sexta-feira, 15 de março de 2013

HELENA




Quando penso que não vou ter sobre o que escrever, minha cabeça pulula de ideias... é a vantagem de ter vivido muito, ou melhor, intensamente. Aos sessenta, fico pensando o que foi esse percurso até aqui. E posso dizer que, mesmo quando era rotina - e, muitas vezes, chata - ainda assim sempre havia o que contar.  Mas há pessoas e coisas que marcam nossas vidas para sempre. E Helena foi uma delas!...

Lembrei-me dela, nesta semana, ao mexer em papéis antigos. Me deparei com uma frase e toda a história que tive com Helena generosamente transbordou de meu coração.

Helena.

Na verdade, professora Helena. Aliás, por coincidências da vida, com meu sobrenome: Helena Fernandes. 

Helena, minha professora de Literatura Brasileira. Um gênio. Quando aquela mulher se sentava ali, na frente da classe, podia contar: era peso de aula inaugural!!!

Mas Helena tinha um defeito. Bebia. E muito. Acho que ela não aguentava sua própria genialidade. Só podia ser.

De qualquer modo, se ela bebia álcool, para contrabalançar, eu bebia suas aulas,  sentada  na fila da frente... literalmente (ou literariamente?) embevecida...

Talvez eu tenha conquistado Helena exatamente por esse meu encantamento. Adorava Literatura Brasileira e, com uma mestra como essa esbanjando sabedoria e carisma, não podia dar outra: acabei por chamar sua atenção. E fui uma de suas melhores alunas, no decorrer dos três longos e deliciosos anos em que acompanhou nossa turma. 

Por mais que se queira ser indiferente, não tem jeito. Há alunos que conquistam seus mestres. E sei que conquistei Helena. Particularmente, ela me chamava de “minha tulipa”. Até hoje não sei por que ganhei esse apelido. Talvez porque fosse de perfil delgado (uma forma delicada de dizer que eu era magérrima...). Não sei... só sei que eu era sua "tulipa". Uma "tulipa" que estudava sua disciplina com carinhos de filha, com ganas de melhor aluna...

No ano da formatura, Helena me convidou para ser sua assistente. Não aceitei. Eu adorava Literatura, mas queria dar aula de Linguística. A Literatura tinha o espaço do “sagrado” em meu coração; a Linguística, o espaço da conquista profissional. Duas coisas completamente distintas.

Mas Helena bebia. E bebia muito. E foi por isso que seu fígado não resistiu. Quando adoeceu pela primeira vez, me chamou no hospital. Pediu a “sua tulipa” que a substituísse, em suas aulas, até que se recuperasse. 

Fiz isso por três meses, até que minha querida mestra voltasse. Voltou. Mas por pouco tempo. Hospitalizou-se, novamente. Pediu-me para substitui-la para sempre, dizendo que sabia que não mais voltaria. 

Olhei para minha mestra-mãe. Eu sabia que, se dissesse sim, ali, seria responsabilidade para sempre. E embora eu a amasse muito... não sabia o que fazer. Mas é nesses momentos que as verdadeiras mães se revelam.

Pegou minha mão, com carinho. Quem conheceu Helena, dificilmente acreditaria. Uma mulher incrível, mas incapaz de um gesto físico de carinho despreocupado. Helena estava sempre ali, forte, firme, presente, mas distante das emoções. Fechada. Mas eu sabia que era fachada.

Pegou minha mão, com carinho. Sorriu. 

- Uma pena, minha tulipa, mas eu sei. Não precisa responder. 

Sorriu mais uma vez. 

E, pela primeira vez, tive coragem de ultrapassar a barreira da distância, antes sempre rigorosamente imposta. Beijei sua face uma, duas vezes... reconhecendo o desprendimento de não exigir de sua “tulipa” um compromisso para sempre.

- Quero muito que você seja feliz...

Helena morreu dias depois.

E eu dei aula para sua turma até o final do semestre.

No último dia, olhei para os alunos e disse que me despedia do magistério de Literatura Brasileira para seguir minha vocação profissional. Disse-lhes que levara a turma até o final, por uma única e inesquecível razão, a razão que levaria em meu coração para sempre. 

Voltei-me e escrevi no quadro negro a tal frase que encontrei outro dia, num de meus escritos amarelados pelo tempo:

À imagem pura e plena de Helena,
Que já se esconde no pó de nossa estrada.


Onde quer que você esteja, talvez goste de saber que adoro escrever contos...

3 comentários:

Dani Dias disse...

Ela deve estar muito orgulhosa de ver a mestre-mãe que você se tornou. Certamente continuou o legado, lecionando com paixão e conhecimento suas vocações. Lindo conto!

Celina disse...

De volta... Acho que mais que sua mente, é seu coração que pulula de sentimentos e sempre haverá um bem grande que transborde em um conto como esse. Cada vez mais fÃ!
bjs com muuuita saudade!

pblower disse...

Lindo... Lindo!