domingo, 23 de outubro de 2011

UMA FLOR NO DESERTO


Noite dessas voltava a pé para casa. Costumo caminhar tanto na ida quanto na volta, já que apenas umas 15 quadras separam meu apto do consultório. Pois então: geralmente, venho pela Nossa Senhora de Copacabana, principalmente à noite, pois é mais iluminada que a Barata Ribeiro. Mas eram apenas em torno de 21 horas e algo me puxava para cruzar a rua, pegar a Barata Ribeiro e vencer o resto do percurso por aliMeni, passando pela estação do metrô.

Não discuto com esses impulsos. Se existem, devem ser ouvidos. E foi assim que vinha caminhando pensativa, já esquecida de meu desvio de rota. Tudo por aqui é tão familiar que já nem me dou conta.

Na frente da estação do metrô da Cardeal Arco Verde, tem uma casa de lanches. Para ser franca, na minha distração, nunca me tinha dado conta disso. Mas naquela noite, um vulto sentado à beira da lanchonete, esticou a mão pedindo uns trocados para um lanche.

Não dou dinheiro. Não adianta. Nem que tenha de me desviar do caminho para comprar alguma coisa. Olhei para o menino. Perguntei se queria lanchar. Disse que sim e levantou-se. Só então vi que o menino não era uma criança, mas um rapazinho. Olhos penetrantes, olhando de frente, mas algo não desmentia a suavidade de sua expressão. Convidei-o a entrar na lanchonete comigo. Arredou pé:

- Não posso entrar ali, os seguranças não deixam.

Minha cidadania transbordou pelos poros.

- É ruim de ele te barrar comigo. Vem.

Entrei enfrentando os preconceitos sociais. Um segurança se aproximou. Apenas olhei para ele e murmurei:

- Ele está comigo.

Entendo o cuidado de quem foi contratado para isso. Entendo que há excessos. Só não entendo porque isso me machuca tanto. Diferenças sociais exacerbadas.

A lanchonete é dessas de uma rede extensa e bem conhecida, que serve através de pedidos no balcão, pagamos, pegamos as bandejas e nos dirigimos às mesas.

Pedi que o jovem escolhesse o que queria.

- Qualquer coisa, tia, a senhora escolhe.

- Não. Pode escolher. Um sanduíche e um suco a sua vontade.

Pediu um suco de laranja e um sanduíche de queijo. Eu não quis nada. Mas estaria ali para acompanhá-lo. Não sei por que pedi que se sentasse à mesa. Eu levaria o lanche para lá tão logo estivesse pronto. Havia deixado, descuidadamente, minha bolsa na cadeira da mesa. A lanchonete estava vazia àquela hora. Havia apenas uma mesa preenchida, bem mais ao canto. Não me toquei que o menino poderia pegar a bolsa e sair correndo. Esta idéia só me surgiu quando, pelo espelho, vi a imagem do menino sentado e, na cadeira ao lado, minha bolsa.

Seria muito indelicado eu ir pegar a bolsa. Agüentei firme, observando o jovem pelo espelho. Qualquer ato suspeito, eu estaria ali, atenta para dar o alarme ao segurança. Mas o menino não esboçava qualquer tentativa suspeita. Apenas havia me obedecido e sentara-se, a minha espera.

Levei a bandeja e coloquei a sua frente. Ele pegou o guardanapo com cuidado e separou uma das faces do sanduiche. Experimentou o suco. Agradeceu com a cabeça.

A imagem de vê-lo educadamente alimentar-se, comendo com a boca fechada, olhar tranqüilo e doce em nada combinava com suas vestes de rua. Quem seria essa figurinha que me parecia ter saído de um conto de livro?

- Onde você mora?

- Perto da Cruz Vermelha, no centro da cidade.

- Com seus pais?

- Não, moro sozinho. Tenho esse barraco faz dois meses. Antes, morava na rua.

- Quantos anos você tem?

- Dezoito.

- Mora na rua desde quando?

- Desde os quatorze.

- Por que saiu de casa?

- Meu pai morreu. Levou um tiro da polícia. Era traficante, sabe... sei que estava errado, mas era um pai muito bom para mim. Jogava futebol comigo, até me botou no time da escola. Ele também era muito carinhoso com todos nós. Sei que ele estava errado, eu sei, mas eu amava muito meu pai mesmo assim.

