sábado, 12 de fevereiro de 2011

CHINA


Imagine um nordestino, desses mesmo que ficam de cócoras para conversar com você. E quieto, de olhar macio e doce. E caprichoso, calmo, cuidadoso, dedicado. Que tem por defeito beber tudo que ganha, no final de semana, mas não chega ao trabalho atrasado (com exceção das segundas-feiras) e nem se sente um cheirinho de pinga sequer durante a semana.

Desses que você olha e gosta dele no mesmo segundo e só não adota porque tem a mesma idade que você. Quase não sabe escrever letras e números, mas sabe contar para você mil alfabetos da vida.

China. Não me lembro do nome dele... ah... é Inácio. Inácio. Só me lembrei porque, depois de trabalhar para nós durante quase um ano na obra da casa do Humaitá - aquela, do conto do galo -, descobri que não tinha carteira de identidade. China, para quem comprei uma camisa nova para tirar o retrato da carteira e que saiu todo prosa para a foto e digitais. China. Que saudade de você. Por onde andará nesse mundão dos meus deuses?...

China, que topou não receber o dinheiro total da semana para que eu o ajudasse a economizar. Queria comprar um terreno lá em Campina Grande, sua terra natal, se não me engano, mas bebia no sábado tudinho que recebia na sexta. China, que aceitou que eu fosse o seu “banco” por meses, até ter os tais 150 que precisava para a tal compra...

- “Pode ficar, D. Lali... senão eu vou beber tudo mesmo...”

A obra da casa do Humaitá foi uma tortura chinesa para mim, sem querer fazer trocadilho com o nome de meu amigo. Mas é que foi mesmo. De um ano, dez meses, vinte e um dias e nove horas que morei lá, acho que tive China como único verdadeiro companheiro de luta e sobrevivência, a maior parte do tempo. É que meu ex escafedia-se em viagens de trabalho por quase todo tempo, aproveitando da casa muito mais os finais de semana e feriados do que qualquer outra coisa. Para mim e para o China sobrava o pesado, a poeira, a atrapalhação e principalmente a minha falta de jeito para resolver os imprevistos.

Um dia – como posso me esquecer? – resolvemos acabar com a inundação do subsolo a cada chuva frouxa que aparecia. Chovia um tiquinho mais e pronto: o subsolo ficava uma graça de lago... e para escoar tudo aquilo, fora o estrago constante das coisas que ficavam lá é bom nem comentar. A obra seria grande, exigindo escavar três metros para baixo do solo em todo o frontal da casa. China dispôs-se a pegar o serviço e eu bem sabia que ele iria levar isso com muita competência. Competência e dedicação. Aconselhou-me a esperar a época da seca, pois uma chuva com todo o frontal da casa escavado até três metros abaixo do solo daria uma tragédia em dobro, com a mínima chuvinha que fosse. Enquanto isso, ele reformava o resto da casa, consertando aqui e ali.

Esperamos a época da seca e começamos o serviço. Não é preciso dizer que naquele ano choveu prá caramba na seca, o que nos deu um trabalho extra e uma obra que durou muito mais do que os 30 dias programados. Na verdade, ficamos 4 meses naquela tortura. De qualquer modo, o trabalho ficou impecável e, fora as inúmeras inundações, enquanto não ficava pronta, tudo saiu bem, com exceção de um dia. E jamais me esquecerei do China, também por causa disso. Minha gratidão para sempre.

Ocorre que, para cavar o corredor frontal da casa, ficaram expostos os canos que vinham de cima e dos vizinhos ao lado. O “de cima” deve ser lido como a casa dos empregados e os canos, diga-se, mais especificamente, referiam-se à saída do esgoto. Era imprescindível, portanto, tomar o maior cuidado para que não se quebrassem, pois seria água para todo lado e... pior... suja! Assim, cuidávamos desses canos expostos como quem cuida de porcelana chinesa, é claro. Num domingo à noite, no entanto, evidentemente que sem querer, meu ex deixou cair um vaso exatamente no cano de esgoto e toda aquela sujeira invadiu o subsolo. Você pode imaginar no que deu. Aliás, não pode. Não mesmo. Mas tente: um esgoto em seu subsolo, com aquelas prendas boiando e tudo. Sem falar no cheiro. Não havia o que fazer, senão solicitar ao síndico que fechasse o registro do esgoto da casa dos empregados, senão, a cada descarga, lá em cima, seríamos brindados com mais uma sujarada aqui embaixo. Isso mesmo. E... vindo do subsolo, o cheiro inundava toda a casa. Não dava para dormir, não dava para respirar...uns três palmos do chão de água infectada em todo o seu esplendor.

