domingo, 26 de dezembro de 2010

QUERO MEUS DIREITOS DE VOLTA (conto de ano novo)


Falamos tanto de direitos humanos, de direito civil, direito isso, direito aquilo, mas nos esquecemos do melhor dos direitos: o direito de podermos comandar nosso eu interior, nossos passos da alma, nossas emoções. O direito que podemos e devemos nos dar de vivermos o melhor de nossas escolhas.

Enquanto olhamos para fora, para a crítica da mídia, do sistema, do planeta, do isso e do aquilo, quem sabe, não estejamos, antes de tudo, mascarando os direitos mais profundos e internos de nossa própria vida, aquilo sobre o que podemos decidir sobre nós mesmos, antes de decidirmos sobre o que existe fora de nós.

Não sou contra a luta social, muito pelo contrário. Na juventude fiz passeatas, participei de greves, vesti camisas, me arrisquei a perder o emprego, mas não deixei por menos: fiz. Não me arrependo, era a hora de fazer e até me orgulho disso.

Mas há direitos que não podemos deixar de resgatar se os perdemos... e isso acontece com uma indescritível freqüência, um direito que nos foi dado, quando viemos ao mundo. Na maioria das vezes, o perdemos no bulício do cotidiano, da juventude, do trabalho, dos vieses da vida. Deixamos de lado a voz de nosso coração, somos racionais, práticos demais... ou somos excessivamente emocionais, apaixonados, impulsivos. Tudo certo. Tudo válido. Mas, muitas vezes, acabamos perdendo nosso rumo interior, na medida descompassada da mente e do coração.

Sempre tivemos os mais importantes dos direitos: os direitos que asseguram nosso livre arbítrio. Mas, quase sempre, nos esquecemos de que eles existem com a finalidade única e imprescindível de nos tornarmos aptos a lutar por nossa saudável felicidade.

O que me faz escrever isso hoje é uma soma incalculável de mostras de tanta infelicidade a minha volta, tanta dor, às vezes, tanto sofrimento interior. Também das minhas dores, não me excluo disso. Mas talvez esteja mais consciente agora do que antes.

E é por isso mesmo que faço um convite, por que não? Não há nada a perder, pelo contrário!

Se as coisas não andam como você deseja, que tal fazer uma passeata interior, entrar em greve de “vida” e gritar para você mesmo ou mesma:

QUERO MEUS DIREITOS DE VOLTA!

O melhor da história é que eles estão ao seu alcance, é só você se dar conta disso... e tomar as atitudes corretas. Quem sabe, sua vida dê uma reviravolta saudável a partir daí e, se você não está bem, é hora de começar a escrever o seu novo conto, seu verdadeiro conto de vida.

Muitas vezes, a mudança nem se dá no cotidiano exterior. O mais importante é o que vai na sua alma. Outras vezes, a mudança é mesmo total e muda tudo: o de fora para mudar o de dentro. Foi assim que aconteceu comigo. Mas não importa qual seja o seu caminho. Você veio com o direito de ser feliz. O problema é saber encontrar como... e... quem sabe, é bem mais fácil do que você imagina. Simplifique. A grande e maior sabedoria é tão simples que, muitas vezes, não conseguimos alcançá-la!... Não se iluda, ouça sua voz interior. Seja fiel a ela. É uma boa pista. Talvez a melhor.

Tente. Quem sabe a felicidade esteja a sua porta, na porta interior de sua alma. Ninguém usurpa os direitos de alma de ninguém. Se não os tem, ou melhor, se não os percebe vivos, faço este convite, de amiga, de mãe, de irmã, de alguém que te quer ver feliz porque também lutou por preservar a própria felicidade.

Lute por você: tenha seus direitos de volta!

Lutar por eles foi, um dia, o mais importante e verdadeiro conto da minha vida.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PEDIDO DE NATAL


Ah, Papai Noelzinho,
Você, que é tão bonzinho,
Aponta sempre o meu caminho
Para o lado mais certinho.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

QUEM DIRIA (Alemanha 2)


