sábado, 18 de setembro de 2010

COMO O FUTEBOL ME SALVOU


A Grécia é, sem dúvida, a cada passo, um poço de surpresas, as mais diversas. Se você não foi, não deixe de ir. De preferência, conhecendo um pouco de sua cultura ancestral, suas lendas, referências sobre os lugares. Sentirá suas raízes, com certeza e, por que não, sentirá detalhes desse povo que jamais esquecerá. O povo grego é surpreendente. Em todos os sentidos. Um deles, o de saber ser bom anfitrião, como constatei em Creta, ilha do Palácio de Knossos que fiz questão absoluta de conhecer.

Tudo começou com o único voo diário para a ilha, às cinco da madrugada. Os planos eram de visitarmos as ruínas de manhã e o museu à tarde. Como só haveria um voo de volta à noite, poderíamos fazer tudo com muita calma, já que não teria mais nada a fazer por ali.

Os sítios arqueológicos só abrem às sete horas. Chegamos a Heraclion, centro da cidade, perto das seis horas e aí foi a nossa primeira surpresa. Ninguém por ali falava língua alguma que não fosse grego. Ninguém, portanto, para dar informações. Estávamos em 1977 e logo descobri que ninguém provavelmente se arriscava a ir a Knossos sem ser em excursão. Felizmente, no entanto, a cidade era mínima e, embora eu não falasse uma palavra de grego moderno, pelo menos, sabia ler placas, entender, e escrever nomes. Isso foi o suficiente para eu escrever o nome Knossos em alfabeto grego num papel, mostrar a um transeunte e ele me apontar um ponto de ônibus que descobrimos ser um ponto de ônibus só porque ele apontou. O ônibus, de fato, chegou logo e fomos sacolejantes, mas felizes, rumo às ruínas de meus sonhos. Era um dos pontos altos da ida a Grécia para mim, já que a civilização de Knossos é considerada como uma das mais importantes civilizações da antiguidade.

A chegada ao palácio deu-se logo. Não haviam chegado outros visitantes. Provavelmente, viriam em excursões, a partir das nove horas. Ótimo, teria o palácio só para mim. Meu ex, como bom engenheiro, sentou-se para abrir o mapa e entender a lógica das ruínas. Eu já estava dentro delas, dizendo a ele que sabia perfeitamente onde era cada lugar, cada cômodo, cada escada, cada detalhe. E, enquanto ele, titubeante, se aprontava para me seguir, eu já estava escadas acima e abaixo apontando em êxtase a sala do trono, o que restou da cozinha, os aposentos reais, contando as lendas, mostrando os labirintos que inspiraram a lenda do minotauro. Eu estava radiante como um pintinho no lixo, andando para lá e para cá com a intimidade de quem morara ali por muitas e muitas vidas, cidadã livre e feliz. Mostrei-lhe o teatro, os caminhos, o trono, os corredores, a sala dos escudos, os aposentos da rainha, os banheiros, os resquícios dos encanamentos de água, fazendo questão de lembrar a ele que ali havia banheiros, em pleno século XV antes de Cristo, enquanto que, em Versailles, século XVII depois de Cristo, os reis faziam suas necessidades em pinicos e nem pensavam em ter água corrente, apesar de todo luxo francês.

Inebriei-me fitando a sala do trono, singela e simbólica, com um mural de afrescos que lembram algo entre a matéria e o espírito. Contei-lhe a lenda do minotauro e logo depois a versão histórica. Descrevi, enfim, a ascensão e queda da dinastia da chamada paz minóica e dos dias gloriosos que a Grécia vivera por conta do domínio dessa paz por toda a extensão do Mediterrâneo.

Depois dessa manhã de luzes, é claro, urgia almoçar. Caminhadas em pleno sol, idas e vindas, exigiam a volta ao centro da cidade, um almoço, um bom descanso, para enfrentarmos um museu com novas surpresas. Meu ex não é lá chegado a museus, mas diante daquela civilização tão cheia de luzes, estava curioso por conhecer os artefatos e tudo mais que envolvia essa civilização de sonhos.

Hora do almoço, centro da cidade. O que escolher? Tudo parecia muito singelo e o lugar mais aprazível passava por pouco da estrutura de um bar, com cadeirinhas e mesas do lado de fora. Parecia limpo, resolvemos tentar. Foi aí que começou o problema para mim. O cardápio veio, mas... para minha surpresa: em grego de um lado e... em alemão de outro! Claro! Quem se despencaria para uma ilha dessas que não tinha nada na época, sem ser em excursão, com o intuito de visitar ruínas? Só mesmo uma professora de cultura clássica, logo se vê... e, pelas características do cardápio, arqueólogos alemães...

Meu ex, que não deixava passar nada, apenas comentou:

- Ué, você não é professora de greto? Me traduz, aqui, o que está escrito.