No dia seguinte, de manhã bem cedinho, meu ex partiu para Brasília e me deixou com a solução da m... tanto em seu sentido literal quanto metafórico. Que eu não me preocupasse, o China resolveria o problema. E se mandou. Pois é... o China ficou doente exatamente naquela segunda.

Sozinha, tive a brilhante idéia de chamar outra pessoa pelo menos para consertar o cano. Eu não conhecia ninguém que fizesse o serviço e não podia contar com alguém que me ajudasse, pois meu ex tinha mesmo se mandado. Sem experiência no assunto, rodei como barata tonta sem sucesso por ali. Não encontrei ninguém. E ninguém, evidentemente, se prontificou a me ajudar. Cada um com seus problemas e, claro, tive mesmo de esperar até a terça, rezando para o China ter ficado bom. De brinde, os empregados, vez por outra, abriam o registro, me presenteando com mais algumas prendas e cheiros. E precisava dizer que choveu naquele dia para aumentar o volume da tragédia?

Felizmente, eu dava aula na segunda final de tarde e noite. Só cheguei tarde em casa, aliás, de propósito, para evitar ao máximo o convívio com o desastre. Outra noite sem dormir, estourando de dor de cabeça. Não tinha o que fazer. Era mesmo esperar.

Na terça, quando o China chegou, só pela minha cara e pelo cheiro, ele percebeu a tragédia, mesmo antes de baixar os olhos para os canos. Desceu ao subsolo como um bólido e falou um palavrão que eu aprendi naquele momento. Tão logo falou, olhou para mim e me pediu desculpas, pois ele sempre fora muito cuidadoso comigo. Eu apenas lhe disse que, se conhecesse aquele palavrão, teria dito dez mil vezes durante todo o final de semana... que ele ficasse tranqüilo quanto a isso e apenas me socorresse.

- A senhora fique tranqüila. Hoje só saio daqui quando sua casa estiver em condições. Por favor, saia e me deixe aqui. A senhora não precisa ficar aguentando esse cheiro.

- E você? Vai entrar nessa sujeira sem botas, luvas e tudo que for necessário? Nada disso! Me faça uma lista e vou comprar o necessário.


China sorriu. Um sorriso doce, amigo, mas humilde e triste. Eu podia ler sua alma, tenho certeza disso.

- D. Lali, eu estou acostumado a limpar esgotos, faço isso para ganhar um extra. Entro naquelas caixas há anos, assim como estou. Já estou vacinado...

Sorriu e acrescentou:

- A pinga vacina.

Vacina, pensei, claro que vacina... ou melhor... não vacina: anestesia sua alma da dor. Da dor de viver assim, humilde, fazendo a casa dos outros mais bonita, sem você ter a sua, limpando a sujeira dos outros. Naquele momento, disfarçando eu mesma a minha dor de não poder consertar o mundo, pedi-lhe que eu pudesse comprar botas e luvas para aquele e para os serviços futuros. Mas ele respondeu:

- Não dá para usar, não. Nem adianta. As caixas em que eu entro, nem com capa me livraria da sujeira. Já estou mesmo vacinado. E isso aqui não é nada, perto das caixas de esgoto estreitas em que já estou acostumado a entrar.

Disse isso, já entrando naquela sujeira toda e listando os detergentes que eu teria de comprar. Saí dali o mais depressa que pude, pois não conseguia conviver com o que estava presenciando. O China, meu querido “filho” do coração, desvendava sem querer o tipo de vida que levava, muito pior do que eu podia imaginar que pudesse existir, contando tudo com a mesma resignação de tantos peões nordestinos que vieram buscar sustento no sul do país, do mesmo modo acostumado, acomodado, por necessidade de sobrevivência, com o pior que a vida pode oferecer a um trabalhador: falta de condições para seu trabalho, inumeráveis destratos e humilhações, pouco caso, desamor, salário abaixo da crítica.

Eu não sabia o que fazer. Não sabia como reagir. Sequer podia impedi-lo de entrar naquela sujeira, pois ele já tinha entrado, como quem entra em um lugar qualquer! Comprei as coisas às pressas, voltei mais rápido ainda. Não sabia o que dizer. Sumi dali, subi ao andar de cima. Lembro-me que chorei muitas vezes, durante aquele dia. Não pelo China, mas por todos nós: pelos que fazem, pelos que mandam fazer, pelos que não sabem (ou não sabiam, como eu) que isso era feito assim.

Agora mesmo, ao escrever este conto, quantos trabalhadores estarão entrando em caixas de esgoto para limpá-las como fazia o China... e o que fazemos para impedir isso?

