Com todo respeito à tradição cultural dos grupos sociais (e aqui me refiro
aos grupos familiares), tem umas coisas que acontecem que... só rindo.
Estava eu em Buenos Aires, em plena e completa
“orgia interna” de
deleite por dias de paz, descanso e gratidão à vida, entre as ruas Paraguai e
Callao, centro da cidade, em busca da Avenida Nove de Julho. Para quem não
conhece a cidade, estava caminhando por aquelas ruas largas, cheias de
contrastes e aconchegos, num dia luminoso e festivo, com ares de sedução. Tudo
se encaixava, eu caminhando para um delicioso encontro amoroso, a alma leve e
solta.
Toca o celular, número desconhecido.
-
Eulalia, aqui é a C... .
- Conferi a lista de minha memória. Este nome só combina com uma irmã de
vida, que mora em São Paulo. Não era o timbre da voz dela. Quem poderia ser?
Chequei minha lista de clientes, num rápido segundo. Ninguém.
- Quem?
-
A C...,
mulher do F... .
- Eu não me lembrava de nenhum homem com aquele nome. Será que Buenos Aires
tinha um hipnótico ou anestesiante remédio para tudo que não lembrasse trabalho
ou desprazer? Descobri imediatamente que sim.
-
Quem?
-
F... N... ,
seu primo.
Ah... a memória funcionou. Trata-se de um primo, com quem não falo há uns 30
anos. A família mora em São Paulo. Quanto à distinta senhora, eu a encontrara
umas pouquíssimas vezes na vida, talvez em seu casamento (há décadas atrás...
eu ainda bem moça) e umas raras vezes depois, talvez num último contato há uns
vinte e cinco anos, no mínimo. A vida me fizera morar no Rio, desde os dois
anos de idade incompletos. Quase não convivi com meus parentes paulistas,
distantes desde a mais tenra infância. Tive mais contato com um primo, irmão
deste “tal”, cuja lembrança, sim, guardo com carinho até hoje, pois morou algum
tempo no Rio e nossos encontros foram sempre muito gentis. Uma outra prima que
apareceu vez por outra na vida... mas só.
O que teria acontecido? Um telefonema assim, único, duas ou três décadas
depois? Ademais, de uma pessoa que nem era parente direta, quase não nos
falávamos... pensei no que me pareceu óbvio: o contrato social de avisar por
morte de algum parente. Não podia atinar com outra coisa. Mesmo assim, não
fazia muito sentido! Eu tenho outros parentes mais próximos que poderiam, se
fosse o caso, se encarregarem desta tarefa. Mas aguardei o que teria a me dizer
a distinta senhora:
-
Oi, C...,
como você vai?
-
Estou no Rio. Vim passar o Reveillon aqui.
-Ah, sim?
- Onde você mora?
Toda minha família sabe onde moro há anos... que pergunta esquisita...
bem... eu poderia ter mudado de endereço...
-
Em Copacabana, mas no momento, estou em Buenos Aires, passando férias.
- Ah...
Notei um lapso de tempo, antes que ela continuasse:
-
Estou ligando para saber de que morreu o E... (nome do meu irmão mais
velho).
Ainda bem que meu cérebro funciona com relativo bom senso diante dessas
intempéries. Não tão rápido quanto desejaria, mas posso contar com um mínimo de
bom senso. Que pergunta era essa, vinte anos depois do falecimento do meu irmão
mais velho? Busquei nas entranhas de meus músculos cerebrais algo que pudesse
fazer sentido: uma pessoa casada com um primo distante, me liga no final do
ano, estando no Rio para o Reveillon, pergunta onde moro e, quando digo que não
estou no Rio, diz que me ligou para saber do que morreu meu irmão mais velho,
após vinte anos de seu falecimento.
Será que eu estou doida? Em vinte anos, ninguém de São Paulo quis saber do
que morreu meu irmão. Aliás, ninguém quis sequer saber de mim. Ninguém havia
entrado em contato comigo desde então. Que piração seria essa? Mas tudo se
passou num segundo, inclusive o dito popular:
... “família... só em álbum de retratos”...
Na verdade, nem penso assim, pois adoro a família que se compôs para mim,
nesses últimos vinte anos. Adoro cada um, em seus mínimos detalhes de
qualidades e defeitos, por amor sincero de quem aprendeu as deliciosas manias
de amar com doçura, confiança e gratidão à vida. Amo essa família que se fez
aos poucos à minha volta (e eu à volta deles...). Quero ter álbuns e álbuns de
fotos de cada um desses detalhes, provando que família é família, seja de
sangue ou não. E a minha, criada desse amor generoso e gentil, passou a ser o
sangue azul que corre em minhas veias hoje.
Isso tudo passou como um relâmpago em minha mente, possa eu mesma acreditar
ou não.
Mas, do outro lado da linha, eu tinha uma
“prima” que, sinceramente,
à falta de melhor assunto, resolvia dizer que me ligava apenas para saber
“do que tinha morrido meu irmão mais velho,
há vinte anos atrás”.
-
C..., não entendi porque você está me ligando agora.
Estou dizendo a você que estou no meio de uma rua, em Buenos Aires, de férias e
você quer que eu pare tudo, aqui e agora, para lhe contar como morreu meu
irmão, há vinte anos atrás? Você tem meu telefone, espere que eu volte para o
Brasil e me liga outra vez, tá? Aí a gente conversa.
- Tá (e desligou, sem se despedir).
Na verdade, nem sei como ela conseguiu o número de meu celular. Mas no mundo
atual, o que não se sabe com o papai Google à espreita, não é mesmo?
Voltei para o Brasil há quase duas semanas. Ela sequer me perguntou quando
eu voltaria. Sua incrível curiosidade pela razão da morte de meu irmão, ao que
parece, se desvaneceu no tempo e no espaço.
Infelizmente, em sua vinda ao Rio para o Reveillon, sua “prima” carioca,
não estava para recebê-la... para contar como morrera seu irmão mais velho, que
ela pouco conheceu.
Mas, sinceramente, espero que tenha passado um excelente Reveillon no Rio,
curtindo a praia de Copacabana, como fazem os turistas que acorrem a esta
lindíssima cidade, principalmente nesta data.
Cotidianos inesperados, inusitados, saídos da cartola do absurdo, que parece
que acontecem só para eu ter mais um conto para postar para vocês.
No fundo, no fundo, acho até que me diverti.