- Mas você saiu de casa porque seu pai morreu? Não entendi... e sua mãe?

- Ah, foi por isso. Eu gosto muito da minha mãe, mas ela se juntou com outro traficante. Esse não é bom, tratava mal a gente. É um homem muito bruto, sem educação. Não sei como minha mãe se juntou com ele. Fugi de casa porque não agüentava esse homem. Ele me batia e me tratava muito mal. Daí, fugi. Peguei minha certidão de nascimento e fugi.

- Por que você se preocupou com sua certidão de nascimento?

- Ora, é a única maneira que eu tenho para provar que sou de bem. Meu documento. E ele vale tudo para mim. Agora que sou de maior vou tirar minha identidade e poder trabalhar sem o atravessador, direto na cooperativa.

- Cooperativa?

- É. Dos catadores de papel. Até agora eu cato, vendo para um que é da cooperativa e ele é que fica com a grana maior. Agora eu vou poder levar direto pra cooperativa. Mesmo assim, consegui juntar cento e cinquenta e com isso comprei o meu barraco. Já pensou quando eu puder trabalhar sozinho?

- Seu barraco?

- É. Custou centro e cinqüenta. Agora já tenho onde dormir. Lá até cozinho! Às vezes, faço até bife. E melhor ainda - como os barracos são de madeira e perto da Cruz Vermelha, eles vão derrubar tudo, pois periga incendiar a qualquer momento. Mas vão dar casa de tijolos lá em Mangaratiba para quem tiver documentos. Por isso é que vou tirar minha identidade logo. Eu quero a casa. Vou buscar minha mãe para morar comigo. Deus é bom. Nunca me desamparou.


“Deus nunca me desamparou”? Um menino que viveu jogado pelas ruas durante cinco anos me dizia que era muito agradecido a Deus! "Ele nunca o havia desamparado"! Decididamente, aquele jovem me desconcertava. Costumamos reclamar da vida por tão pouco...

- E como é sua vida agora?

- Venho para cá, trabalho catando papel, entrego para o tal da cooperativa e fico por aqui, até voltar para casa.

- E antes, como era?

- Era igual, só que tinha de ficar na rua. Quando o tempo está bom, tudo bem, não tem importância. Mas quando chove e faz frio é muito ruim.

- O que era pior na vida da rua para você?

- Chover e fazer frio. O resto era bom. Só sinto muita saudade da minha mãe. A comida dela dá muita saudade. As coisas também, ir à escola, jogar bola de tarde, dormir quentinho. Era muito bom.

- Você vê sua mãe de vez em quando?

- Nunca mais vi, desde o dia que fugi.

- E como sabe dela?

- Por minhas irmãs. Uma mora na Mangueira, casada, tem filhos. Às vezes, passo os fins de semana lá. O marido dela é legal. A outra mora numa casa de verdade, no Meier. Também tem filhos. Visito de vez em quando e pergunto da minha mãe.

- Sabe se sua mãe pergunta por você?

- Não sei, não pergunto. Mas vou buscar para morar comigo, logo que a prefeitura der notícias da minha casa de verdade. Mas não o homem que vive com ela. Só ela.

- Posso te dar um conselho? Você ouve e decide.

- Claro! Se Deus mandou a senhora hoje...


O menino me desconcertava a cada passo. Eu procurava conversar e saber das coisas como se fossem as mais naturais do mundo. Mas as respostas dele me desconcertavam...

- Primeiro você tira a identidade, depois você põe a casa no seu nome e só depois procura a sua mãe. Se você diz que esse homem não é bom, é possível que ele ainda tome a casa de você. Faça isso só quando estiver em segurança! E mesmo assim, se sua mãe escolheu viver com ele, você sabe que ela pode não querer ir com você sem ele.

- Bom, se for para ele ir, então ela não vai. Mas vou tentar, assim mesmo. Sinto muitas saudades dela. Vou então cuidar da casa no meu nome. Viu como Deus sempre chega na hora certa? Eu não tinha pensado nisso! Agradeço sempre a ele antes de dormir, todos os dias.