Berlim: linda, magnífica, a cidade que não dorme. Bulício, festa, cores, luzes, vida. Passear perdida pela cidade até que as pernas andassem separadas do corpo, pois o cérebro deixa de pensar que existem, adormecidas, mas felizes. Prefiro saltar a parte de visita a Berlim Oriental, que deixo para um conto à parte. Voltemos nossos olhares para a festa. Enquanto meu “ex” passava praticamente os dias a cata de seus trenzinhos, eu me embebedava pelo colorido multifacetado da cidade, em suas ruas, museus e atrações as mais diversas. E foi no início de uma das manhãs que me vi numa pequenina agência de correio para despachar um dos pacotes de compras de cidadezinhas, casinhas e outras coisas do hobby de trenzinhos dele. Fazíamos isso, pois seria impossível carregar tudo em malas, pois precisam ser bem empacotados para que não quebrem, etc. Melhor despachar. Como eu não tinha compromissos, senão o de perambular pelas ruas, não me custava encarregar-me dos despachos, enquanto ele corria afoito para novas compras. Ele não queria perder um minuto do exame acurado das revistas com os números dos trens, vagões, casinhas e tudo mais que fazia seu hobby valer a pena. Eu, por meu lado, não tinha pressa. A cidade estava ali, para ser sorvida como um manjar dos deuses. Passar pelo correio, poderia fazer parte da festa. Nunca se sabe o que pode acontecer a cada passo. E, neste dia, foi surpreendente! Estar sem pressa é tudo nesta vida. Vivemos cada segundo intensamente, se soubermos que são segundos vitais... e eu sabia.

No que se refere ao aspecto financeiro, a vida me dava a oportunidade de poder entender e fazer isso. Passei por muitas experiências, desde o aperto financeiro mais agudo, na juventude, à possibilidade de viajar por aí, depois de recebida a herança de meu pai. Depois, novamente, novos grandes, intensos apertos, com o divórcio e, mais tarde, novas oportunidades de ardorosa e saudável subida. Talvez essa experiência multifacetada me tivesse dado sempre esse perfil de aproveitar as oportunidades pelo que posso trazer dentro de mim e não pelo que posso carregar nas malas e nos bolsos. Nada contra quem pense ou faça diferente, é claro. Se todos fossem iguais, a vida não teria mesmo graça... para mim, no entanto, naquela época, o que contava era a sede de conhecimento, não obrigatoriamente só acadêmico, mas de vida. Felizmente, aproveitei a oportunidade de poder fazê-lo da forma que me deu maior prazer. E, essencialmente, um conhecimento interior que só pude constatar, de fato, muitos anos depois.

Mas, voltemos aos correios: Entrei na agência como quem sabe tudo. Já havia feito tantas remessas, que sabia preencher os formulários de cor e salteado. Havia apenas dois funcionários atendendo (a agência era bem pequena!) e nenhum cliente. Preenchi os formulários (alemães adoram formulários!), etiquetei tudo com a meticulosidade germânica já minha conhecida e me aproximei do balcão. O atendente era um senhor bem forte (por que não dizer gordo?), bochechudo, olhos azuis escondidos pelas rugas da face, ligeiramente corado, barba branca bem tratada, cabelos idem. Muito simpático.

Pegou o pacote e me perguntou algo em alemão. Não entendi bulhufas. Ele repetiu. Nada. Perguntei se falava inglês, francês, espanhol, português. Nada. Então, ele olhou para mim, abriu os braços como asas flutuantes e perguntou:

- “By fly?”

E depois, juntando as mãos, como imitando um barco flutuando através do mar, perguntou:

- “ Or by ship?”

Entendi a pergunta: era para ir de avião ou de navio? Claro, de navio, é bem mais barato. Leva uns dois meses, mas quem tem pressa? O importante, no entanto, não foi isso. O que me chamara a atenção fora o jeito engraçado com que ele gesticulara. Tão engraçado, que não resisti: propositadamente, copiei seu gesto, tentando caricaturizá-lo ao extremo: juntei as mãos e as fiz flutuarem no ar escandalosamente, exatamente como ele fizera e repeti:

- “By shshiiippp!”

O senhor não resistiu. Soltou uma gargalhada tão gostosa e contagiante, que pensei que o mundo estaria todo feliz naquele momento. Comecei a rir também, contagiada e, logo, despregadamente. O funcionário ao lado, que a tudo assistira, caiu num riso solto, idem. E os três não conseguiam parar. Rimos de torcer, como quem pede para parar pelo amor aos deuses. Mas não conseguíamos. Era terrivelmente contagiante, como se fosse a piada do século, como se as crianças que habitavam em nós surgissem à tona, ao mesmo tempo.

