sábado, 5 de fevereiro de 2011

O MURO



Berlim Ocidental, lado de cá do muro, década de 80. Andei ao longo dele na véspera da visita ao lado Oriental. Todas as espécies de rabiscos e pichações eram observados por meus olhos atentos e entristecidos. Mensagens de solidariedade, de revolta, de estupefação e mil outras coisas, escritas em várias línguas. Tive vontade de desenhar uma flor, mas não tinha grafite ou tinta. Me chamou a atenção um desenho de rachadura no muro com um rosto entristecido desenhado nesta suposta fenda, como se estivesse olhando para nós, do lado de cá. Perdi o slide, mas me lembro bem do desenho. Lágrimas no muro, lágrimas nos meus olhos.



Caminhei por ali, sozinha, pensativa, quieta. O que haveria do outro lado? Havia muito espaço para a mente e o coração naquela tarde morna e tranqüila... e eu tinha muito tempo para caminhar solta por ali, sem pressa, perdida e achada em meus pensamentos.

Topei com o museu do muro. Nem sabia que existia. Entrei. Visitei as histórias escritas nos murais e uma infindável mostra de fotos e artefatos construídos pelos cidadãos que fugiram para o lado ocidental. Fugas das mais loucas e perigosas, desesperos de causa, busca de liberdade...



Meus olhos rabiscavam as paredes e os objetos do pequeno museu como quem olha para uma fantasia e não para algo palpável. Meu coração, por certo, se preparava para a visita do dia seguinte.



A princípio, não tinha nenhuma curiosidade de atravessar a fronteira para algo que, com certeza, não traria paz ao meu coração. Fui, no entanto, impulsionada pelos museus que esta parte quase inacessível de Berlim guardava como jóias do tesouro oriental: o Altar de Pérgamo



e o Portal de Ishtar, da Babilônia.





Eu estava, por certo, a apenas alguns poucos quilômetros desses dois tesouros. Era suficiente atravessar a fronteira, ir e voltar incólume.

Incólume... doce ilusão.

No dia seguinte, acordei cedo. O visto permitia uma visita de apenas um dia, das nove às dezessete horas. Por via das dúvidas, não queria perder a chance de ver o que queria com calma, quem sabe, subir na torre para ver a cidade de cima e também ver a célebre quadriga do Portal de Brandenburgo de frente



já que, do lado ocidental, só a podíamos admirar de costas, junto ao muro.



Por certo, o dia me traria uma longa caminhada, e muito pouco tempo para ver tudo com calma.

Havia dois únicos acessos ao outro lado da cidade: uma estação específica de ônibus, que deixaria o turista também num ponto específico do lado oriental e uma estação de metrô, nas mesmas condições. Preferi o metrô através da estação de acesso, Friedrichstrasse.



Após tantos anos, tenho vontade de voltar lá só para ter a alegria inominável de usar a mesma estação para atravessar de um lado para outro sem visto e em plena liberdade. Um dia, quem sabe...

Entre a estação de embarque e a de desembarque, havia duas estações pelas quais o metrô passava, devagar, mas sem parar. Estações desativadas, quase totalmente às escuras e... meu primeiro impacto: nas plataformas, soldados com cães pastores alemães. Sensação esquisita de perda... falta de ar.

O desembarque levava os passageiros por um corredor e um conjunto de cabines, como essas de migração. Senti que, realmente, estava entrando em outro “país”. O soldado de plantão virou meu passaporte pelo avesso, conferiu com muita atenção minha foto. Pude perceber que se mostrava insatisfeito. Minha foto me mostrava com cabelos compridos e eu estava com cabelos mais curtos. Enfim, consegui passar. Nova caminhada por um corredor interminável. Senti-me esquisita, caminhando em meio a uma massa de pessoas mais “levadas” do que “caminhantes”. Eu acabava de sair de uma cidade cheia de luzes e cores, alegre, buliçosa, em cuja véspera tinha tido meu inesquecível encontro com o velhinho dos correios, o famoso “Papai Noel” a que já me referi num conto anterior – “Quem diria”.

