sábado, 28 de julho de 2012

NO MEIO



Ontem estava voltando de uma celestial sessão de acupuntura. Celestial é o termo mais do que adequado: saio de lá pisando nas nuvens.

Decidi ir a pé para o metrô, que fica, digamos... a uns 500 metros. A caminhada promete um passeio descontraído pelas ruas descompromissadas de Humaitá e Botafogo.

E eu estava atrás de uma palmilha em uma loja perto da Cobal, que Patrícia, amiga que já apareceu em outros contos – “Eu sabia”, “Sessenta”, “Silvio” - tinha me indicado. Eu já assuntara a região, sem muito sucesso. Mas estava com pressa naquele dia. Quem sabe, com mais calma, eu achasse a tal lojinha.

Não achei. Mas já que estava por ali, fiz olhos agudos em volta e vi uma loja de cuidados com os pés – podologia.

Atravessei a rua descansada. Afinal, depois de uma sessão de acupuntura celestial, não dava mesmo para quebrar o encanto com uma agitação desnecessária. Meu próximo compromisso seria dali a duas horas. Tinha tempo para vadiagem.

Entrei na loja olhando as vitrines e ouvi aquele chamado inconfundível:

- Eulalia?

Virei-me, pensando: “ex-aluna, aluna, cliente, amiga”?...

Era uma amiga antiga, que não via há vários anos. Estava tão diferente que teve de identificar-se para que eu a reconhecesse. Não sei se fiquei feliz em vê-la, confesso, pois há três anos, só falava com ela nos natais e aniversários. Infelizmente, ela se transformara num poço de lamentações. Dessas que, por mais que você tente ajudar, conversar, aconselhar como “irmã mais velha” não tem jeito. Lamenta até pela água que bebe. Mas o encontro pessoal podia ser diferente. Assim, apostei na vida e a abracei carinhosamente:

- Nossa, quanto tempo! Como vai? E aquelas crianças maravilhosas?

Ela tem dois filhos que, quando vi, da última vez, só poderiam ser comparados a dois príncipes saudáveis e deliciosos de se ver.

- Vão bem. Eu é que estou com uma alergia de doido. Imagine, minha casa está em obras há dois meses, uma poeirada só.

Pronto... Começou! Tentei desconversar:

- É assim mesmo, obra é fogo. E aqueles príncipes, como vão?

- Vão bem. Hoje vim ver meus calos, enquanto o (nome do marido) fica com eles em casa. Sabe, estou de férias, ou melhor, estamos em greve. As férias oficiais vão acabar e eu não faço greve de jeito nenhum, pois acho um absurdo...

Bem, eu vou poupar você de ouvir o resto, mas era uma lamentação só. Fechei meus ouvidos para pensar depressa em como sair dali sem ser indelicada:

- Não vamos falar em greves, querida, você sabe que fui professora por 30 anos, sei bem o que é isso. Os meninos, como vão?

-Vão bem. Mas eu não vou entrar nessa de greve não, porque...

Olhei o relógio. Na verdade, acho que estava olhando para o relógio do tempo psicológico. Para ela, ele havia parado. Os filhos crescendo, ela parada; os anos passando, ela parada.

No meio de tanta vida para viver, ela parada.

No meio de uma manhã de sonhos para mim, eu, ali, parada, vendo aquilo...

No meio de tanta piração, os meninos, como iriam? Não perguntei mais. Despedi-me, às pressas, dizendo das inconstâncias da vida e também de minhas urgências.

No meio de tanta loucura, eu precisava ir... e bem depressa. “O que não tem remédio, remediado está.”

No meio desse imprevisto, eu tinha perdido a sensação de céu e nuvens fofas abaixo dos meus pés! Cadê minha sessão de acupuntura!? Ela não tinha o direito de fazer isso comigo! Eu não tinha o direito de deixar que ela fizesse isso comigo...

Saí meio tonta. Uma sensação esquisita.

No meio de uma manhã promissora, uma nhaca, argh... atravessando meu corpo.

Um banho de sal grosso resolveria? Caramba... cruzes!!! Ninguém merece!

Tem gente que adora ser assim! Mas precisa arrastar os outros junto? Continuei incomodada pela rua, a caminho do metrô. O dia estava lindo, mas a sensação esquisita me acompanhava. A Voluntários da Pátria é uma rua comprida. Eu tinha entrado nela pela Humaitá e teria de andar até quase o fim, para alcançar o metrô. Melhor ir para casa, tomar um banho e ver no que dá... estava incomodada, de verdade. Essas coisas acontecem com todos nós, desprevenidamente. Mas sempre tem um jeito de sair. Contra o dissabor pela vida, só mesmo muito amor por ela. E é o que eu tenho. Mas estava incomodada. Pensava, sinceramente, num banho.

No meio de tanta sensação agoniada, foi que ouvi um som de água. Um chafariz.

Uma chafariz!!! Em plena Voluntários! Nas minhas pressas, nunca havia notado. Tenho uma câmera sempre engatilhada. Tirei da bolsa, não resisti.

Imediatamente, a Voluntários se desvendou para mim. Atrás desse encantamento repentino, outros recantos dessa rua movimentada se desvelaram para mim. Virou festa, como um chão para aquele céu azul anil. Que dia lindo, lindo, lindo!!!







No meio dessa rua movimentada, sob este maravilhoso céu invernal me pegando de surpresa, meus olhos me brindaram com meu banho de sal grosso!

Agradeci a minha amiga chata por ter sido, ainda que involuntariamente, o botão despertador da beleza descompromissada dessa rua de passagem, em pleno bairro pouco festejado do Rio de Janeiro. Talvez eu nem tivesse percebido, se não estivesse tão ansiosa por uma limpeza de alma. Tem males que vem para o bem. Quem diria...

Fui caminhando para o metrô, afofando novamente meus pés sobre as nuvens, felizinha, felizinha... nessa maravilhosa cidade do meu coração.

No meio do caminho tinha mesmo uma pedra... mas dela brotou a água que inundou e banhou essa alma carioca.

5 comentários:

Andre disse...

Realmente sempre reencontramos pessoas que passaram pelas nossas vidas e que nos dão a impressão que pararam no tempo.. bj e saudades querida professora!

Carlos Alberto disse...

Os belos casarões de botafogo,detectados de forma primorosa pela lente de tua máquina, superam qualquer contratempo.

Valéria Hinojosa disse...

Oi, Eulalia, lindas fotos e ótima oportunidade para o encontro com o inusitado! Bjs

Celina disse...

Às vezes um tropeço faz a gente prestar atenção à pedra e descobrir que ela é linda! Mas há que ter olhos para ver, né? Tive o prazer de ver essas fotos ainda na câmera e tenho sempre o prazer de ler seu conto, juntando palavras às fotos, com o olhar da sua alma!
bjs

Eulalia disse...

Meus queridos, como é bom ver vocês compartilhando esse momento inesperado!
Obrigada pelos comentários!

E... só para constar... a Rua Voluntários nunca mais será apenas a Rua Voluntários para mim :)

Aliás, cá para nós, essa cidade... esse Estado... esse país esbanjam beleza...