sábado, 11 de junho de 2011

TESTEMUNHA


Fui testemunha, uma vez, em toda a minha vida. Da santa fé católica. Ocorre que uma amiga muito querida, queria anular seu casamento religioso para poder casar-se de novo, segundo os princípios da igreja.

Não sei se você sabe: anular casamento religioso é um processo bem complicado, longo e trabalhoso, que transita nos corredores do Vaticano, exigindo mil e uma funções protocolares. E só pode ser concedido diante de uma série de pré-requisitos, como nunca o casal ter tido filhos, por exemplo. E corre como um processo judicial, cheio de protocolos e pendências, incluindo testemunhas.

Pois então... difícil arranjar testemunhas, ainda mais que aceitassem as exigências da igreja católica. As pessoas não gostam de ser testemunhas nem de roubos da esquina, quanto mais de algo tão mais trabalhoso...

Por isso, talvez, a dificuldade de minha amiga, sobre um casamento que já terminara há mais de vinte anos! Quem liga? E pra quê? Pra quê alguém iria se preocupar em anular um casamento de tantos anos atrás, se já está vivendo bem com outro grande amor, com filhos e tudo? Vai lá saber!!!...

Mas eu sabia. Tínhamos sido muito amigas (irmãs!) no colégio, de um carinho mútuo sem deslizes. E eu podia compreende-la: ao contrário de mim, ela permaneceu praticante dos rituais religiosos e, pensei que, provavelmente, uma situação como essa a colocava ao lado dos perfis aceitos pela religião. Quem é católico praticante sabe disso. E eu, que tinha traçado todos os caminhos da igreja por dez anos, também sabia. Então, um pouco titubeante apenas no que se referia a mim e não a ela, aceitei.

Titubeante? Claro! Ela não sabe, mas... se lê os meus contos, agora saberá.

Como eu tinha sido interna e sabia de cor e salteado os parâmetros concebíveis para ser aceita como testemunha, eu estava longe de preencher os requisitos: estava separada, melhor: divorciada (!), não tinha filhos e estava namorando. Não havia três melhores razões para me colocar completamente fora dos preceitos religiosos. A rigor, eu deveria ser excomungada, como você viu, se leu o conto “o marido que não era”. Mas o amor por essa irmã do coração foi mais forte e simplesmente aceitei. O máximo que poderia acontecer era meu testemunho ser rejeitado. Paciência. Tentar não custa.

Então, esperei o chamado dos responsáveis pelo processo no Rio de Janeiro, o que se deu duas semanas depois.

Tive, naturalmente, um cuidado especial ao me apresentar: sabia de velho que, se perguntassem muito sobre mim e meu estado civil, por exemplo, minha ida teria sido em vão. Que os anjos me ajudassem. Vesti minha cara de aluna de internato, pensei naquele anjo que me aparece nas horas mais desesperadas e entrei na sala com um sorriso interior de quem está ali para vencer.

A primeira iniciativa, é lógico, é jurar sobre a bíblia de que estaria comprometida com a verdade. Isso foi fácil, pois é lógico que eu não estava ali para mentir. Eu só estava era torcendo para que o assunto girasse apenas em torno de minha querida amiga e não sobre mim.

Mas é indispensável dizer que a primeira pergunta foi:

- Você é católica?

Graças aos deuses olímpicos, não me perguntaram se eu era católica praticante. Isso facilitou as coisas, pois me deu chance de responder:

- Fui interna no (nome do colégio) por dez anos, minha formação vem de lá. Meu capelão e confessor foi D. (nome de um frei beneditino super venerado naquela ordem e já falecido). Aliás, foi ele quem realizou meu casamento. Depois de formada trabalhei como professora na (nome da universidade, também católica), onde tive a honra de conhecer D. (outro frei beneditino do alto escalão). Minha formação foi, portanto, rodeada dos preceitos religiosos da fé católica, apostólica, romana.

Pronto. Não menti. Falei toda a verdade disponível em meu arsenal e com tantos predicados e pistolões, que ele nem percebeu que eu estava falando do meu passado, não do meu presente. Para completar, esse tipo de julgamento é entregue justamente aos beneditinos que, neste caso, respondem pelo Vaticano. Assim, tendo lançado mão de tão eminentes nomes de sua própria ordem religiosa, ele se esqueceu de perguntar qualquer outra coisa a meu respeito. Sorriu e disse apenas:

- Estes dados são suficientes. Passemos, então, ao testemunho.

E aí, foi até engraçado. As perguntas se restringiram a eu dizer se o cônjuge em questão era católico, se tinham tido filhos com a pretendente à anulação e se eu achava que tinham sido felizes. Fácil de responder: não, ele não era católico, era espírita, não tinha tido filhos com ela e eu não poderia dizer sobre a felicidade, pois era algo muito íntimo do casal. Mas poderia supor que um casamento que durara apenas em torno de um ano não seria um casamento modelo para a fé católica.

Isto posto, ele agradeceu e me dispensou.

Saí dali meio tonta. Tudo que eu falei refletia a mais pura verdade! Eu respondera exatamente como as coisas tinham ocorrido, como tinha sido a minha formação, como via o casamento realizado, tudo certinho, tim-tim por tim-tim. Ele perguntou, eu respondi, sem negar, sem sonegar informações solicitadas.

Mas algo, dentro de mim, me fez rever como são feitos os julgamentos, como são levados os processos (não me refiro aos católicos em especial, me refiro à lei em si), como é possível responder com verdades, omitindo informações, sem deixar de ser verdadeiro... só pode ter algum sofisma aí...

Estranho...

3 comentários:

pblower disse...

Eulalia, muitas vezes a justiça é surda ...

Eulalia disse...

ahahahhah... é verdade... e dizem que ela é cega... tamos mal!...

Marcelinho Martins disse...

Adoreiiiiiiiiii... como eu sempre digo: eu não menti, eu omiti!! E isso é ser verdadeiro sem magoar, sem complicar, sem tiubear...porque a mentira, ela sim tem pernas curtíssimas! E esta nos olhos de quem conta...