sábado, 22 de janeiro de 2011

SILVIO


Silvio apareceu no hall do hotel exatamente no horário combinado.

Eu fora a Salvador para apresentar um trabalho em um congresso. Tínhamos, então, combinado um encontro na véspera de meu retorno ao Rio.

Silvio enfeitava meus pensamentos há alguns meses. Mas é preciso explicar, primeiro, quem é Patricia, peça fundamental nessa história.

Ocorre que Patrícia é a irmã que a vida se esqueceu de fazer nascer da mesma mãe. Então, para remendar a falha de execução do projeto, a vida consertou o tecido dessa teia, fazendo com que Patricia aparecesse lindinha e jovem (cinco anos mais nova do que eu), como minha aluna de Letras, na década de 70, se não me engano. Ela, com certeza, me corrigirá se estiver errada. Mas acho que foi nos anos 70 mesmo, pois ela deveria ter em torno de 19 e eu 24, bem no início de minha carreira.

É preciso dizer que Patrícia pertencia a uma das minhas primeiras turmas, na primeira universidade em que dei aula. Por sinal, a mais querida e inesquecível. A tal de Português-Inglês, do conto "O Cresta". Outras turmas vieram, na universidade pública, muitos anos depois, mas, nessa universidade, este grupo de jovens teve, com certeza, um destaque especial.

Como Patricia, muitos de meus alunos se transformaram, com o tempo, em minha família. A vantagem da família social é que ela vai se compondo aos poucos, aos sabores e dissabores da vida. Quando você vê, estão todos ali, com o correr dos anos. São tão amados que seus sangues, com certeza, correm em minhas veias ou, pelo menos, seus corações pulsam no meu.

Patrícia, sem tirar nem por, é a irmã que se fez no decorrer desses últimos trinta e poucos anos, com a graça das flores campesinas, a vitalidade e a fortaleza do carvalho, a flexibilidade e a canção noturna dos bambuzais ao vento. Poesia e prosa visitam nossas conversas sobre a vida nas suas mais variadas facetas. E Patricia, com certeza, longe de ser minha ex-aluna, sabe olhar nos meus olhos e dizer: “amiga...” e descarregar as palavras mais certeiras e eficazes que meus ouvidos e coração precisam ouvir, nos momentos mais desesperados da minha vida. Tudo com a clareza objetiva da mente aguda e perspicaz que povoa essa tão indescritível criatura. Pura lógica, mas, também, puro coração.

Não posso falar sobre Patricia. Ela mesma sabe muito bem falar sobre si mesma, em seus contos e poesias. Gostaria de dizer o que ela é, de descrevê-la, de desfiar as contas de um rosário de luz cristalina e pura. Mas seria apenas pintá-la e você não poderia sentir o sangue que corre em nossos corações. Então, deixemos como está, frisando apenas que por muitos anos vivemos distantes, mas que isso não fez a mínima diferença. Onde quer que ela estivesse, se precisasse de mim, estaria lá. A terra é apenas um sonho. Os países são apenas distâncias transponíveis pelo amor. E nos encontrávamos sempre, pois Patricia não era gente de deixar de vir ao Brasil. Eu, tampouco, deixaria de ir vê-la às pressas, se preciso fosse, ou apenas para curtir sua companhia, como já fiz, sempre que a vida pode me brindar com esse presente.

Mas parece que deixamos Silvio lá, em pé, no hall do hotel, enquanto eu contava essa história toda. Voltemos a ele.

Contar como Silvio e Patricia se conheceram não me cabe. Mas cabe dizer que os dois formam um casal super interessante. Gosto de vê-los juntos, depois de tantos anos de revezes, que os contos de Patricia saberão descrever melhor do que qualquer narrativa da minha parte.

Por hora, cabia-me conhecê-lo, na época morando em Salvador, enquanto Patrícia morava no Rio. Eu queria ver quem era, conferir se a vida tinha pregado uma peça ou se ele valia mesmo a pena. Afinal, como irmã mais velha, eu estava de olho nos pretendentes de Patrícia... não que isso fizesse lá muita diferença e muito menos que eu fosse me meter em qualquer das histórias de minha irmã, a quem amo sem condições. Mas que eu estava atenta e curiosa, lá isso eu estava.