Lembro-me até hoje do olhar doce do China que me conquistou como um filho, um filho da vida, posto a meus cuidados. Seus olhos puxados, seu sorriso macio. Quantos de nós temos o privilégio de toparmos com almas assim? A doçura, a dedicação, a lealdade desse amigo jamais deixarão minhas lembranças. Como me lembro, também, até hoje, do perfume de limpeza que ele deixou em minha casa à noite. Um cheiro de lavanda bem suave no lugar do cheiro insuportável da manhã. Ele deveria ter deixado o trabalho às 16 horas, como sempre combinamos, mas naquele dia, fez questão de deixar tudo limpo e arrumado. Não saiu antes das 22 horas, com certeza.

Na quarta, ele consertou o cano e tudo voltou ao normal. Tudo? Não. Algo havia mudado. E muito. Minha gratidão, uma gratidão que não podia ser paga com qualquer dinheiro do mundo. Não pelo fato propriamente dito, embora seja verdade que, por si só, já valeria o reconhecimento. Mas pela dedicação e pelo cuidado com que ele fez questão de realizá-lo.

E senti que, para ele, algo também havia mudado. Ele não se sentia mais tão funcionário, mas cúmplice. Um cúmplice fiel, cuidador, alguém que estava ali para dar conta do recado. Não havia intimidade até então, mas, a partir desse dia, contávamos piadas um ao outro e ele passou a sorrir. Um sorrisinho discreto, mas solto, de quem se sente mais em casa e sabe que tem a responsabilidade de resolver problemas. Algo como se sentir valorizado.

Foi depois disso que aceitou que o ajudasse a tirar a carteira de identidade. E também foi depois disso que aceitou que eu fosse seu banco para comprar a sua terrinha lá no nordeste.

Algo mágico aconteceu naquele dia. Algo que, até hoje, não sei exatamente identificar. Mas sinto que lhe deu dignidade e valor. Uma mágica da vida. Bendito cano arrebentado. Agradeço, hoje, a meu ex, por tê-lo feito, assim como agradeço por ter-me deixado sozinha, na segunda, para resolver o problema... e... agradeço também à vida por nenhum vizinho ter-se importado com o meu infortúnio ou tentado me ajudar a achar alguém que pudesse quebrar um galho momentâneo. Os meandros da vida são incríveis: selou uma amizade para sempre.

China voltou para o nordeste um ano depois disso. Soube que esteve no Rio uma vez ainda e veio me visitar aqui em casa, pois já havia voltado para o meu apto de Copacabana. De brinde, ainda fechou um buraco de ar condicionado que o inquilino tinha deixado. Doce China. Sempre cuidadoso. Não se conformou em deixar aquilo como estava...

China comprou o tal terreno, perto da casa de sua irmã. Liguei para ele, durante muitos anos, ou melhor, para a casa de sua irmã, todos os seus aniversários até que um ano, o número não conferiu e o perdi de vista. Mas quando ligava ele, todo emocionado, voz embargada no outro lado da linha, me dizia:

- Nossa... a senhora não se esqueceu.

Como poderia me esquecer do China, depois das aventuras que passamos juntos na casa do Humaitá? Impossível... China que dizia gostar de mim como gostou da mãe dele. Pobre China... rico China. Por onde andará nesse mundão de meus deuses? Que eles o protejam como tantas vezes ele me protegeu!

7 comentários:

Anônimo disse...

A doce e mágica sabedoria que a vida tem para aproximar pessoas que precisam se encontrar, às vezes por meio de circunstâncias inimagináveis...
Belo encontro. Belo conto, querida!
Beijos

Décio disse...

Hj consegui (acho que consegui!) entrar aqui e fazer um comentário: não sou bom com o mouse e coisas do tipo!
Só pra te dizer, Eulalia, que, depois da Alemanha, só mesmo esse conto da (ou melhor, DO) China! bjs pra vc!

Celina disse...

Eulalia querida,
adoro ler seus contos contados do jeito que você conta! você sintoniza perfeitamente, como se fosse uma imgaem de televisão... o brilho, contraste, as cores.
China, que bom que você encontrou um!

pblower disse...

Como é bom poder contar com a surpresa de encontrar pessoas assim. Elas estão em muitas partes e quando nem esperamos elas surgem como anjos. São muitos, cheios de inocencia e simplicidade. Lindo conto. Este, eu não conhecia.

Unknown disse...

Pois é, China e Muro, o primeiro uma muralha de ajuda contra os canos, os cheiros, ao teu lado ajudando na reconstrução e aproximando duas lindas almas (" O Muralha do China"). O segundo, um vergonhoso Muro, que por obra de muitos outros "Chinas" veio abaixo, ajudando na reaproximação de muitas almas antes afastadas. Breijos.

Eulalia disse...

Que poético!
Como a simplicidade do China conseguiu mobilizar tantos e tão lindos comentários!
Obrigada pelas postagens de vocês!
Como eu gostaria que ele soubesse... (sorriso)
beijos!

Lilian Cristina Pires disse...

Amei, querida. Tocante. Voltarei sempre. Beijos.