Está esquisito.
Meu cantinho de rua sempre foi
calmo, no carnaval. Mas... está tudo meio esquisito.
Tem bloco na rua? Tem.
Tem reportagem dizendo
que o carnaval está bombando? Tem.
Como observadora
incontestável de minha cidade amada, no entanto, posso dizer de cadeira: está
esquisito.
Menos bulício, menos
carioquices... menos tudo.
Tiro pelo cotidiano.
Ontem, sexta-feira,
fiquei na dúvida se iria ao centro da cidade, mais especificamente, no Saara.
Para quem não é carioca, o Saara é o lugar onde quase todo mundo acaba indo, de
um jeito ou de outro. Lá tem a maior variedade de artigos possíveis e... bem
mais barato. Você pode comprar de tudo um pouco ou de tudo um “muito”. Queria
ir pelos descartáveis para o consultório e por um tapete emborrachado para
fazer exercícios em casa. Quase não fui. Me lembrei que era sexta de carnaval
e, para piorar, hora do almoço. O Saara fica insuportável, pois os apetrechos
de carnaval são comprados assim, às pressas, pelos foliões de última hora e,
claro, o Saara é pródigo nesse quesito. Tem mesmo de tudo: desde máscaras, como
confetes, serpentinas, colares, fantasias dessas que você faz a folia e pode
jogar fora depois. Praticamente não se pode andar por lá, na semana que
antecede o carnaval. Na sexta, então, nem se fala.
Vou, não vou... vou!
Não tenho outro dia, quero o tapetinho para minha casa, aproveitando os
feriados para bombar nos exercícios. Ademais, os copos descartáveis para o
consultório acabaram. Vou ter a tarde livre para isso, só preciso estar no
consultório às 17 horas. Era meio-dia. Mesmo enfrentando mil filas, daria tempo.
Peguei o metrô. Teria
me benzido, se fosse religiosa. Que os deuses me ajudem. E me preparei para
enfrentar o trânsito dos pedestres, com mil bolsas transbordando pluminhas, purpurinas
e máscaras.
Desci na estação da
Uruguaiana, atravessei a Rua Senhor dos Passos e me enfurnei pela Rua da
Alfândega. Espaço para andar. Não havia os pregões de sempre, anunciando que “nesta loja é mais barato!”. Nada.
Silêncio. Entrei onde queria, comprei o necessário. Funcionários sobrando,
solícitos e sem pressa para atenderem. Rua vazia. Não havia fila no Caixa. Seria
mesmo sexta de carnaval? Era.
Aproveitei o tempo
ganho e, já que a rua estava vazia, fiz outras compras. Comprei o
tapete, os descartáveis, entrei no “Palácio das Ferramentas” e comprei uma
tesoura para jardinagem. É que estou cuidando dos jardins do prédio. Pura
terapia. Se você quer que alguém faça alguma coisa, peça para quem não tem
tempo. Deve ter sido por isso que me pediram para dar uma olhada nas plantas.
Estão ficando lindas... sempre há um tempinho para dar uma olhada nelas.
Fiz tudo em menos de
uma hora. Peguei o metrô. Não vi bolsas com colares, máscaras ou enfeites. O
trem estava cheio, nem tive onde me sentar. Pessoas enfiadas nos seus
pensamentos e nos seus celulares. Sexta de carnaval?
Pensei no que foi minha
semana. Nos elevadores, tira-se a temperatura do cotidiano. Carioca adora falar
nos elevadores. Não importa se são desconhecidos. Se eles têm ascensorista,
então... Mas não me lembro de ninguém falando do carnaval, como era o natural
de todos os anos:
- Já comprou a
fantasia?
- Vai sair em que
Escola este ano?
- Saiu no bloco do pré
(pré-carnavalesco), no domingo?
- Vai sair do Rio?
Nada disso. E olha que
fico num entra e sai o dia todo. Atendo aos clientes, saio para almoçar, volto,
saio para o banco, volto...
Nada.
O povo está triste. Não
digo o povo que a mídia apregoa, com seus microfones e entrevistas. Digo o povo
cotidiano, com quem me deparo todos os dias. O povo verdadeiro.
E têm menos turistas.
Ah... não me enganem: têm menos turistas! No calçadão, posso constatar. Meus
olhos acostumados sabem o que estou dizendo. E também pelo número de aptos de
temporada alugados no prédio do consultório. Nem a metade de sempre. No
supermercado, não ouvi aquela tagarelice multilíngue de todos os anos e nem as
filas estavam triplicadas. Ouvi algum inglês e um espanhol aqui e ali, mas foi
tudo. Estava acostumada a ouvir, também, os sotaques de vários cantos do país,
numa paleta de tons entre o gaúcho e o nordestino. Nada disso. Na volta
das compras, na sexta, me surpreendi com uma mesinha na esquina do Hotel entre
a Rua Siqueira Campos e a Tonelero: Vendia ingressos para o desfile das Escolas
de Samba. Parei para perguntar:
- Ainda têm ingressos?
- Para qual dia a senhora quer comprar? Domingo ou segunda?
Na sexta de carnaval? Pois
é... eu podia escolher. Incrível.
Aqui, esse meu cantinho
é silencioso. Mas confesso que está silencioso demais.
No fundo, no fundo, por
mais que se fale em crise, acho que é mais do que isso.
