Quando penso que não vou ter
sobre o que escrever, minha cabeça pulula de ideias... é a vantagem de ter vivido
muito, ou melhor, intensamente. Aos sessenta, fico pensando o que foi esse
percurso até aqui. E posso dizer que, mesmo quando era rotina - e, muitas
vezes, chata - ainda assim sempre havia o que contar. Mas há pessoas e coisas que marcam nossas
vidas para sempre. E Helena foi uma delas!...
Lembrei-me dela, nesta semana, ao
mexer em papéis antigos. Me deparei com uma frase e toda a história que tive
com Helena generosamente transbordou de meu coração.
Helena.
Na verdade, professora Helena.
Aliás, por coincidências da vida, com meu sobrenome: Helena Fernandes.
Helena, minha professora de
Literatura Brasileira. Um gênio. Quando aquela mulher se sentava ali, na frente da classe, podia contar: era peso de aula inaugural!!!
Mas Helena tinha um defeito.
Bebia. E muito. Acho que ela não aguentava sua própria genialidade. Só podia
ser.
De qualquer modo, se ela bebia álcool,
para contrabalançar, eu bebia suas aulas, sentada na fila da frente... literalmente (ou
literariamente?) embevecida...
Talvez eu tenha conquistado
Helena exatamente por esse meu encantamento. Adorava Literatura Brasileira e,
com uma mestra como essa esbanjando sabedoria e carisma, não podia dar outra: acabei por chamar sua atenção. E fui uma de suas melhores alunas, no
decorrer dos três longos e deliciosos anos em que acompanhou nossa turma.
Por mais que se queira ser
indiferente, não tem jeito. Há alunos que conquistam seus mestres. E sei que
conquistei Helena. Particularmente, ela me chamava de “minha tulipa”. Até hoje
não sei por que ganhei esse apelido. Talvez porque fosse de perfil delgado (uma
forma delicada de dizer que eu era magérrima...). Não sei... só sei que eu era
sua "tulipa". Uma "tulipa" que estudava sua disciplina com carinhos de filha, com
ganas de melhor aluna...
No ano da formatura, Helena me
convidou para ser sua assistente. Não aceitei. Eu adorava Literatura, mas
queria dar aula de Linguística. A Literatura tinha o espaço do “sagrado” em meu
coração; a Linguística, o espaço da conquista profissional. Duas coisas
completamente distintas.
Mas Helena bebia. E bebia muito. E
foi por isso que seu fígado não resistiu. Quando adoeceu pela primeira vez, me
chamou no hospital. Pediu a “sua tulipa” que a substituísse, em suas aulas, até
que se recuperasse.
Fiz isso por três meses, até que
minha querida mestra voltasse. Voltou. Mas por pouco tempo. Hospitalizou-se,
novamente. Pediu-me para substitui-la para sempre, dizendo que sabia que não
mais voltaria.
Olhei para minha mestra-mãe. Eu
sabia que, se dissesse sim, ali, seria responsabilidade para sempre. E embora
eu a amasse muito... não sabia o que fazer. Mas é nesses momentos que as
verdadeiras mães se revelam.
Pegou minha mão, com carinho.
Quem conheceu Helena, dificilmente acreditaria. Uma mulher incrível, mas
incapaz de um gesto físico de carinho despreocupado. Helena estava sempre ali,
forte, firme, presente, mas distante das emoções. Fechada. Mas eu sabia que era
fachada.
Pegou minha mão, com carinho.
Sorriu.
- Uma pena, minha tulipa, mas eu sei. Não precisa responder.
Sorriu mais uma vez.
E, pela primeira vez, tive
coragem de ultrapassar a barreira da distância, antes sempre rigorosamente
imposta. Beijei sua face uma, duas vezes... reconhecendo o desprendimento de
não exigir de sua “tulipa” um compromisso para sempre.
- Quero muito que você seja feliz...
Helena morreu dias depois.
E eu dei aula para sua turma até
o final do semestre.
No último dia, olhei para os
alunos e disse que me despedia do magistério de Literatura Brasileira para
seguir minha vocação profissional. Disse-lhes que levara a turma até o final,
por uma única e inesquecível razão, a razão que levaria em meu coração para
sempre.
Voltei-me e escrevi no quadro
negro a tal frase que encontrei outro dia, num de meus escritos amarelados pelo
tempo:
À imagem pura e plena
de Helena,
Que já se esconde no pó de nossa estrada.
Onde quer que você
esteja, talvez goste de saber que adoro escrever contos...
3 comentários:
Ela deve estar muito orgulhosa de ver a mestre-mãe que você se tornou. Certamente continuou o legado, lecionando com paixão e conhecimento suas vocações. Lindo conto!
De volta... Acho que mais que sua mente, é seu coração que pulula de sentimentos e sempre haverá um bem grande que transborde em um conto como esse. Cada vez mais fÃ!
bjs com muuuita saudade!
Lindo... Lindo!
Postar um comentário