Nesse momento, entrou um cliente, um desses alemães bem carrancudos. Olhou para nós três com olhar de quem não estava entendendo nada e também de reprovação. Éramos loucos ou coisa assim? Acenou com a cabeça e... retirou-se da agência. Pronto! Foi o suficiente para rirmos em dobro pelo ridículo que deveríamos ter passado ao carrancudo senhor...

Rimos muito muito muito. Rimos como amigos de infância que se encontram para uma tarde de aventuras e piadas. Rimos como seres humanos que se encontram felizes, independentes de raça, religião, cultura, língua ou crenças. Rimos cúmplices. Jamais me esquecerei. E por mais que tente, não consigo reproduzir a profundidade desse momento em palavras. Se puder, busque você imaginar o puro encantamento: “ by shshiiippp!”

Ah, Alemanha, cujo colorido e aventuras povoam meu coração...

Saí da agência levando na mente aquele rosto corado e simpático, a barba branca, a pança avantajada, os olhinhos azuis... e... principalmente, aquela gargalhada franca e contagiantemente gostosa.

E... de repente... tive a indescritível sensação de ter descoberto onde Papai Noel se esconde durante o ano: Quem diria!... Funcionário dos correios! Nada mais apropriado...

sábado, 11 de dezembro de 2010

PRECONCEITO (Alemanha 1)


Visitei a Alemanha, pela primeira vez, na década de oitenta, com um puríssimo preconceito pendurado a tiracolo, de quem ouviu a vida inteira que o povo alemão é rude, não sabe rir, não é gentil. Fui assim, esperando caras fechadas por todos os lados e preparada para enfrentar 20 dias de completa antipatia.

Entramos por Hamburgo, meu ex-marido e eu, vindos de Amsterdã, aquela cidade maravilhosa, super acolhedora, que já mereceu um conto à parte! Desci do hotel direto para um pequeno mercado para comprar frutas. Felizmente, ali, quase todos falam inglês. Foi aí que tive o primeiro e definitivo contato, com esse povo que saía, enfim, das telas de meus filmes de guerra da adolescência para a realidade. O mercado era bem pequeno, digamos, uma pequena venda, com apenas dois funcionários. Na verdade, pareciam ser o casal de donos. Estávamos no caixa, meu “ex” puxando o dinheiro para pagar as contas enquanto eu empacotava as frutas. O alemão do caixa era um senhor corado, gordo e de cara fechada. Pura rabugice, pensei eu. Mas... já que estava na chuva, continuei contrita minha tarefa de empacotamento, ansiosa por ir embora e me largar, ainda que tímida e titubeante, pelas ruas da cidade.

Foi, então, que aconteceu: antes de dar o troco a meu “ex”, o tal senhor olhou-me (sem sorrir) e me estendeu a mão com algo dentro. Instintivamente, estendi a minha, sem saber para quê. Ele, gentilmente, colocou uma pequenina moeda em minha mão e fechou-a delicadamente sem pronunciar palavra. Não sei se sorriu, mas pareceu sorrir. Olhei para ele e para moeda e traduzi, imediatamente, aquele pequeno brinde ao meu coração: bem-vinda a minha casa. Meus olhos se encheram de lágrimas, como boa latina que sou. Agradeci, comovida, entendida a gentileza de tão suave e sutil acolhida. Na rua, já estava com o rosto banhado em lágrimas, meu “ex” sem ter entendido nada, me perguntando o que significava aquilo tudo. Expliquei-lhe finalmente que tinha vindo àquele país com a maior má vontade (ele não sabia), apenas pelo amor de acompanhá-lo em seu capricho consumista (ele era ou é, colecionador de miniaturas de trens, hobby caro de pecinhas minúsculas, cujas fábricas são alemãs). De repente, tudo que eu pensara e construíra em minha mente a respeito do povo, tinha sido divina e poderosamente destruído pela singeleza do toque de alma daquele senhor gordo, corado e... tão gentil!!! Chorava de emoção, de culpa, de gratidão. Por muitos e muitos anos esta moeda me acompanhou, tomando o lugar de honra em meu porta-níqueis, até que, um dia, a perdi. Mas guardo aquele gesto até hoje, num cantinho especial de meu coração.