Soube, muito mais tarde, que Silvio fora me buscar cheio de recomendações. Para onde me levar, o que eu comia o que eu não comia, que gostava de dançar, enfim, a receita de ser um anfitrião à altura. Como bom geminiano, no entanto, Silvio parecia muito tranqüilo, ali, em pé, sorridente quando me viu. Parece que adivinhou quem eu era ou decorou o meu retrato para me reconhecer. O fato é que ele se dirigiu a mim, tão logo atravessei o hall em busca de alguém a minha espera. E olha que o hall estava cheio. Como bom engenheiro, no entanto, ele deveria ter calculado que era eu e veio logo me abraçar, salpicando um beijo gostoso no meu rosto. Não vou me esquecer dessa primeira impressão.

Palmilhamos alguns lugares noturnos da cidade, como o Pelourinho, por exemplo, naquela noite de verão suave e brando. Depois, ele resolveu me levar a um lugarzinho, cujo simpático nome me esqueço. Bode Beer ou coisa assim. Sei que não mais existe. Ali, serviam, segundo ele, uma deliciosa carne de bode. Isso mesmo, carne de bode, já ouviu falar? Estávamos em 1996 e eu ainda comia carne, naquela época. Mas, como sempre, enjoadíssima para comer. Eu acho que ele já tinha sido doutrinado para isso e me garantiu que tinha outras coisas lá, como saladas e que eu poderia apenas experimentar, se quisesse, só para saber como era. Até porque o ponto alto do lugarzinho era o fato de podermos dançar o tipo de música que ele sabia que eu gostava. Imagine, o moço era também dançarino. Hum... muito bom.

O fato é que eu comi a tal carne de bode, parece que a coxa, de cujo gosto não me lembro, mas que achei muito boa. Dançamos muito, conversamos sobre tudo. Ele havia me buscado às 20 horas e ficamos por ali até as 4 da manhã. Eu, jeitosamente, abri um inquérito para saber o que ele fazia, como era, como não era. Afinal, tratava-se de um possível futuro cunhado, mas, antes de tudo, de um possível co-responsável pela felicidade de uma irmã. Assunto não faltou e Silvio não deixou a peteca cair em nenhum instante. Decididamente, mesmo diante de minha lupa aguçada, ele parecia servir.

Por certo ele sabia o quanto Patricia e eu éramos próximas, mas suas atitudes demonstravam a segurança de um príncipe. Eu, por meu lado, não deixei barato. Não dava nenhuma dica do que estava achando, embora estivesse encantada. Afinal, era apenas a primeira impressão e eu não sou apressada em julgamentos, quer bons, quer maus. Ele estava ali, tranqüilo, sem mexer uma palha de suspeita de ansiedade. E isso lhe dava uma nota à parte.

Mas... ah, puro engano! Às quatro da manhã, como eu estava só de papo, ele não agüentou:

- Ok, tudo bem. Mas que nota você dá?

Foi aí que percebi o quanto, para ele, minha opinião era importante. Por dentro, sorri, mais seduzida ainda, mas não me fiz de rogada. Olhei para ele, sorri ligeiramente, pensei um pouco e respondi:

- Sete.

Se havia alguma coisa que faltasse em mim para que Silvio me conquistasse, esse pedaço se entregou por inteiro com a sua resposta:

- Ah, não! Peço revisão de prova!

Arrancou-me, com certeza, uma gostosa gargalhada e, então, eu respondi:

- Tá bom, nove.

- O que faltou para o dez? retrucou ele, fazendo uma espécie de bico. Segurei sua mão, encantada, mas me mantive firme, embora sorridente:

- Dez só dou para Patrícia.

- Tá certo, você ganhou. Mas... por enquanto.

Sempre dou nove para Silvio. É quase uma senha de nossa grande amizade, esse cunhado-irmão, essa gracinha de pessoa que Patrícia fez atravessar o meu caminho.

4 comentários:

pblower disse...

Ah, amiga, assim não vale. Vc me deu um super presente. Recordar esta história e ainda me levar a Caracas novamente através de suas fotos.Silvio está todo estufado com o texto e como ele hoje consertou o sofá da sala, vou dar para ele nota 9,5 (rsrsrs). Muitos beijos e adoramos o texto e as fotos.

Eulalia disse...

Tá, eu topo 9.5, mas só por este domingo (sorriso)

Anônimo disse...

Aprecio demais esse resultado singular que você consegue ao temperar seus contos com essa leveza, essa sensibilidade, essa elegância de escrita e também com esse bom humor.
Esse texto é um bom exemplo disto.
É lindo!
Beijos

Celina disse...

Pois eu dei de cara um enorme 10 para o meu primo cósmico! E 20 para esse casal que eu tanto amo e que se ama tanto, fazendo a gente ser feliz com eles! amei, querida, esse conto e nós sabemos o quanto o final que está sempre no começo é e será feliz!
bjos!