24 de setembro. O dia amanheceu com
cheirinho de festa. Na verdade, com cheirinho de aniversário. Há 39 anos atrás,
eu defendia minha tese de doutorado.
Embora eu esteja aposentada, sempre me
lembro desta data com uma especial alegria interior. Não pelo sucesso da
conquista. É mais do que isso. A tese definiu minha carreira profissional, uma
carreira que atropelou meu caminho, literalmente. Coisas da vida.
Eu era professora de Cultura Clássica e
Linguística e, como tudo que fiz profissionalmente, adorava o que fazia.
Resolvi cursar
o doutorado, por conta de conseguir uma promoção para professor adjunto
e, depois, a ascensão natural para titular, na universidade particular, onde eu
trabalhava.
Uma vez no doutorado, busquei
disciplinas que me aproximassem da área médica, estudos que sempre me chamaram
a atenção. Escolhi, entre a lista complexa de disciplinas - para quem está
entrando, tudo parece muito complexo, depois, simplifica... - uma que parecia
muito especial: "Linguística e Patologias da Fala", ministrada pelo professor Jürgen Heye, um alemão recém
domiciliado no Brasil, falando ainda com um pouco de sotaque e, às vezes,
confundindo "ele fez" com "ele fiz". Mas a disciplina era
boa e me convenci de que começava o doutorado com o pé direito.
Todas as disciplinas exigiam uma
monografia final, que deveria ser entregue em um mês. Estávamos no final do ano
e como eu era amiga de uma fonoaudióloga que tinha feito o curso de Letras
comigo, foi a ela que recorri, para conseguir fazer meu levantamento de dados.
- Cacilda, você teria algum paciente com
alguma patologia que eu pudesse pesquisar, assistindo a algumas sessões de
atendimento?
- Claro que tenho. Um afásico. É um caso
muito interessante! Podemos combinar.
- Ótimo! Caiu como uma luva, adorei
estudar afasia. Quando posso ir? Só tenho um mês para dar conta de duas
monografias! Preciso assistir a três sessões pelo menos!
- Semana que vem. Você vem, assiste, sem
problemas. Vou ligar para a mãe dele e dou retorno.
Enquanto esperava resposta, passei dois
dias enfiada em livros sobre afasias. Mas o retorno foi desalentador:
- Eulalia, a mãe do jovem vai entrar de
férias e vai viajar com ele. Sem chance.
- O que eu faço? O que você tem como
alternativa?
- Estive pensando... por que você não
faz sobre surdez?
- Mas surdez não é patologia!
- Não tenho outra sugestão. Fale com seu
orientador.
Me despenquei para a Universidade.
Começo de dezembro, Heye já tinha viajado para visitar a família na Alemanha. Falar
com ele, só em março!
Entrei em parafuso. Eu tinha de
encontrar uma patologia para estudar e um profissional que me permitisse
assistir a atendimentos, o que é algo muito fora do comum. Acho que "vou
de surdo" mesmo e seja o que os deuses quiserem.
A proposta era visitar uma escola de
surdos em Niterói, onde havia uma professora que Cacilda conhecia.
E foi assim, observando o atendimento dado na
escola que, felizmente, só entraria em férias no meio de dezembro, que fiz meu
primeiro trabalho sobre educação de surdos. Estávamos em 1979. Estes estudos
eram completamente desconhecidos do meio acadêmico, ou melhor, dos
profissionais de estudos linguísticos, nas universidades do Estado do Rio de
Janeiro.
Entreguei o trabalho na universidade,
com o coração meio apertado, pois eu sabia muito bem que, embora tivesse o peso
de uma originalidade e a descoberta sobre uma inumerável lista de falhas
educacionais que poderiam servir de base para muitos estudos, o trabalho não
tinha nada a ver com o título da
disciplina. Eu era a única caloura da turma e, como agravante, todos os outros, já veteranos, tinham lá os seus
contatos e entregaram objetos de estudos já conhecidos. A desvantagem era evidente.
Seja o que os deuses quiserem.
Eles quiseram.
Em março, quando fui olhar minhas notas
no quadro de avisos, fiquei aliviada com o conceito A da outra disciplina,
mas... não havia nota à frente do meu nome em "Patologias Verbais".
Apenas uma anotação: "procurar o professor da disciplina".
Pronto, estava ferrada. Ele não aceitou
meu trabalho!
Procurei o Heye. Estava, como sempre,
calmamente sentado em sua sala, rodeado de livros, fumando tranquilamente seu
cachimbo.
Entrei com o coração aos pulos. Ele me
olhou por cima dos óculos:
- Senta aqui, não se preocupe, quero
falar com você.
Sentei-me em cócegas. O que havia de
errado no meu trabalho? No fundo, eu sabia: não era um trabalho sobre
patologias! Mas eu tinha de defender minha nota até o fim. Afinal, eu não
estava estudando com bolsa, pois continuava a trabalhar na universidade e cada
disciplina era cursada com um sacrifício inexplicável. Dar aulas, trabalhar e
ser dona de casa era uma tarefa tripla difícil de cumprir. E, se eu parasse de
trabalhar para ter direito à bolsa de estudos, com certeza, uma universidade
particular não iria guardar minha vaga por quatro anos... não tinha jeito. Era
levar assim, sem chance de dizer que "não dá". E dispensar uma tarde
para uma disciplina, estudar prá caramba e perder o crédito era algo fora das
minhas cogitações.