Aquela sensação não combinava em nada com o que tinha vivenciado até então. O corredor acabava numa porta enorme, de aço, que se abriu em dois e, finalmente, pude respirar o ar da cidade.

A primeira impressão foi a de que eu tinha saído de um filme colorido para um filme em preto e branco. Todos os prédios em cinza, com exceção dos públicos, que sustentavam paredes em vermelho. Os carros antiqüíssimos, uma cidade limpíssima, mas... triste.



Fiquei aborrecida, ao voltar para minha casa, por ter tirado tão poucas fotos. Mas estava tão impressionada com o que via e sentia, que não me arriscava a grandes feitos. Tudo ali transpirava disciplina, constrangimento, sisudez. Fiquei um pouco tonta e perdida por algum tempo, perambulando sem muita direção. Mas logo depois tomei o rumo do Portal de Brandenburgo. Não havia tempo a perder. Pelo caminho, observava a singeleza do povo, as vestes simples, o recato. Era muito fácil discernir entre moradores e turistas.

Passei por um soldado, provavelmente, em hora de descanso. Estava numa pequena ponte, à beira de um rio. Não tive coragem de tirar uma foto dele, mas tirei do rio, para guardar de lembrança.



O jovem me chamou a atenção por sua farda remendada, seu olhar longínquo. Em que estaria pensando? Em seu amor, talvez? Em sua vida? Em suas possibilidades? Como gostaria de saber o que escondia aquele rosto tão triste e sombrio... para mim, no entanto, aquele rosto não era apenas o rosto do soldado. Eu o sentia como o rosto da cidade. Por todos os lados que andei, a impressão era a mesma...

Passei por alguns lugares com lojas e foi aí que senti pena de não ter usado mais minha máquina de fotos: as vitrines ostentavam, faceiras, os livros de Max, coisa que não víamos com facilidade no Brasil, naquela época. Mas o que mais me chamou a atenção foi a falta de variedade de ofertas. Numa sociedade sem concorrência, as câmeras eram daqueles modelos bem antiquados, do tipo caixote, enquanto eu sustentava minha Fujika último tipo. Os carros antiqüíssimos... e muito poucos pelas ruas. Enfim, era mesmo como se eu tivesse retrocedido dezenas de anos, ao ultrapassar aquela porta de aço. Choque cultural profundo.

Cheguei ao Portal de Brandenburgo e foi aí que me surpreendi mais ainda: havia um policiamento ostensivo. Por que seria? Um carrão último tipo, estacionado, me chamou a atenção. Minhas antenas observadoras procuravam seus donos. Como teriam atravessado a fronteira??? Olhei para o Portal de Brandenburgo e em volta. Muitos soldados atentos a nós, turistas! Percebi que a visita ao Portal exigia distanciamento. Havia, no entanto, um pequeno grupo de pessoas que tinha tido o privilégio de atravessar a linha de segurança. Quem seriam? Do grupo se destacavam dois homens fardados impecavelmente, num contraste quase cruel com as vestimentas do triste soldado que eu vira ruas atrás. Olhei novamente para o carro. Bandeira soviética. Meu coração bateu mais forte. Lembrei-me imediatamente da leitura de “A revolução dos bichos”. Era isso. Exatamente a concretização da leitura que eu via se descortinar a minha frente. Eu precisava fotografar. Levei a máquina ao rosto e fui imediatamente interpelada por um soldado que estava perto de mim! Não era permitido fotografar o grupo de visitantes soviéticos! Incrível.

O soldado não falava nenhuma língua que eu pudesse entender. Me parecia russo, pois meus ouvidos não sentiram nenhuma familiaridade com o alemão que eu estava ouvindo por aqueles dias. Fiz que sim, com a cabeça e apontei para o Portal, como quem diz que está apenas interessada na atração turística. Naquela época, as câmeras eram mecânicas e as fotos eram tiradas em rolos. Fosse digital, eu não teria conseguido usar os maravilhosos recursos de abertura de ângulo, sem que ele percebesse ou pudesse pedir, depois, para conferir o que eu tinha fotografado. Assim, o recurso me permitiu tirar essa prenda. Pena que não deu para usar a zoom... daria na pinta demais:


Tirei a foto e, como boa carioca, sorri para o soldado, como quem tinha feito a coisa mais inocente do mundo. Não consegui, no entanto, tirar a foto do carrão. Depois, dei uma disfarçada e esperei para conferir mais de perto. Isso mesmo: chiquérrimos.