Saber ler eu sabia, pois basta conhecer as letras do alfabeto grego que qualquer analfabeto sai lendo grego sem pestanejar. Mas dizer o que significava eram outros quinhentos! O grego moderno é mesmo uma língua tão diferente do grego clássico como o latim é do português! Ademais, meu vocabulário de grego, mesmo o clássico, não se especializara em cardápios e comidas e, sim, em artes literárias e clássicas.

Meu ex, no entanto, não se apertou. Apontou um prato qualquer. Para quem come pedra sem passar mal, como era o caso dele, qualquer prato seria uma aventura. Eu, no entanto, de estômago tão delicado, estava mesmo em apuros.

O garçon, solícito, tentava ajudar sem sucesso. Pedi com gestos, que ele tentasse falar bem devagar. Quem sabe, atentando para a raiz das palavras, eu conseguisse adivinhar alguma coisa. Felizmente, achei que tinha entendido que ele estava perguntando de onde éramos.

- Brasil, arrisquei, achando que seria a resposta.

Era. Seu rosto iluminou-se:

- Pilí, Jirzin, Tuston.

Traduzi para meu ex, imediatamente:

- Pelé, Jairzinho, Tostão.

O homem, iluminado, me puxou da cadeira, me abraçou efusivamente. Pelo que entendi, eu acho que ele pensou que o Brasil deveria ser do tamanho da ilha de Creta e, provavelmente, eu deveria topar com Pelé, Jairzinho e Tostão a cada esquina, tomar cafezinho com eles ou coisa assim. O fato é que o futebol nos salvou, além, é claro de sermos brasileiros. Ele me levou pela mão para a cozinha, gesticulando e falando alto com todos, todo alegre e feliz. Sorrisos por todos os lados, meu ex-marido atrás de mim, sem entender muito o que estava acontecendo.

Oportunidade de vermos a cozinha por dentro, com tudo limpinho e organizado. Pelo menos, estávamos em boas mãos. As bandejas com os pratos de todo o cardápio, já cozidos e prontos, em prateleiras refrigeradas, a nossa disposição. Foi então que entendi: era para eu apontar o que queria comer!

Vi uma espécie de lasanha e apontei interrogativa. Ele logo respondeu:

- Moussaka.

Ok, prato típico, instruí meu ex, dizendo que era uma espécie de lasanha que levava carne moída.

- Se é prato típico quero provar, adiantou-se ele. Como se eu não soubesse a resposta de antemão...

Para mim, era mais complicado. Além da carne, eu não sabia o que teria e me parecia um pouco gordurosa. Vi, então, uma espécie de carne cozida. Mas... do que seria? Eu queria me arriscar a pedir, mas não tinha como perguntar de que tipo de animal se tratava. Foi então que tive a idéia de perguntar:

- Múúúúúúú´???

E o garçon acenando "não" com a cabeça, respondeu:

- Mééééééé!!!

Rimos muito! Mas estávamos nos entendendo. Pedimos, então, uma moussaka, um "méééé" e apontamos para as bebidas. Fomos servidos como reis, com todas as gentilezas e aparatos de parentes próximos de astros do futebol brasileiro.

Dali para o museu, tão espetacular que qualquer descrição deixaria a desejar. Até meu ex ficou deslumbrado com os apetrechos usados por uma civilização de XV séculos antes de Cristo, apontando alfinetes de fralda, utensílios domésticos que usamos hoje em dia, carimbos os mais diversos, jóias bordadas por ourives do mais alto gabarito.

Quase ao anoitecer, de volta ao mesmo restaurante, fomos imediatamente reconhecidos e o mesmo garçon veio lá de dentro perguntando sorridente:

- Moussaka kai mé?

Pedi duas moussakas, pois já tinha experimentado a do almoço e achei adequada. Nem precisei pedir ou apontar para os refrigerantes. Ele tinha guardado nossas preferências.

Ficamos por alí até próximo a hora do voo. Encostei-me, quieta, em uma das amuradas da praça, enquanto meu ex cochilava. Fiquei pensando como podem os povos unir-se em linguagens de amizade, amor e boa vontade. Perdi-me em pensamentos, olhos nas embarcações do Mediterrâneo, enquanto os últimos raios de sol iluminavam aquele mar translúcido e puro.

Pensei nas guerras de todos os tempos, pensei na paz. Pensei nos diversos períodos e civilizações que povoaram este país de tantas histórias e tantos ancestrais. Encostada ali, naquele entardecer, no último dia de uma visita de sonhos, buscava o resumo de anos de estudo nas emoções vividas em apenas dez dias, sobre esse povo cuja cultura enfeitiçou meu coração.

2 comentários:

Celina disse...

É uma delícia mesmo, quando a gente diz que é brasileiro e abrem um sorriso, invariavelmente por causa do futebol. Quanto à Grécia, vou estudar muito antes de ir, para aproveitar pelo menos um terço do que vc aproveitou. Fico imaginando sua emoção. Parecida com a minha com a idade média. mtos bjs!

Anônimo disse...

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