ninguém!
Liguei de novo para minha assistente, pois o marido é militar. Quem sabe, ele
poderia me ajudar a fazer algum contato com alguém “oficial” de lá!
Na
minha cabeça rodavam mil ideias! A professora estaria tendo um enfarto? Estaria
desmaiada? Estaria precisando de algum socorro urgente? Apenas para a última
pergunta eu tinha uma resposta: sim, com certeza, estaria!
O
que fazer? O marido militar me aconselhou a ligar para a Polícia Militar de
Florianópolis. Invoco o auxílio à telefonista e completo a ligação. Do outro lado da linha, uma voz de poucos
amigos pede o endereço do lugar para onde eu desejaria o socorro. Eu não
tinha, só tinha o número do telefone (por sorte eu tinha!).
- A senhora é
parente da vítima?
A
professora já tinha virado vítima...
- Não. Apenas a
conheço por ter ido lá a uma consultoria. Ela me ligou e algo caiu, não sei se
o telefone ou ela mesma. Liguei de novo para lá e dá ocupado. Tenho certeza de
que algo está muito errado e que ela precisa de ajuda urgente.
- Aconselho-a a
telefonar para alguém que a conheça e que esta pessoa vá lá ver o que houve.
- Eu já teria
feito isso se soubesse! Por favor, qualquer auxílio é imprescindível agora!
Pode ser uma questão de vida ou de morte!
- Lamento, mas
esse número de telefone não faz parte de nossa área de atuação. Não podemos
fazer nada. Além disso, não tenho como saber o endereço.
- O senhor vai
deixar por isso mesmo?
Minha
voz, com certeza, pareceria esganiçada ou algo assim, pois eu estava
simplesmente perplexa e me sentindo completamente impotente!
- Calma, minha
senhora, a senhora já fez o que podia. E não há nada possível a fazer daqui.
Desliguei
desesperada. Auxílio da telefonista de novo. Queria a Defesa Civil. Achei que
seria a indicação certa, desta vez.
- Número do
Corpo de Bombeiros de Florianópolis, por favor.
- Há vários,
qual a senhora quer?
- Tem algum com
um código que comece com esse número?
E
dei o código de área do número que eu tinha.
- Não temos não
senhora.
- Então, dê
qualquer um!!!
Ela
me deu um e liguei você pode imaginar como!!! Antes, já ligara de novo para a
casa da professora e continuava dando ocupado. Com certeza, a mesma situação
permanecia. Estaria viva? Eu já nem sabia o que pensar...
- Emergência do
Corpo de Bombeiros, em que posso ajudar?
Contei
a novela.
- Não tendo o
endereço nada podemos fazer.
- Eu não
acredito que vocês podem estar deixando uma pessoa morrer falando com essa
calma! Alguma coisa tem de ser feita! Não posso eu mesma pegar um avião agora e
ir achar o endereço dela aí para fazer alguma coisa. Por favor, só posso contar
com vocês!
- Mas não
podemos fazer nada, senhora. Nem sei se é da nossa área de atuação!
Queria
xingar a mãe dele, mas o desespero nem deixou. Será que se fosse a mãe dele ele
ficaria tão calmo e indiferente?
Desliguei
o telefone. Liguei de novo para a professora. Nada... ocupado... andei pela
casa como barata tonta... e... lembrei-me da Polícia Civil.
Se
você leu o conto “O policial” sabe do que estou falando. Aliás, eu já tinha
tido mais duas experiências positivas com a Polícia Civil – talvez conte um dia
– e isso me inspirou.
Auxílio
telefonista. Número da Polícia Civil de Florianópolis.
- Temos vários,
senhora, qual a senhora quer?
Dei
o número que eu tinha, pedindo o mesmo
código de área.
- Não temos
nenhum.
E
o tempo passando...
- Me dê qualquer
um!
Ligo
para a casa da professora. Ocupado. Você pode imaginar meu nível de estresse?
Ligo para a Polícia Civil.
- Detetive (não
me lembro do nome), em que posso ajudar?
Contei
a novela.
- A senhora tem
o endereço?
- Não, só tenho
o número do telefone!
