sábado, 13 de agosto de 2011

A ILHA


Dei aula em Campo Grande, zona rural, como você sabe, se leu o conto “Reginaldo”.

Para quem mora em Copacabana, é bem longe. E, com os recursos da década de 70, parecia bem mais longe ainda.

Duas vezes por semana, eu saía da universidade às 12 e tinha de andar – andar, não, correr! - duas quadras em direção ao Aterro, em Botafogo, para pegar um ônibus que passava às 12:10, 12:15, no máximo. Mas a rotina acabou por fazer o motorista já saber que eu estaria lá e, muitas vezes, eu avistava o ônibus ainda longe do ponto, eu ainda chegando. Mas sabia que ele pararia e abriria a porta para mim. Era uma reta só: da sala de aula para o assento do ônibus, sem parar. Dali abria um pacotinho de biscoito (quem se lembra do Mirabel de chocolate?) e era o meu almoço. Saía muito cedo de casa, não dava tempo para fazer uma “marmita”.

Uma hora e vinte minutos separavam a zona sul do Rio, com praias belíssimas e cheiros de conforto, da pobre zona rural onde ficava a escola. A distância física confirmava a diversidade cultural, inclusive lingüística, dos alunos. Eu ia pensando nisso, no “quentão”, que era como chamávamos este ônibus, porque era igualzinho aos que chamamos de frescões, só que sem ar condicionado. Mais uma marca da diversidade, do disparate de tratamento para quem vai para a zona rural. Preconceito, descaso social, embora o preço não fosse tão menor assim. Hoje, isso mudou e todos são frescões, ou melhor, vamos admitir: gelões! Não sei por que esse exagero de frio. Os preços se equipararam e é escolher mesmo entre eles e o serviço de trens, que todos nós conhecemos ou já ouvimos falar...

Mas voltemos à ação: o veículo ia ladeando as praias de Copacabana, Ipanema, Leblon, São Conrado, até pegar a estrada que levava a Campo Grande, pela Barra da Tijuca. O trajeto era bem agradável e inspirava a meditação sobre a transição entre a cidade rica e a cidade pobre. A chegada ao subúrbio se fazia mais brusca, depois de tanto requinte e beleza. E me preparava para a transição entre as aulas da universidade e uma turma de alunos do subúrbio, do ensino fundamental, mais velhos do que seria natural para aquele período escolar e... repetentes.

Pensava na diversidade lingüística, nas influências dos falares... o trajeto díspare ajudava minha postura nas aulas, minha passagem entre o grego clássico e a comunicação oral e escrita, que era como denominavam as aulas de português, no ensino fundamental da época.

Meu olhar perdido nesses pensamentos me acordava para os últimos vinte minutos do trajeto, quando passava pela placa “Ilha”. O que havia de lingüista em mim, despertava, sempre, neste ponto. A placa me sinalizava, automaticamente, duas coisas: a primeira, me despertava do devaneio, para me concentrar mais nas aulas que daria naquele dia. Nesses vinte minutos, refazia, em pensamento, o planejamento que havia preparado para as três turmas daquele dia. Mas havia outra coisa: no meio daquele mato todo, de zona rural, que ilha seria aquela? Onde encontrar água suficiente de rio, lago ou até, quem sabe, mar, para criar uma ilha no meio daquele matagal rural? Isso sempre me prendia o pensamento. Um dia planejava descer para conhecer que tal ilha seria essa...

Mas nem foi preciso. Num dos intervalos de aula, já mais ambientada na escola, acabei por perguntar a professores que moravam por ali:

- Que ilha é essa que tem lá embaixo, no trajeto do ônibus que vem para cá?

Uma gargalhada respondeu a minha pergunta. Fiquei com aquela cara de parede, entre curiosa e envergonhada. Eu teria dito alguma besteira? Revi minha pergunta. Era digna e justa de alguém que não conhece o lugar. Luisa, a mais doce entre as colegas, me respondeu finalmente:

- Não tem ilha nenhuma, é nome dado pelo povo, há mais de um século atrás, ainda no tempo dos escravos. Toda aquela região era uma fazenda de um inglês chamado William. Os escravos e o povo, não conhecedores da língua o chamavam de “Senhor Ilha”. Mais tarde, não sei bem por que - talvez o dono tenha morrido - a fazenda acabou virando terra de ninguém. O nome da região assumiu o nome do dono da terra e ficou.

Diversidade lingüística, falares...

A partir de então, todas as vezes que eu passava pela placa "Ilha", já não conseguia mais rever meus planos de aula... meu coração vibrava em sintonia com o povo e ficava dando voltas em meus aprendizados de vida...

2 comentários:

Miriam disse...

Mais um belo conto!
Quem sabe, "ilha" também não nos faz pensar um pedaço de terra, chio de cidadãos, mas cercada de abandono do poder público por todos os lados?
Bjs. Miriam

Celina disse...

Adoro isso. O povo fala como sabe e lógico que William tinha que virar ilha.
bjs