sábado, 15 de outubro de 2011

PRETINHA


Pretinha foi a gata que não tive.

Tudo começou com a minha intolerância de viver na casa do Humaitá, que você já conhece do conto “o galo”. Precisava voltar com urgência para o meu discreto e também silencioso recanto de Copacabana, a três quadras da praia, supermercado e farmácia a duas quadras, abertos 24 horas todos os dias e jornaleiro na esquina. Sem contar com o elevador que estava sempre funcionando! Meu querido apto que já me abrigara de 1978 a 1987! Era como voltar para casa. No Humaitá, sempre me sentira hóspede.

Excitada, portanto, pela mudança, como um bom filho que à casa torna, entrava e saía do edifício a toda hora, no afã de renovar o antigo ninho, por sinal destruído pelo inquilino. Como alguém consegue destruir um apto em um ano? Pois consegue.

Numas dessas idas e vindas me deparei com Pretinha. Novidade no prédio. Tinha sido trazida pelo porteiro Zé, o baiano, que você já deve conhecer do conto “o vigia”. Pois é, o Zé, amigo do Geraldo, nosso vigia noturno. Zé trouxera Pretinha da rua ou ela mesma teria adotado o prédio, ao ser alimentada com freqüência por ele. Foi ficando, ficando, cuidando dos ratos que visitam as lixeiras dos prédios de Copacabana. Começou a mostrar serviço e acabou sendo aceita como “funcionária”. Assim me contaram. Escusado dizer que não tinha nenhuma manchinha. Era totalmente negra, como lhe honrava o nome. Pêlo liso e curto. Lindinha. Olhei-a com o carinho de quem gosta de animais, mas não mais do que isso. Miou para mim, deu uma ligeira abanada de cauda. Em gatos, nunca sabemos o que essa abanada de cauda significa. Ou não sabia, até que nos conhecemos melhor.

Uma semana antes da mudança eu estava eufórica. Minhas idas e vindas se multiplicaram. Numa segunda-feira, bem cedo, vim trazer umas coisas para o apto. Pretinha estava estirada esquisitamente no tapete da portaria, bem na passagem dos transeuntes. Miava. Parecia ser de dor. Perguntei ao Zé.

- Está na hora de ter filhotes, respondeu. Está assim desde ontem.

- Levou ao veterinário?

- Levei, ele disse que demora mesmo e que ela sabe o que faz. É deixar.


Olhei para ela. Não estava com focinho de quem estava no domínio da situação. Muito pelo contrário. Para mim, parecia mais focinho de quem estava atravessando o caminho para ver se alguém conseguia entender a sua dor. Precisava de ajuda. Ademais, pelo que sei, gatas somem do mundo na hora de terem seus filhotes. Ninguém sabe onde se metem e se alguém descobre, mudam seus filhotes de lugar. Pretinha não parecia comportar-se desse modo. Miava muito. E alto. Não estava procurando ninho algum.

Não resisti. Liguei para André, veterinário de Neguinha, minha canária. Ele disse para levá-la lá imediatamente. Alguma coisa, com certeza, estava bem errada. Falei com o Zé, pois para todos os efeitos, ele era o “dono”. Coloquei-a numa caixa de papelão, levei-a para o carro. Seu olhar não resistiu, seu corpinho gordo não resistiu. Deixou-se levar. Deveria estar muito mal.

Tão logo cheguei à clínica foi diagnosticado o problema: os gatinhos jamais passariam por seu quadril estreito. Ele tinha uma parte da bacia entrada, provavelmente, por algum acidente de infância. A radiografia mostrava o primeiro gatinho preso, digamos, entalado na saída. Pude imaginar o sofrimento de horas sem fim!

Só com cesárea e aconselhamento de ligação de trompas. Ela não suportaria outra gravidez. Os filhinhos precisavam ser retirados o mais depressa possível. Eram cerca de duas horas da tarde. Eu já deveria estar na Universidade há tempo. Estava perdendo uma reunião. Aprovei o procedimento, mas precisava sair. André disse que não me preocupasse. Fosse trabalhar e a pegaria na volta.

- É meu dia de dar aula até as 22 horas!

- Não tem problema: deixo o enfermeiro na clínica esperando você voltar.


Santo André. Tudo certo. Pagamento feito, era dar uma última olhada no bichinho e sair. André estava acabando outro procedimento também grave e só poderia atendê-la em 20 minutos. Ok. Expliquei a ela, mais com todos os carinhos que podia encontrar do que com as palavras que ela não poderia entender. A cada contração, no entanto, desde que chegáramos à clínica, era no meu braço que suas patas dianteiras se agarravam, em angústia. Não pude deixá-la. Naquele momento, uma fêmea sentia a dor da outra. Não podia arredar pé. Ficamos, então, juntas, numa salinha de espera. O que eu falei a essa minha companheira de vida e o que o olhar desse bichinho me transmitia selou nossa amizade para sempre.

