domingo, 1 de julho de 2012

SHEIK


Sheik foi um cão que eu nunca tive... aliás, “não tive” para os olhos dos adultos, que nunca puderam vê-lo. Mas, na verdade, desde bem pequena, até os sete anos de idade, Sheik foi meu companheiro para tudo.

Um cão pastor alemão, manto negro, de focinho grande e protetor. Uma fera, que poderia proteger-me de todos os males do mundo.

Brincava com ele em meus sossegos de quintal, correndo para lá e para cá, com nossos folguedos prediletos: pique e bola.

De vez em quando, minha mãe ralhava comigo:

- Menina pára quieta, deixa de falar sozinha com o vento! Sai do quintal!

Nesses momentos, Sheik empertigava-se. Orelhas em pé. Eu entrava em casa com ele colado à minha perna, quase do meu tamanho de tão grande. Chegava a sentir-lhe o cheiro do pelo que eu tratava muito bem - tinha uma escova só para isso, que eu guardava cuidadosamente junto com minha roupas. Ouvia-lhe o arfar das narinas.

Só eu sabia, pois nunca contei a ninguém, mas ele não me largava para nada. Quando ia dormir, ele estava ali, deitado no chão, ao meu lado. Até para tomar banho ele me acompanhava, refestelando-se no canto do banheiro. Não gostava do meu banho quente, enchendo o ar de umidade e vapor. Espirrava. Eu ria baixinho para não chamar a atenção de minha mãe, quando ela estava por perto. Se havia vapor em excesso (sempre adorei banhos ferventes) e ele não resistia, saía meio irritado e me esperava no corredor.

Sheik me defendia dos meus medos. Minha mãe me mandava comprar pão na padaria da esquina, naquela rua escondida do Meier – Raul Barroso -, onde fomos morar, depois de quatro anos na Tijuca, na tranquilidade também escondida da Marechal Trompovsky.

A Raul Barroso ficava ao lado da saída da Unidos do Cabuçu. Aquelas pessoas grandes, falando grosso, sempre me colocavam em estado de alerta. Mas eu estava com Sheik e, se tinha medo, balbuciava:

- Avança, Sheik!

Ele avançava, abrindo caminho para mim... e eu ia e voltava confiante, com meu guarda de confiança.

Um dia, me levaram para o internato. Sheik ao meu lado. Mas o inesperado aconteceu. Ele não entrou. Postou-se no portão, aquele portão enorme, que se fechava atrás de nós. Chamei-o. Não veio. Chamei-o com todas as forças da minha mente. Mas, pela primeira vez, meu fiel amigo não me obedeceu. Quase entrei em pânico. Mas não havia o que fazer. Eu nem podia comentar com nenhum adulto, para que abrissem o portão e eu pudesse convencer meu amigo a me acompanhar. Ninguém acreditaria nas minhas verdades.

À noite, ouvia nitidamente os latidos familiares de meu doce amigo. Estava me chamando e eu não tinha como ir. Eu estava presa lá dentro. Ele estava preso lá fora.

Sofri não sei quanto tempo nessa angústia, ouvindo seus latidos me chamando, principalmente à noite, no silêncio da mata. Ele não podia entrar por quê? Sempre fora onde bem entendesse comigo. O que estava acontecendo? Nunca pude compreender.

Os dias se passaram e Sheik parou de latir.

Eu sabia que ele tinha ido embora... e sabia que era para sempre.

Meu luto silencioso me acompanhou por muito tempo. Não houve folguedo, amiga de colégio ou brinquedo que tivesse podido substituir meu amigo e me proporcionar toda a felicidade que, durante os primeiros anos de infância, esse grande amigo, terno companheiro e cúmplice fiel proporcionou ao meu coração infantil.

Guardo, até hoje, a lembrança de meu parceiro invisível, meu doce e querido Sheik.

E, em sua homenagem, todos os carros que eu tive (e também o atual), foram batizados com seu nome, para representar aquele que foi o grande companheiro de muitas de minhas vivências, nas direções de minha meninice.

9 comentários:

Dani Dias disse...

Amigo é amigo, e vc inventou na forma de um dos mais fiéis, né?
Adorei a ideia da foto!!!! Ficou demais :) Precisa de um pouco de imaginação pra ver. Adorei.

pblower disse...

Me lembrou a gatinha Arepa lá na Venezuela. A gata que eu nunca tiva.

Eulalia disse...

Pois é, Dani, ainda não tem máquina que tire foto de amigo invisível... fiquei meio sem saída :)

Patrícia, sim, Arepa, me lembro dessa história!

Anônimo disse...

Uma história que só se entende com clareza quando se é criança!
Bem, é verdade que, neste momento em que a uerj está em greve, estamos cheios de "amiguinhos-que-ninguém-vê": a reitoria, o governo Sergio Cabral, ...
Acho que o Sheik era mais concreto do que essas "entidades-fantasma" que assombram a Universidade ...
bjs décio

Eulalia disse...

Décio, querido!
Ai... as greves da UERJ... não há Sheik que aguente... é muita infidelidade junta!
Com certeza, Sheik sempre foi muito mais presente em minha vida!
beijinhos

Polly Moraes disse...

Quem nunca teve um amigo invisível, né? ^^
Nossa, me deu saudades da infância.
Muito lindo, Eulália :)

Celina disse...

Ainda bem que li seu conto hoje, agora, com calma. Gosto de ler seus contos com calma. A começar pela foto, fui flexada por suas palavras. Há muito mais que um amigo invisível no seu conto. Talvez sentimentos mais fortes e corajosos que o próprio Sheik, pois
Sheik está dentro de você! É de dentro que vem essa sua força meiga e suave, sendo mais forte que qualquer cão de guarda.
Esse conto é para dar CTRLC e guardar numa caixinha de música.
bjo bem estalado!

Eulalia disse...

Nossa! Isso mexe com a gente, né? Amei e me emocionei com os comentários!!!

Carlos Alberto disse...

Na boca e na mente de uma criança há sempre grandes verdades.