- De que religião você é?

- Não tenho religião, tia, mas Deus sabe que eu sei que ele existe e está sempre cuidando de mim.


Pronto, essa foi a tacada final. Eu tinha um verdadeiro herói, diante de mim. Pequeno, franzino, de olhos profundos, educado. Eu quase não acreditava no que estava vendo.

- Como era sua vida nas ruas, com seus amigos? Você tem amigos, não é?

- Tenho, eles são legais, mas tem coisas que eu fico sozinho.

- Como assim?

- Eles querem que eu experimente. Nunca experimentei. Sei que faz mal. Meu pai morreu por causa disso. Meu padrasto é mau homem e fugi de casa por causa disso. Não quero essa vida para mim. Assim, às vezes, tenho de agüentar o que eles dizem, que eu não tenho coragem, que sou frouxo porque não quero experimentar. Mas eu não ligo. Agora que tenho casa, vou para casa e agradeço a Deus por saber que isso não é para mim.


Será que eu estava vivendo o mundo real ou seria sonho?

- Tem outros meninos como você, que não querem se viciar? Usei o termo de propósito.

- Tem, mas são poucos. Vivem por aí, como eu. Prefiro me afastar. Agora o que eu quero é trabalhar, ganhar meu dinheiro e ter minha casa.

- E os estudos?

- Parei na quarta série. Até do futebol do colégio tive de sair. E não tem escola para quem está na rua. Eles forçam a gente a voltar para casa e para lá eu não volto, não adianta. Assim, fiquei sem escola.

- Você gostaria de estudar?

- Eu não sei. Acho que sim. Não pensei nisso. Quero trabalhar direto na cooperativa e ter minha casa primeiro, trazer minha mãe. Depois eu penso.

- Você quer tirar sua carteira amanhã? Podemos combinar para tirar o retrato.

- Não precisa. Tenho dinheiro guardado para o retrato. Vou ver isso essa semana. Não quero que derrubem o meu barraco comigo sem o documento. Sei que a certidão de nascimento não serve. Eu preciso de um número de identidade para preencher o papel.


Eu queria acompanhar a vida desse menino. No fundo, queria ver o seu esforço e seu sucesso. Queria ajuda-lo. Os meninos ficam por ali e, na minha insensatez, achei que o encontraria de novo. Assim, nem perguntei como encontrá-lo. Pensei que o veria nos dias seguintes, por ali, como os demais meninos, que fazem ponto nas ruas.

Nos despedimos. Ele me agradeceu muito pelo jantar. Assim, já iria direto para casa. Estava feliz, pois sabia que sua vida iria mudar.

Doce ingenuidade. Que certeza tinha esse menino de que reconquistaria a mãe, depois de cinco anos de afastamento, sem nunca ter procurado por ele. Seria provável? Minha mente duvidava, meu coração torcia para que sim. Vim assim para casa, também certa de que o veria mais vezes, talvez no dia seguinte. Até lá, planejaria como ajuda-lo.

Passei no mesmo horário muitas vezes, durante uns dois meses, pelo mesmo caminho. Mal virava a esquina que dava para a Praça Cardeal Arco Verde e meus olhos buscavam esperançosos pelo vulto sentado à beira da lanchonete. Mas... em vão. Nunca mais o vi... meu pequeno príncipe das ruas...

3 comentários:

Celina disse...

CARAMBA!Você e Patrícia decidiram me levar às lágrimas essa semana. fico imaginando como poder ajudar alguém assim, que só precisa de uma força para ir adianta. Mesmo sendo só por um lanche, você deu essa força, querida.

Virgínia Bravo disse...

Claro que você o ajudou,mas se esse encontro te marcou tanto assim-até virou um conto,né?-é porque foi uma ajuda pra você tambem.Alguma coisa mudou no seu interior....
Acasos não acontecem!precisamos passar por aquilo, naquela hora!
bjs com amor!

pblower disse...

Amiga, a história eu conhecia, como conheço também sua sempre presente vontade de ajudar. Claro que vc o ajudou. Vc o recebeu e reconheceu como ser humano, ouviu sua história, se importou. É claro que vc o ajudou.