Tudo igual. Aqui, lá, em qualquer lugar. Dentro e fora do muro... por caminhos diretos ou tortos, a exploração do homem pelo homem parece justificar-se por si mesma. Lágrimas nos olhos, descrença já previamente concebida. Apenas a constatação pura e simples de que a alma humana caminha segundo suas próprias escolhas, independente de crença, religião, política, cultura. O que é bem, o que é mal... tudo misturado, num balaio de intenções as mais diversas. Tudo isso invadiu meus pensamentos por tempo que não pude perceber no relógio. Nada como visitar um lugar sem pressa, passo a passo, diante do canto e do desencanto. Viver por dentro e por fora, pelos olhos e pelo coração.

Impossível, mais uma vez, sair incólume da experiência.

Mas era preciso viver outras sensações. Dali, segui meus passos buscando o encantamento dos museus: o Altar de Pérgamo me esperava altaneiro e o Portal de Ishtar me fez sonhar com um passado de povos de muitas aventuras. Curti cada minuto, cada mosaico, cada degrau dos inúmeros e maravilhosos monumentos. Parte boa da visita. Privilégio.

A volta me brindou com outro soldado da migração que quase não acreditou que a minha foto combinava com o meu rosto. Enquanto esperava o sisudo companheiro conferir os dados, fiquei pensando que só me faltaria a aventura de quererem me prender por ali. Mas passei.

Não posso dizer que foi uma visita ao inferno, pois os museus enfeitaram minha visita. Mas com certeza, povoei de uma profunda tristeza o meu coração, que saiu muito oprimido com tudo que vi por lá.

No dia seguinte, pelo lado Ocidental, caminhei novamente pensativa, ao longo do muro. Queria saber o que eu me diria por dentro. Num determinado momento, sem que eu me desse conta, de tão rápido foi o impulso, chutei aquele concreto com força, com ímpeto, com raiva, com determinação. Fiquei dois dias com dor no pé, pela força do impacto. Entendi de pronto, por dentro, a indignação dos ocidentais diante daquela infâmia. Parentes separados, ruas cortadas, comunicação impedida, passagens proibidas. Voltei ao museu do muro e todo ele ganhou outro significado para mim.

Destaco para você a foto de uma pixação no muro, a pintura de uma mão que se insinua por uma "fenda", oferecendo uma flor a outra mão, do outro lado, que se estende para pega-la. Exatamente o que simbolizava, naquela época, a busca de retratar a profundidade do sofrimento da separação. Quantos parentes e amigos sofriam desse mal... A foto não está muito nítida, pois o slide é antigo e a própria pintura não era nova. O quadro faz parte do acervo do museu.



Anos depois, quando o muro foi derrubado, infelizmente, eu não pude participar in loco da festa. Mas não perdi nenhum noticiário sobre o acontecimento... e acompanhei de perto, tão perto quanto as notícias permitiam, como a Alemanha teve de se deparar e contornar a diferença cultural que se impôs, depois de tantos anos em que irmãos foram separados por quilômetros de desvario humano.

E me lembrei daquele soldado da ponte... por onde andaria? Estaria sorrindo?

3 comentários:

pblower disse...

Lindo texto. Maravilhoso, a uqeda do muro. Uma pena é que ainda existam tantos muros neste mundo cheio de xiitismos.

Adoramos estar com vc ontem.

Celina disse...

Querida,
uma experiência linda e histórica. Me arrepiei lendo seu texto, um depoimento dos mais sinceros de quem tem olhos para ver com o coração, sentir o concreto com o abstrato dos sentimentos. A foto das mãos, uma pérola! Amei esse era uma vez, e que verdades!
Muitos beijos.da sua fã

Anônimo disse...

Adorei. Muito olhar e um bocado de coração.
Gosto muito dos seus contos. Do jeito como conta. Tanto, que leio o blog devagarinho, economizo leitura, como costumo fazer com os livros que mais me dizem. :)
Beijos