Hoje,
passando por uma esquina de volta para casa, vi um menino de rua tirando,
com a mão, comida de dentro de uma lata. Estava quieto e tranquilo,
literalmente... almoçando.
Nosso
cérebro tem mesmo um botão liga-desliga. O meu ligou imediatamente, desfiando
uma lembrança perdida.
Década
de oitenta. Eu estava realizando uma pesquisa sobre desenvolvimento linguístico
e cognitivo em crianças de dois a dez anos de idade, de ambos os sexos e de
todas as classes sociais. Uma pesquisa imensa, de peso, que envolveu muitos
alunos de iniciação científica. Era preciso achar muitas crianças para realizar o levantamento de dados. Nas classes
sociais mais baixas, muitas vezes, caminhamos por lugares nunca antes
imaginados.
Não
íamos todos juntos. Eu enviava os alunos para os lugares que eu considerava
mais confiáveis, principalmente, quando se tratava de classes mais baixas.
Afinal, a responsabilidade por sua segurança era minha. Quando se tratava das
então chamadas “favelas”, eu mesma ia. Conseguia alguns contatos que me
introduzissem lá e, a partir daí, o passe era livre. E foi uma das experiências
mais marcantes de minha vida, só comparável com a que eu tinha tido quando
lecionei em zona rural. Se você leu o conto “Reginaldo” deve se lembrar como foi.
Pois
então. Eu subia por aquelas ruelas, muitas
vezes escorregadias, com doze quilos de equipamento nas costas: uma pequena
televisão, um gravador, um pequeno vídeo cassete para passar as fitas de dados,
brinquedos, pastas com os testes, e uma garra de pesquisadora. Ia protegida
pela confiança já conquistada pelos que ali haviam me introduzido.
- Bom dia, como
vai?
- Cuidado aí,
professora, hoje está escorregando. Choveu.
Depois
do convívio com Reginaldo, eu aprendera a confiar e ser confiada. Subia
tranquila, em busca de meus endereços:
- Procuro a casa
da D. Maria, mãe da Francisquinha, uma de dois anos.
- Vai subindo
até a casa com janela de ferro, depois vira à direita. São mais três casas.
Lá
ia eu.
Na década de oitenta, os barracos não eram como os de hoje, que já estão bem mais apetrechados. Não havia
televisão. Nem geladeira. Muitas vezes, nem móveis. Chão de terra batida.
E esse
foi um dia para aprender muitas coisas. E tudo de uma vez só.
Francisquinha
era uma menina lindinha e esperta. Lembro-me até hoje da competência em suas
respostas para uma menina de dois anos. Quando cheguei, ela estava almoçando,
sentada no chão de terra batida, pegando a comida de uma lata de leite em pó, com
sua mãozinha pequena.Vez
por outra, umas galinhas entravam, tentando beliscar algum alimento roubado da
pequenina princesa que me sorria. Eram enxotadas pela mãe que lavava roupa do
lado de fora e me havia dito para ir entrando... que eu ficasse à vontade.
Naquela
época, já havia luz nos barracos. Não havia tomadas, mas eu já me acostumara a
ligar minha TV diretamente nos fios, arrancando o pino de conexão. Esse
já não era o problema. O vídeo e o gravador tinham baterias. Fosse hoje, toda aquela parafernália teria sido substituída por um levíssimo note. Mas estávamos na década de 80. Nem se falava em computador, quanto mais em note... era mesmo carregar os doze quilos para cima e para baixo, rezando para ter eletricidade na casa. Senão, era pedir um fio emprestado ao vizinho, o que me custava levar, também, um fio de extensão... mais um peso.
O
problema era me acostumar com a pobreza do
lugar, sem fazer cara de estranhamento. Com a falta de recursos, este era um mundo que se descortinava perdido
em um espaço totalmente fora da compreensão dos olhos pretenciosos de nossa
sociedade.
Lembro-me
de que, enquanto arrumava meu equipamento, a pequenina Francisca brincava com o
resto da comida em suas pequenas mãos. E comia satisfeita pelo simples fato de
ter o que comer... parecia feliz com minha visita, alguém diferente, que vinha
brincar com ela.