Daí por diante a Alemanha abriu meu coração para sempre. Não havia um lugar em que eu parasse, abrisse o mapa para me posicionar na cidade e não visse, imediatamente, algum alemão se aproximar: “may I help you?” Que povo maravilhoso! Minhas caminhadas por todas as cidades eram simplesmente magníficas. Fazia-as com sabor de festa, enquanto meu então companheiro passava os dias enfiado nas lojas a busca de seus trenzinhos de brinquedo. Vinte dias de liberdade de caminhadas, colhendo aqui e ali o que a alma deste povo esconde em seu interior. O país é pródigo em belezas naturais e estruturais, em museus, passeios, atrativos os mais variados. É possível andar para cima e para baixo, para todos os lados, no meio daquela língua belíssima, mas incompreensível, sem se perder. Tudo corre a tempo e a hora, numa organização ideal para o turismo com todas as facilidades de deslocamentos.

Nada de excursões. Grupos em que somos contados como carneiros não estavam em meus planos. Assim, a organização e a facilidade de achar-me e deslocar-me independente da língua tornava-se essencial. E a Alemanha é pródiga nesse item. Os trens saem absolutamente no horário, com exceção dos de Frankfurt que saiam com exatos cinco minutos de atraso, mas chegavam ao seu destino no horário estabelecido pelos folhetos. É claro que me refiro à década de 80. Agora não sei como são. O fato é que me senti completamente em casa em todas as vezes que fui lá e não foram poucas... e é o país de onde tenho mais aventuras para contar.

Lembro-me de uma passagem muito interessante no metrô de Munique. Eu estava encarregada, em todas as cidades, de conseguir um mapa miniatura do metrô para compor uma das inúmeras coleções do “ex”, cujo hobby compunha uma lista invejável de itens, entre relógios, mapas, latinhas de coca-cola, canhões de brinquedo, ferramentas, destacando os tais trenzinhos com suas cidadezinhas montáveis, itens aos quais ele dava maior vazão nas viagens.

A mim, não custava nada bambolear pela cidade a busca de mapinhas de metrô pequenos e bonitos (pois nem sempre eram oferecidos no metrô) para enfeitar o corredor de nosso apartamento. Eu não fazia lá muita questão desse tipo de enfeite, embora ficasse gracioso, confesso. Do que eu gostava mesmo era ter de serpentear pela cidade com o pretexto de encontrá-los. Perdia-me sem mapas (muitas vezes, abandonava os mapas e adorava me perder pelas ruas), justamente para buscar um mapa, imagine! Para mim, soava interessante. Pois bem, em Munique, não achava um mapinha que prestasse. Resolvi, enfim, ir direto ao metrô. Falaria com algum encarregado, perguntando onde poderia encontrar a minha prenda. Acabei por achá-lo, dias depois, numa banca de jornal escondida, mas, antes disso, teria de passar por uma pequena, mas deliciosa aventura:

Desci do hotel, num horário compatível com o pedido. Metrô sem muito movimento, tudo bem arquitetado em minha mente, pois, a essa altura, eu já estava entendendo um pouco como se fala com o povo alemão e em que situações a aproximação é mais promissora. É exatamente como os chiliques que também temos em nossa cultura e não nos damos conta que existem: tudo tem seu tempo e hora...

Me dirigi à bilheteria e foi onde eu entrei em contato, pela primeira vez, com o espírito de humor germânico. Fiquei ensaiando como falaria em inglês, já que o francês, língua de minha preferência, não é tão usada assim nos outros países europeus. Busquei meu sorriso mais significativo de socorro e perguntei ao jovem que estava atendendo: do you speak English? Aceno negativo. French? Não. Spanish? Não. Portuguese? Não. Caramba... então, ele sorriu (eu aprendera a ler o sorriso alemão!) e apenas me perguntou: Deutsch? Aí, sim, sorrimos os dois. São assim as piadas alemãs.

Eu não falava o único idioma que seria necessário falar naquele momento... tanta erudição jogada fora... Fora? Não: dentro! Ele deixou outro funcionário no lugar dele, deu a volta, saiu da “gaiola” e se dirigiu a mim gesticulando de modo a me fazer entender que eu me expressasse como desse. Isso é a rudeza alemã? É assim que eles tratam mal a gente? Valha-me um cartucho de sal! Francamente, eu não encontro isso em muitos lugares da terra...

Apontei para um out door com o mapa do metrô na parede. Vale o aparte: lá há mapas enormes, onde você pode ver todo o trânsito das incontáveis linhas de metrô – em alguns deles, você clica o botão com o nome da estação de destino num pequeno mostruário abaixo desse mapão e nele acende-se o roteiro, partindo da estação em que você se encontra até chegar à estação de destino. Assim, você pode acompanhar o trajeto, inclusive as baldeações, se necessário, sem precisar falar uma palavra de alemão.

