sábado, 20 de agosto de 2011

OI, GATINHA!


Fui professora de Cultura Clássica num conceituadíssimo colégio do Rio de Janeiro. Tudo aconteceu porque tive, na universidade, um aluno de grego que era monge e, portanto, sabia muito mais grego do que eu, após sete anos de seminário numa das ordens monásticas mais conceituadas do Brasil. Pois então: após o semestre de aulas, o aluno me convidou a dar aulas no tal colégio, já que ele se licenciaria e não tinha nenhum outro monge que pudesse substitui-lo naquele momento. Eu nunca pensara em dar cultura clássica no curso fundamental. Aliás, não há essa disciplina em qualquer curso fundamental no Brasil. Não que eu saiba. Este colégio, no entanto, tinha esse privilégio e seus alunos tinham (ou ainda tem, não sei) disciplinas de conhecimentos gerais que primam pela ousadia do currículo.

O fato é que acabei aceitando, mais pela aventura da experiência e, simplesmente, adorei!

Os meninos eram ao que corresponderia, hoje, ao último ano do ensino fundamental. Para a minha geração, quarta série ginasial, para a geração um pouco mais nova, oitava série. Meninos entre 15 e 16 anos, no máximo.

Como falar sobre Cultura Clássica para essa garotada, eu, acostumada a dar aulas em ensino universitário? Foi, no entanto, uma experiência magnífica, que contou com o total apoio do Reitor do colégio, um monge à altura da função, homem de mente avançada nesses aspectos, embora muito conservador em outros. O fato é que nos tornamos grandes amigos e, não raro, me via envolvida em longos papos em sua sala particular, apesar do meu pouco tempo disponível. O monge era bom de conversa e cultíssimo. Papear com ele era um brinde dos deuses. Sem contar que me deu carta branca para a montagem do curso. Carta branca, claro, apresentada a ele no final de cada planejamento, pois em colégios de padres e freiras, a democracia é sempre conferida pelo prior da ordem, no mínimo. Mas tudo bem. O homem era bem avançado e aprovava tudo. Por outro lado, como eu tinha sido de colégio de freiras, sabia muito bem como dourar a minha pílula para apresentar o meu conteúdo de modo que soasse bem a seus olhos e ouvidos, isto é, argumentando o porquê de cada conteúdo que lhe parecia muito leigo para os fins desejados.

Embora eu mesma tivesse planejado, o programa, no final, a meu ver, ficou puxadíssimo. Será que os meninos agüentariam? Ele me garantiu que sim e sugeriu que eu fizesse uma experiência. Que nível! Aguentaram, ou melhor, agüentamos, eles e eu, um ano bem apertado de muito conteúdo e mútua aprendizagem. Eles, de conteúdo, eu de lidar com os jovens. Mas foi uma adaptação fabulosa. No meio do ano, lá estava eu dividindo a turma em dois e fazendo gincana, em plena sala de aula, sobre o conteúdo da Odisséia. Alguma coisa de língua grega acabou entrando, principalmente, etimologia para entender melhor o português. Eu inventava coisas para atrai-los e se sentirem diferentes. Eles gostavam. Quando eu entrava em sala, os cumprimentava: kairete = oi, literalmente, “alegrai-vos”, em grego clássico, mas registro informal, bem no estilo do século IV a. C.. Eles correspondiam, em coro: kaire = oi, literalmente, “alegra-te”.

Assim, eles se sentiam únicos, em todo o colégio e eu ia conquistando o meu espaço. E viva a adolescência! Enfim, era uma festa. Saía exausta, após três turmas, duas vezes por semana, mas saía feliz. Como eu tinha mais de mil slides para mostrar, as aulas eram enfeitadas com muitas informações e muitos mitos. Eu tinha de inventar coisas que ajudassem a outras disciplinas e passava uma boa parte das aulas falando sobre o século VI a.C., quando a Grécia contemplou o mundo com muitas descobertas que foram o berço da ciência moderna. Eles aprenderam, em primeiro lugar, sobre essas grandes descobertas, que poderiam render juros nas aulas de ciências, matemática e história, para regozijo do Reitor.

Estava dando certo. Atravessamos, juntos, os séculos, até a época de Alexandre, o Grande, quando aprenderam, por exemplo, quem era Hipásia, uma matemática, única mulher que fez parte do grupo de estudiosos da Biblioteca de Alexandria. Coisas desse tipo. Confesso que tive de estudar muito para conseguir tantas novas informações, para mantê-los entretidos e atentos a uma disciplina no meio de tantas outras consideradas fundamentais ao ensino básico, como matemática, português, etc. Era mesmo um desafio, mas eu acho que conseguia mantê-los ocupados. E parece que gostavam, pois fui agraciada, mais de uma vez, em suas festas de formatura.

Eu queria que eles se lembrassem da Grécia para toda vida e tentava atrai-los com minhas artimanhas, comparando a literatura grega com a literatura brasileira, passando pelas outras disciplinas, tentando fazê-los caírem nas armadilhas como Cilas ou Caribdes, tentando enfeitiçá-los como Circe e atraindo suas atenções para heróis ardilosos como Ulisses e corajosos ou impetuosos como Aquiles. Lembrava-lhes a beleza da louríssima e bela Helena de Troia, comparando-a historicamente com a luta pelo dourado trigo cobiçado pelos gregos e tentava, de leve, encorajá-los a compararem estes mitos com as lutas comerciais dos tempos modernos. Acho que, de certa forma, consegui.

Essa era a parte acadêmica. O problema maior, no entanto, era mesmo o da disciplina. Afinal, eram cerca de 20 jovens, todos meninos e todos a mil, numa idade que ninguém segura esses hormônios! Ufa... e metidos a homens, claro!