Olhava essa pequenina joia de vida, sentada no chão de terra
batida, numa casa varrida e limpa. Num canto, colchonetes enrolados eram o
único vestígio de habitantes noturnos. A mobília daquele único cômodo era
composta de uma pequena mesa bem tosca, duas banquetas e umas prateleiras
feitas com madeiras de construção, que faziam o papel de armário. Uma cortina
de plástico servia como porta, semi-escondendo o conteúdo. Tudo que pertencia à
casa estava guardado ali. Nada mais.
Cada
dia em que eu descia daquela “favela”, era certo ter muito em que pensar. Mas a casa de Francisquinha apenas reproduzia
o que eu já estava me acostumando a ver a cada vez... e não seria esta,
exatamente, a novidade que me aguardava naquela dia.
Brinquei
com a pequena princesa, apliquei os testes e me preparei para ir embora. Quase final de tarde. Naquele
dia eu subira o morro muito além do que o comum... já estava me familiarizando
com a comunidade e uma mãe indicava outra, cada vez mais alto, cada vez mais
longe, cada vez mais dentro... cada vez mais pobre... eu ia entrando aqui e ali, tendo a
oportunidade de ver o que era, na verdade, o que nós, ingênua classe média,
chamamos de “pobreza”.
E
ela se mostrou para mim, especialmente naquele dia, em toda a sua cruel
realidade, quando comecei a descer, passo a passo, pelas deslizantes vielas, em
busca do asfalto. Uma jovem mãe, com um menino de cerca de três anos no colo,
saiu de seu barraco. Ao lado, um chiqueiro, com uma porca. Se alguém ainda não
viu um chiqueiro pelo menos sabe imaginar o que é: lama, lama, lama (necessária
para manter o animal fresco, naquele calor de rachar). Aquele era assim mesmo,
com comida num canto, dentro de uns latões cortados horizontalmente e... a
porca. A mãe carregava o filho num dos braços e sua bolsa e mais umas tantas sacolas
no outro. Pousou cuidadosamente o menino dentro do chiqueiro, como quem coloca seu filho
dentro de um cercado.
Eu
sabia, eu já havia aprendido, já fora avisada enfaticamente de como deveria conviver num
ambiente abaixo no nível da pobreza: olhos treinados para não se admirarem com
nada e boca ensinada a não se meter com a vida alheia. Mas não resisti.
- Você vai
deixa-lo aí?
A
mãe me olhou, transbordando necessidade, mas, ao mesmo tempo, sabedoria (de uma
sabedoria que não passa por nossa cabeça entender!)
- Não tenho com
quem deixar. Minha mãe chega no final da tarde. É só por um tempinho. E ele, aqui, está seguro. Se alguém tentar mexer com ele, ela
avança.
E
apontou a porca.
Entendi,
imediatamente, que era um pacto entre fêmeas, um trato entre mães. Com certeza,
seu filho estaria seguro ali. Após conviver por dois
meses, duas vezes por semana, com os retratos daquela comunidade, eu me via,
enfim, sem qualquer capacidade de julgamento. Era o que era. E eu estava ali
mais para aprender do que para ensinar.
Desci lenta e medrosa de escorregar no barro molhado pela chuva recente. Cuidava de cada passo por aquelas vielas estreitas, com meu peso nas costas... mas o que
pesava mais era, na verdade, inominável.
Lágrimas nos olhos. Nó na garganta. Um sem saber o porquê de tudo.
Hoje
vim para casa pensando no menino que almoçava, tirando sua comida de uma lata,
numa esquina perdida de Copacabana. Tranquilo, quieto, sozinho. Pensei no
menino do chiqueiro. Pensei em sua mãe. Pensei na porca.
Só
não pensei na solução. Lágrimas nos olhos. Nó na garganta. Um sem saber o
porquê de tudo.
4 comentários:
É sempre bom reencontrar suas histórias.Lindo texto... Lindo.
Que lindo conto, querida. Cada vez que vocë tira um desses do seu baú, eu também tenho lágrimas nos olhos. E isso era na década de 80. O pior é que apesar dos novos apetrechos, da televisão, ainda há uns tantos chiqueiros por aí. Mas o pior deles é onde estão os governantes que tiram dinheiro dessas pessoas e continuam enfiando em suas cuecas...
Impossível conter as lágrimas...
Obrigada pelos comentários... Esse tipo de recordação marca mesmo a vida da gente...
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