Bem, voltemos ao conto: apontei para um desses mapões e fiz um gesto com as mãos, mostrando que gostaria daquilo em tamanho pequenininho. O jovem entendeu prontamente e fez aquela expressão de “lamento, mas não temos”. Fiz um gesto como quem pergunta onde poderia achar. Ele fez cara de quem não sabia, mas algo em seu olhar iluminou-se. Imaginei que ele tinha resolvido o meu problema. Fez sinal para que eu esperasse e sumiu entre as pessoas, entrando por uma porta restrita aos funcionários. Passei uns vinte minutos à espera. Se não estivesse na Alemanha juraria que ele tinha me deixado na mão. Mas não. Ele voltou com algo e me entregou. Imagine você: ele estava me dando um mapa daqueles enormes, um out door que caberia na parede de uma sala! Não posso pensar em como ele conseguiu aquilo, só para agradar a uma turista que ele nem conhecia. Mas fez. Olhei para ele estarrecida, com um olhar de admiração incontestável. Ele apenas sorriu singelamente, o melhor que um alemão convicto sabe fazer, acenou gentilmente a cabeça, como quem diz que “não foi nada, foi um prazer” e retirou-se para seu guichê. Sorri para ele, ainda, de longe, deixando bem claro o meu reconhecimento e minha gratidão. Eu não tinha a mínima idéia de para que aquele mapa me serviria, em casa, mas isso era o de menos. O que valera, ali, fora a boa vontade, a elegância, a delicadeza.

Ah, a Alemanha... de povo sério, de alma gentil. E de um humor que poucos sabem entender. Acho que ela vale mais um conto, um conto de natal, na semana que vem...

sábado, 4 de dezembro de 2010

O PASSAPORTE


Você conhece algo mais fácil do que tirar passaporte com antecedência? Não tem. Com antecedência, claro.

Meu primeiro passaporte demorou muito. Marinheira de primeira viagem e um sistema operacional manual, nos idos tempos da década de 70, me exigiu o fôlego e a paciência de tirar aquele retrato em estúdio de fotógrafo, segurando uma plaquinha com data aparente, no peito, e pano de fundo branco. Quem é da minha geração se lembra: típica foto de bandido em delegacia. Dali, providenciar uma lista inumerável de documentos, guia de banco (essa técnica já existia) e uma fila do caramba, na Polícia Federal da Praça Mauá. E esperar, claro. Ah, quase ia me esquecendo: acordar cedo, como quem entra em qualquer fila pública da época. E levar um lenço, pois lambuzavam todos os dez dedos para tomarem as impressões digitais pelo método de mil novecentos e vovô criança: uma tinta preta horrorosa espalhada em cada dedo, pegajosa, para que as nossas pegadas saíssem impressas na ficha da polícia. Aquela tinta que, uma vez lambuzada, colocava você diretamente em cheque com o desafio de não manchar sua roupa. Pode imaginar, não? Hoje, apesar de algumas exceções, as coisas melhoraram bastante nos órgãos públicos para darmos entrada em documentos. Pelo menos, você pega uma senha e senta. E se livra, também, de alguns desses desconfortos. Naquela época, além dessas técnicas do século passado, você ficava numa fila de dar voltas em quarteirão e era, literalmente, na rua mesmo, fizesse sol ou chuva. É verdade que tinha uma taxa de urgência. Com ela, você conseguia fazer em uns 15 dias, mas, nesse caso, era melhor contratar um tal de despachante. E saía bem caro. Além disso, tinha de enfrentar a fila, na mesma, no dia da impressão das digitais, etc.

Fora dessas circunstâncias, tirar passaporte com mais facilidade, só se fosse o consular ou, então, os chamados especiais, de empresas, etc. Nós, simples mortais, tínhamos de tirar com antecedência mesmo e com todos esses embaraços.

Mas as coisas melhoram com o tempo e foi graças aos primeiros avanços tecnológicos que vivi minha pequena, mas inesquecível aventura com a Polícia Federal, na saída do país, em 1998, às vésperas de um dos congressos mais importantes da minha vida.