- Tem como
conseguir o endereço com urgência?
- Não! Não
tenho!
- Senhora,
acalme-se um pouco, desligue o telefone, vá tomar um copo de água com açúcar,
que vou tomar as providências necessárias e muito em breve lhe darei retorno.
Desliguei
estupefata. O homem me mandou tomar um copo de água com açúcar e esperar! Estou
pirando?
Fui
à cozinha, não sabia o que fazer. Tomei o tal copo de água com açúcar. Ele
estaria me enrolando e ficaria por isso mesmo?
Liguei
para minha assistente. Falei com o marido.
- O que vamos fazer?
- Eulalia, daqui
do Rio não há mais nada a fazer. Ele disse para esperar! Dê uns vinte minutos,
ele disse que iria retornar!
Contei
um dos “vinte minutos” mais longos de que posso me lembrar. Houve outros, em
outras situações de vida, mas esses também me marcaram profundamente. Eu mal
conhecia a tal professora, mas a situação era totalmente crítica e escapava ao
meu controle. Eu nada mais podia fazer! Se o chão da minha sala fosse de terra, teria gasto, com certeza.
Não conseguia parar de andar, não conseguia sentar.
Uns
vinte minutos depois, o telefone toca.
- Sra Eulalia?
- Sim!
- Detetive (não
lembro do nome). Estou ao lado da professora. Ela já está sendo socorrida, está
bem.
- Como você
conseguiu acha-la? Como conseguiu entrar? Como posso agradecer? O que ela tem?
Todas
as perguntas amontoadas de uma vez só. Ouvi uma voz risonha do outro lado:
- Sou detetive,
não sou? Ela está sendo socorrida, não se preocupe, logo estará bem.
- O que ela tem?
A
gentileza e delicadeza do outro lado, me poupou da resposta:
- Não se
preocupe, houve um pequeno desmaio, mas ela já está bem. Estou com uma vizinha,
aqui ao lado, que tinha a chave da porta. Amanhã ela estará novamente em forma,
foi mesmo só um mal estar.
Aproveitei
a ressaca de toda a tensão e desabafei:
- Não é a
primeira vez que a Polícia Civil me salva de um aperto. E você só me comprovou
isso, mesmo sendo de outro Estado.
E
desfiei todo o rosário de angústias que passei até chegar a ele. Em seguida,
pedi:
- Quero seu nome
todo, nome de seus superiores, endereço para enviar uma carta contando toda
essa minha história.
- Não fiz mais
do que meu dever, senhora.
- Eu sei, mas os
outros também tinham um dever a cumprir e não o fizeram. Sei que,
provavelmente, pode ter sido um desleixo de quem atendeu a ligação, comprometendo
o bom nome da corporação em si, mas o fato é que não me ajudaram e nem a quem
estava precisando de socorro!
Ele
me passou os nomes solicitados, endereços e todos os dados necessários. No dia
seguinte, fiz a melhor carta de elogios que já escrevia na vida e mandei.
Não
me lembro do nome do detetive... até andei buscando a tal carta por aqui, antes
de escrever o conto para resgatar o nome desse meu herói. Acho que não a tenho
mais.
Onde
ele estiver, no entanto, espero que esteja sempre protegido pela sorte e pelo
merecimento de ter sido o anjo da guarda que me salvou num momento de
desespero. Um anjo e um cavalheiro, pois, na hora H, me poupou de saber o real
motivo do desfalecimento.
Não
era coração, não era doença... nada disso. Motivo da voz enrolada e discurso
desconexo: ela tinha tomado o maior porre da vida e caíra no sono, no meio da
ligação.
E cismou de ligar logo para mim para desafogar suas mágoas. Me pegou
no contrapé a quilômetros de distância, nesse imenso Brasil.
Mas
o detetive, além de bom profissional, era um perfeito cavalheiro e me poupou
dessa. Só fui saber dias depois, por outra professora, bem íntima dessa tal. E soube,
também, da vergonha que ela mesma tinha ficado quando lhe contaram como o
detetive chegou até ela.
E,
evidentemente, nunca mais me ligou.
A
gente passa por cada uma...