Mas um deles era o que mais se destacava, não só porque parecia mais amadurecido, como também queria mostrar-se mais homenzinho. Um belo rapaz, de porte principesco, muito inteligente, sagaz, perspicaz. Um perigo para as meninas, decerto. Houvesse alunas no colégio, seria um desastre às avessas. Mas havia só meninos (ou há até hoje, não sei). O fato é que ele se sentia mesmo o máximo. Não fosse tão simpático, seria uma chatice. Mas era simpático. Um pouquinho esnobe, talvez como marca desse período adolescente, mas muito simpático. Assim, comportava-se com, digamos, uma certa superioridade sobre os demais, não entrando em brincadeiras tão comuns em classes dessa idade. Mostrava-se superior, como quem quer ser homem feito antes da hora. Eu olhava tudo isso achando certa graça, mas, é claro, levando muito a sério. Afinal, para adolescentes, essa postura exige mesmo seriedade e respeito. Assim, fui aprendendo aqui e ali, tentando ser gentil, sedutora, tentando equilibrar a disciplina ao consentimento, o mais que podia. Embora divertido, confesso que não era fácil. E com eles aprendi a ter muito jogo de cintura. Eu não tive filhos, o que mais dificultava a tarefa. Por outro lado, me fazia mais atenta... não me deixava vacilar. Seria a minha perdição.

De modo geral, no entanto, estava me dando bem, até que, um dia, apareceu o meu grande desafio: o tal rapaz, louco para se mostrar mais do que um simples jovem, passa pelo corredor e, ao me ver, cumprimenta:

- Oi gatinha!

Chi... essa eu não podia deixar passar. Afinal, era sua professora! O que fazer? Ele passou incólume, mas apenas por segundos. Eu o chamei. Enquanto ele voltava, eu não sabia, ainda, o que fazer. Ele estava entre a postura de homem e menino, desafiando minha reação. Eu não queria estragar a camaradagem, pois ele era o líder da turma. E eu já aprendera, há quinze anos antes, que não se bobeia com aluno líder. Você sabe disso, se leu o conto “Reginaldo”...

Mas, voltemos ao corredor: ele me pegara de saia justa. Eu teria de achar um limite. E rápido. E sem precisar pedir a ajuda de inspetores ou autoridades supremas, pois este é o caminho mais curto para você perder autoridade numa turma. Não sei qual deus olímpico me salvou. Mas a saída funcionou:

- Vamos fazer uma coisa: enquanto você for meu aluno, infelizmente, não poderá brincar comigo desse jeito. Depois que você passar de ano, tudo bem, ok?

Deu certo! Ele sorriu, acedeu com a cabeça e simplesmente respondeu:

- Tudo bem, professora, é justo.

Estávamos no final do ano, o episódio passou e me esqueci, completamente. Fui convidada como homenageada na formatura dessa turma e os vi, todos lindos, de terno, passando para o que chamávamos, na época, segundo grau, atual ensino médio.

No ano seguinte, lá estava eu lecionando para a turma seguinte, quando, de repente, o tal jovem passa pelo corredor, pára na porta da minha sala, diante de toda a turma e me cumprimenta:

- Oi, gatinha!

Que safado! Ele esperara meses para me fazer cumprir o trato. E não tinha saída, pois a postura tinha sido consentida por mim! Na frente de toda a turma, que me olhava para ver o que eu faria. Apenas me veio à cabeça responder:

- Oi, gatão!

Ele sorriu, a turma riu, eu desabei de alívio e tudo ficou por isso mesmo. Mas, todos os dias em que eu estava no colégio, o jovem arranjava um jeito de me interpelar com o mesmo cumprimento. Era uma auto-afirmação consentida. Coisas de adolescente. Um dia, o fato se deu junto ao coordenador geral do colégio, que era também o meu coordenador e foi bater nos costados do tal Reitor, que me chamou para explicações. Colégio de padre é assim mesmo. Tive de contar toda a história para o meu amigo Reitor. Rimos juntos, no final, e ficou por isso mesmo.

Os anos passaram, eu saí do colégio, em 1987, em decorrência de um concurso para uma universidade pública. Saí do colégio e também da tal universidade particular, onde ficara de 1974 a 1987.

Deixei para trás as boas lembranças de como uma educação esmerada pode ser dada a qualquer um, desde que haja vontade política. Aqueles jovens de 15 anos sabiam mais sobre cultura clássica do que muita gente adulta que eu conheço. E um tipo de cultura que poderia levá-los a uma prática para a vida. Foi mesmo uma experiência, digamos, inebriante. Exaustiva, mas inebriante. Boas recordações.

Um dia, uns vinte anos depois, eu estava saindo de um consultório médico, mais especificamente de meu otorrino e entrei num elevador super lotado. Entre os vários passageiros, um homem de terno estava acompanhado de um garoto de uns 10 anos. Chamou-me a atenção a gracinha de menino. Sorri para ele e não resisti a piscar os olhos, amigável. O menino sorriu. Não cheguei a levantar os olhos para o alto homem, que deveria ser o seu pai, até que ouvi a frase:

- Oi gatinha!

Ato reflexo, já sorrindo, respondi:

- Oi gatão!

O menino estudava no mesmo colégio do pai, que me informou ainda existir a tal disciplina, na mesma série pela qual o menino passaria anos após. Disse-me que sentia muito em não poder ser eu professora também do filho dele.

Nos despedimos amigáveis, sorridentes, saudosos...

Ele estava lindo vestido de pai! E eu estava linda, vestida de ex-professora.

Um comentário:

Celina disse...

são as delícias de ser professora...