Tudo começou com o tal “avanço tecnológico”: era possível tirar passaporte pelo correio! Que maravilha! Depois de duas décadas pelo método confuso, digo, antigo, poder ir ao correio e entregar tudo ali, no balcão, era um pedaço de céu. Com antecedência, é claro, pois demorava um mês para chegar. Indo na Praça Mauá, já se conseguia em 10 dias. Mas com todos aqueles embaraços já descritos.

Eu sempre faço as coisas com antecedência e, se puder ser com conforto, melhor ainda! Então, juntada a tal foto de presidiária com data e pano de fundo branco, a taxa do banco, o passaporte antigo e os documentos de praxe, me mandei para o correio, na esquina de casa, e dei entrada nos papéis. Protocolo em mãos e... esperar. Mas, é claro, não sou tão confiante assim. Eu já tinha minha nacionalidade portuguesa assegurada e, idem, passaporte europeu. Qualquer vacilo burocrático, estaria segura, não perderia a viagem. Já viu alguma taurina agir sem mil metros de segurança a sua volta?

Vinte e cinco dias depois (vinte e cinco dias e não trinta!!!), recebi a notificação de entrega e me mandei para o correio. Ele estava lá, lindinho, fofinho, me esperando. Assinei todos os recibos de entrega (um monte!) e trouxe minha jóia para casa. Abri para conferir com mais calma. Tudo certo, com exceção da... data de nascimento! O dia e o mês estavam certos, mas o ano, veja só, era 1995. Oficialmente, portanto, eu tinha apenas 3 anos de idade! Achei um absurdo sem nexo. Como teriam errado desse jeito? Como teriam achado um ano assim? Eu nasci em 1951. Não dava nem para imaginar a troca de 1955 por 1995. Mesmo fazendo um trabalho sem atenção ou automatizado, como o funcionário conseguira essa proeza? E não daria tempo para modificar, mesmo que eu fosse diretamente à Praça Mauá. Faltavam apenas dez dias para a viagem e eu tinha mil coisas a fazer. Estava em meados de junho, o congresso começaria no dia 25, no Porto, Portugal e eu tinha provas dos alunos para corrigir, notas para entregar, arrumar a mala, enfim, todas as atolações de viagem em final de semestre letivo. Sem contar com os últimos preparativos de minha apresentação no congresso, já que eu era uma das palestrantes! Nem pensar em tentar a trabalheira de consertar o passaporte. Mas eu queria sair com passaporte brasileiro, pois, quem viaja sabe como é bom sair com o brasileiro, entrar lá com o europeu e fazer o caminho de volta ao inverso. Significa, literalmente, livrar-se de quatro (quatro) grandes filas de engarrafamento nos setores de migração: quem é “de casa” passa mais depressa, quando não passa direto. O que fazer, então? Ora... tentar sair com aquele mesmo e “ver se cola”. Típico jeitinho brasileiro, que todos conhecemos. Afinal, o erro não tinha sido meu!

Resolvi, por via das dúvidas, levar minha certidão de casamento, anexada ao passaporte, minha identidade básica, mais genuína que minha carteira de identidade. Ao tirá-la da pasta de documentos para anexá-la ao passaporte, tive a curiosidade de relê-la. No final, a averbação de meu divórcio: 18 de dezembro de 1995. Ah... estava lá! O funcionário deveria estar bem distraído, quem sabe, conversando com a namorada ao telefone, quando fez uma miscelânea nos meus dados, misturando o ano do meu divórcio com a data de nascimento! Tinha sido isso. Explicada a confusão. Ok, vamos transformar isso num argumento, levar o documento original e ver no que dá.

E foi o que fiz: o funcionário, quer dizer, o agente federal abriu o passaporte em frente a uma viajante com cara de inocente, super calma e feliz. Mas não adiantou, ele viu a data e não deixou passar barato:

- Seu documento está errado. Aqui consta nascimento em 1995.

Tentei brincar:

- Está correto, é a data do meu divórcio. Nasci, de novo, nesse ano.

Ele não deu chance, embora esboçasse um leve sorriso:

- Mas está oficialmente errado, não posso deixar passar.

Continuei tentando brincar:

- Tem razão, faltam a fralda e a mamadeira. Só que não posso deixar de viajar de jeito nenhum. Tenho uma palestra em um congresso no dia 25, depois de amanhã. Nem pensar em não viajar hoje. Chegarei a Lisboa amanhã, dia 24, sigo direto para o Porto, durmo e apresento meu trabalho no dia seguinte! Tenho de viajar nem que seja no bagageiro (tentava mostrar bom humor para ver se ele não emplumava)

- Não posso deixá-la viajar com a documentação errada!