Foi com esse pensamento que eu dava
tratos às bolas para defender meus créditos. Talvez estivesse um pouco pálida,
não sei. Nervosa, era óbvio de se notar.
Mas o Heye sorriu. Abriu uma gaveta,
puxou meu trabalho e o dirigiu a mim:
- Estou no Brasil há pouco tempo, mas
conheço sua língua o suficiente para entender o jogo de palavras que você vai
ouvir: "Isto dá um tesão".
Vá para casa, releia com calma e depois venha conversar comigo.
Fiquei olhando para aquele homem grande,
meio louro, meio viking, com pouco sotaque, sorrindo para mim. Me senti completamente
afogada em um monte de argumentos desnecessários e evidentemente, sem palavras.
Estava bem claro que eu tinha tirado conceito A, que fora aprovada... e que
ainda estava com uma proposta de tese nas mãos!
Dali, após uma leitura atenta do que eu
tinha feito, me convenci de que era um bom tema para minha tese: original,
inédito, tudo por fazer. Mas não achei, em todo o Rio de Janeiro, alguém que
pudesse me orientar. Ninguém, dentre os professores daqui tinha sequer lido
qualquer coisa sobre surdez! Voltei ao Heye:
- Pois é... você me cutucou e agora não
acho orientador. Tem de ser você!
- Mas eu não sei nada sobre surdez!
Sequer vi um surdo em toda a minha vida!
Nessas idas e vindas, já nos tínhamos
encontrado várias vezes e tínhamos desenvolvido uma relação mais próxima. Heye
não era apenas um professor atento... era um ser humano incrível. Eu vinha
percebendo isso em cada encontro, o suficiente para poder brincar:
- É... quem mandou plantar a semente? Agora, rega!
Do jeito que pôde, ele regou. Só me
ajudou com a metodologia da pesquisa, como combinamos. O resto, ficou por minha
conta.
O fato é que, o que seria apenas para me
dar um certificado que me garantisse uma promoção acadêmica na tal universidade
onde eu trabalhava, transformou-se em um projeto de vida.
Acabei desprezando
o título de titular da cadeira, que consegui, após dois anos. Minha
cabeça já estava em outro mundo e me impulsionou a fazer um concurso para uma
universidade pública, em busca de melhores condições de trabalho para
desenvolver meu novo projeto de vida acadêmica: saí da tal universidade, entrei
para uma universidade pública e pude construir um programa de projetos e
pesquisas e de atendimento à comunidade Surda que se estendeu a nível nacional
- o "Programa Surdez: Educação, Saúde e Trabalho".
Passei os 20 anos seguintes de minha
vida acadêmica, complementando os estudos que vinha fazendo, desde 1979.
Desenvolvi projetos com especial atenção à alfabetização de crianças surdas, a
convênios de atendimento da comunidade no hospital universitário e dedicação à
inserção de surdos no mercado de trabalho.
Entre
as principais atividades, juntei meus esforços à luta de vários segmentos da sociedade no sentido de
conseguir que
a Língua de Sinais fosse uma língua reconhecida em âmbito nacional. Este último projeto foi um dos mais árduos e marcou minha carreira de modo
especial, por escrever o parecer técnico que serviu de respaldo para a
aprovação da Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, com o reconhecimento da Línguas de Sinais como a Língua Oficial da Pessoa
Surda, no Brasil.
Feito isso, me aposentei, em 2003, completamente recompensada por uma vida acadêmica cheia de muito trabalho, lutas, esforços, realizações em artigos, livros e trabalhos compensadores. Não foi fácil, mas foi muito bom!
É por isso que cada dia 24 de setembro, soa como aniversário para mim.E me lembro com muita gratidão e carinho, um carinho muito especial mesmo, de Jürgen Heye, que já está tomando seus vinhos com os deuses (que Baco o contemple com os melhores!).
Tudo porque a mãe de um jovem afásico, resolveu suspender as sessões de fonoaudiologia para viajar de férias para o norte do país...
Feito isso, me aposentei, em 2003, completamente recompensada por uma vida acadêmica cheia de muito trabalho, lutas, esforços, realizações em artigos, livros e trabalhos compensadores. Não foi fácil, mas foi muito bom!
É por isso que cada dia 24 de setembro, soa como aniversário para mim.E me lembro com muita gratidão e carinho, um carinho muito especial mesmo, de Jürgen Heye, que já está tomando seus vinhos com os deuses (que Baco o contemple com os melhores!).
Tudo porque a mãe de um jovem afásico, resolveu suspender as sessões de fonoaudiologia para viajar de férias para o norte do país...
3 comentários:
É...
Maktub mesmo.
Quanto notei, nas primeira letras das primeira palavras, a que o conto vinha, me arrepiei.
E assim fiquei até o fim do texto.
Não há outro jeito de dizer: emocionante.
Anda mais, como eu tinha alguma noção de como tudo começou, passei a ter a dimensão real.
Adorei!
Beijinhos
É amiga... Estava mais que escrito...
Amém!
Parabéns e mais parabéns! E agora depois de "aposentada" ainda brilha na sua descoberta da maturidade! Você é demais!
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