Finalmente, André veio buscá-la e fiquei ao seu lado até que fosse anestesiada, prometendo voltar para buscá-la. Fui trabalhar. Às 22h20min estava de volta. O enfermeiro abriu a porta tão logo toquei a campainha, dizendo dar graças aos deuses por minha chegada. Pretinha tinha tido cinco lindos filhotes. O que estava entalado também se salvara, mas era o mais fraquinho. O problema é que, tão logo acordara da anestesia, a gata nem olhava para os filhotes. E nem descansava. Ficara o tempo todo sentada na caixa, atenta, olhando para fora. Estava nervosa e inquieta.

Quando entrei, ela me viu, miou, encostou-se no fundo da caixa e adormeceu imediatamente. O enfermeiro disse que gatos são assim mesmo, principalmente quando estão fora de casa e conhecem o dono há muito tempo. Concluí, ali mesmo, que “muito tempo” era o tempo de sobra que tínhamos tido para nos tornarmos cúmplices. E isso me bastou para levá-la com carinho redobrado para casa.

Eu ainda estava morando na casa e não no prédio para onde me mudaria no sábado seguinte. Liguei para o Zé, porteiro. Para todos os efeitos, dono de Pretinha. Disse que estava tudo bem e que ela estava comigo. Avisei-o que era avô de cinco lindos bichaninhos. Disse também da cesárea e que era melhor ela ficar comigo por uns dias.

- Tudo bem professora.

O problema a enfrentar, no entanto, passou a ser outro. Entre mim e Pretinha ia tudo muito bem, mas ela simplesmente não reconhecia os filhotes como seus e se negava peremptoriamente a amamentá-los. Telefonei, de novo, para o André. Ele disse que, se até o dia seguinte ela não os alimentasse, que levasse toda a família lá. Isso era natural já que ela não tinha presenciado o nascimento dos filhotes e cuidado deles ao nascer.

Que drama! Cinco filhotes famintos e eu não sabia o que fazer. Lembrei-me, então, de minha cunhada, que morava perto e tinha um monte de gatos (para mim, mais de dois vira monte). Chamei-a e deixei-a a sós com Pretinha. Não sei o que ela fez, só sei que Pretinha começou a amamentar suas crias, para meu alívio. De brinde, ganhei ração para gatos e algumas instruções. Ela queria levar a gata para casa, apaixonada que é (ou era) por esses animais. Mas aí seria demais. Pretinha já significava mais do que uma simples gata para mim e tê-la sob meus cuidados passou a ser imprescindível. Sou boa cuidadora e, bem orientada, dou conta do recado. Até porque, a cada vez que eu me aproximava, todas as atenções de Pretinha se voltavam para mim.

Uma semana depois me mudei para o prédio. Minha primeira preocupação foi devolver minha amiguinha ao Zé, sã e salva com seus filhotes. Ele me ofereceu um. Não quis. Se você leu meus contos anteriores, se lembrará de que gosto tanto de animais que não posso vê-los presos. Não sob minha responsabilidade.

Pretinha passou a ser um marco em minha vida e, com certeza, eu na dela. Quando saía para trabalhar, se ela estivesse por ali, vinha correndo ao meu encontro e me acompanhava até o carro. Ao voltar da Universidade, no entanto, é que se dava nosso maior chamego. Ela me buscava no carro, me acompanhava até o elevador e era ali que brincávamos. Fazíamos muitos carinhos uma na outra e, a cada vez que eu ameaçava subir, ela miava como nunca, me prendendo por mais cinco minutos. Eu levava muito tempo até poder subir de verdade.

Todas as manhãs o capô do meu carro aparecia com marcas de patinhas. O Zé me dizia que era ali que Pretinha dormia todos os dias, depois de suas andanças pela cidade.

Pretinha morreu passados alguns anos. Provavelmente, de velhice, pois era muito bem cuidada por nós. O prédio a via com simpatia e ela não perturbava ninguém. Em meu coração, guardo a gratidão de ela ter-me ensinado a amar os gatos, bichanos que, até então, eu via com simpatia, mas certa distância. Aliás, no fundo, tenho certeza de que me ensinou muito mais do que isso.

Doce amiguinha... que saudades de você!!!

3 comentários:

Dani Dias disse...

Então vc já levou outra prenha de carro pra parir... que lindo, com certeza isso é amizade! Tava lembrando do trajeto para a maternidade hoje cedo no banho :) Apesar da dor, da nossa carona e tudo mais, não é que a lembrança é doce? Vai entender a natureza.

Celina disse...

Lindo demais! Você sabe que qualquer história de bicho me amolece toda. E uma fêmea e seus filhotes... Bichos falam sem palavras. Mas é tão fácil de entender. Bjs

pblower disse...

Esta história eu não conhecia. Me lembrei de Arepa, uma gatinha amiga em terras venezuelanas.