- Mas o erro não foi meu! Você está vendo! Estou levando minha certidão de casamento junto para mostrar, se for o caso. Não posso deixar de ir. Recebi assim do correio, às vésperas da viagem, não deu tempo nem de verificar! Se preciso, chame seu supervisor, faça qualquer coisa, estamos a três horas do vôo e vocês podem consertar ou verificar o que quiserem. Mas eu tenho de ir!


Eu estava tentando garantir minha volta sem grandes embaraços ao solo pátrio, com o passaporte nacional. Mas já estava pronta para puxar o outro, se fosse necessário. O supervisor chegou trazendo o passaporte, entre sério e solícito, pois sabia a bomba que tinha nas mãos. Falou delicadamente:

- Por mim, uma vez que o erro não lhe cabe, eu a deixaria passar, mas a senhora não conseguiria entrar em outro país com essa data errada!

Aliviada, então, mostrei o outro passaporte:

- Então, está tudo certo: o senhor me deixa sair com esse que eu entro com esse outro no outro país.

Com esse argumento, ele só pode ceder e me fez prometer que consertaria o passaporte tão logo voltasse ao Brasil.

Felizmente, tinha os dois passaportes, senão, talvez não tivesse viajado, curtido um dos melhores congressos de que participei, além de poder ter vivido uma das grandes aventuras amorosas de minha vida: meu encontro com um africano gabonês de sonhos. Mas isso eu conto em outro conto.

Voltando ao Brasil, corretinha como sou, fui super fiel a minha promessa: me apresentei à Polícia Federal para o acerto. A primeira coisa que o funcionário fez foi perguntar como eu tinha conseguido viajar com aquele documento. Quando soube de meu outro passaporte, apenas disse:

- Então, pode deixar como está! A senhora usa esse assim mesmo até a data de validade. E utiliza o outro para entrar nos outros países.

Pode acreditar? Foi isso mesmo. Ele deveria ser irmão daquele outro que carimbou a data errada. Só podia ser. Tão competente e sério quanto aquele... marca de família.

Eu deveria ter feito um escândalo, mas, sinceramente, iria dar tanto trabalho e eu estava em um momento tão atribulado de minha vida que acabei deixando passar. Afinal, não planejava viajar tão cedo e, na verdade, tirei outro passaporte dois anos depois por conta de uma outra viagem. Aleguei ter perdido o anterior. Na verdade, o que eu queria era guardar como lembrança o erro inconseqüente - ou, quem sabe, inconsciente? - de alguém que colocou o ano de meu nascimento para uma “nova vida” em um de meus documentos oficiais... presentes da vida...

Agora, para tirar um passaporte, você faz tudo por internet e vai lá, em algum lugar perto de casa, apenas para assinar, tirar uma foto digital e colocar seus dez dedos numa máquina também digital, sem necessidade de sujá-los com aquela tinta preta horrorosa. E faz isso com hora marcada, sem precisar esperar, pois, desde sua inscrição pela internet, você pode escolher posto, dia e hora para entregar os documentos, tirar foto e imagens das impressões digitais. Muito chique. Depois de uns 10 dias, passa por lá e pega sua jóia. O único problema é que, na inscrição pela internet para preencher o formulário e marcar a data de entrega dos documentos no posto, dependendo da época do ano, você só consegue vaga daí a um mês.

Mesmo assim, tirar passaporte, hoje em dia, é realmente muito simples: tudo computadorizado, automaticamente conferido, pois você é um número bem delineado nas máquinas do sistema... e não passa pela possibilidade de viver a aventura de ter de brincar com um oficial da migração para conseguir sair de seu país.

Mas tudo isso, é claro, se tomar essas providências com antecedência, pois, se quiser deixar para a última hora, ah... vai ter de viver tudo que eu vivi (com exceção da foto de presidiário e a tinta preta nos dedos), só que no aeroporto internacional, setor da polícia federal – migração -, enfrentando uma fila de mais de duzentas pessoas, todas igualmente apressadas e atrasadas como você. Soube disso, por uma amiga, dessas que deixa as coisas para o último minuto. Mas se você quiser arriscar essa forma ancestral, conhecerá um pedacinho das tormentas que vivíamos no século passado. E, quem sabe, de brinde, viva suas próprias aventuras...