O povo está mais
triste, mesmo sabendo que costuma, sempre, afogar as mágoas e curtir o
carnaval. Afinal, aqui no Rio, qualquer calção ou biquíni, com umas purpurinas serve para sair sambando por aí. Põe um apetrecho qualquer na cabeça e
pronto. Tudo baratinho. Mas nem vi os camelôs de sempre nas calçadas da Nossa Senhora de
Copacabana, vendendo acessórios para enfeites de ultima hora. A gente nem podia
andar direito pela calçada! Sumiram. Vi só uns mirrados, aqui e ali. Este ano está
diferente.
Fantasio minha
imaginação, visto a máscara de investigadora, mas... acho que nem precisa. O
povo está pensando.
Tirada a catástrofe da
falta de emprego, da crise, das dívidas, da corrupção e da profunda desilusão
que afoga nossos corações brasileiros, mesmo assim, a tragédia não traz apenas
um preço. A meu ver, traz certas vantagens também.
Sou pura esperança.
Sempre tem uma luz no final do túnel. E eu acho que esta é uma luz diferente
das outras. Talvez seja a luz de uma conscientização mais plena.
Demora. Não se pode ter
pressa, não adianta. Somos um país muito jovem. Quinhentos anos é nada, perto
da milenar civilização que grassa o continente europeu, por exemplo.
Confesso que fico um
pouco atônita quando tentam nos comparar com o continente ancião:
- Na França não é assim, na Inglaterra isso não aconteceria, mirem-se no
espelho sueco da civilização, a Alemanha...
Não que eu não admire o
povo europeu. Sou metade europeia, com passaporte e tudo. Adoro a Europa. Ponho
os pés lá e me deslumbro a cada passo. Nem precisa enumerar um país ou outro...
não, a questão não é essa. É que são maduros. As pessoas se esquecem de que
também foram crianças e adolescentes!!! Quantos séculos tem a civilização europeia?
Por quantos revezes passou, quantas guerras, quanto sofrimento, quantas
perseguições durante séculos, quantas barbáries, roubos entre reis e impérios,
até chegar onde chegou? Isso ninguém leva em conta. Não são séculos... são
milênios!
Temos apenas quinhentos
anos. Acho que estamos entrando na adolescência agora, com ares ainda de
crianças que querem agir como adultos e batem o pé porque não estão gostando do
jeito com que foram criadas, aprisionadas em princípios que as levaram ao caos.
Não adianta me dizer
que nossos irmãos do hemisfério norte também tem quinhentos anos e são donos do
mundo. Para mim, não adianta. Primeiro, porque foram criados por “pais” diferentes.
Segundo, porque foram criados por pais ricos, desses que ensinam os filhos a
serem arrogantes...
Nós crescemos jogando
futebol de rua com bolas feitas de meia. Não tínhamos condições de comprar bolas
de verdade. Vejo nossos irmãos do norte como aquele menino, cujos pais compram
a bola e dizem que eles são os donos da rua. Desses meninos que saem de casa e
emprestam a bola para os colegas de rua, mas escolhem em que time querem jogar,
em que posição querem ficar e, mesmo que não seja a posição mais adequada, se
as outras crianças querem ter o privilégio de tocar em uma bola de verdade, têm
de se sujeitar. Caso contrário, eles levam a bola embora e ninguém joga...
Não vejo diferença
entre a infantilidade de nossos irmãos do norte, os mais poderosos do mundo, e
nós. Poder não significa discernimento, nem maturidade. Não significa bom
senso. Podem ter conquistado poder sobre os outros, mas e daí? Fazem guerras
fora de casa, impõem condições que apenas lhes dê vantagens, são poderosos,
porque seus pais lhes ensinaram a serem “donos da bola”. Isso não é maturidade.
E também ponho em dúvida que tipo de poder e sucesso econômico é esse. Tiro
pelo que está acontecendo: um chefe de Estado que tem discurso para os
trabalhadores, mas funciona como um capitalista. Isso é sucesso?
Prefiro jogar futebol
com minha bolinha de meia. Pelo menos, por enquanto. Prefiro não me vender a
esse “riquinho dono da bola” e muito menos admirá-lo.
Mas é carnaval. E
apenas reflito: o que está acontecendo com nosso povo de apenas quinhentos
anos, recém saindo da infância? Que adolescentes estamos nos criando? Que
indignações justas nos assolam?
É preciso sofrer para
amadurecer? Deixarmos de nos alimentar de pão e circo? Considero como hipótese
verdadeira: acho que sim.
Leva tempo, mas, pelo
que tenho visto nas ruas, no silêncio dos elevadores, nas faces cansadas, tenho
esperanças. Muitas.
Há carnaval? Há.
Há blocos nas ruas?
Sim.
Muitos? Talvez, mas...
me parece que as pessoas estão outras por dentro.
Por aqui, percebo o
silêncio como sinal de vida.
Uma vida nova nascendo,
uma criança adolescente que ainda apenas bate o pé, sem saber muito o que
fazer. Mas... bate o pé com novos argumentos. Alguns meio doidos, outros
transformadores.
Mas... está crescendo.
Talvez muitos não estejam vendo, mas eu acho que está. Se tivermos olhos mais
observadores e menos críticos, dá para se notar.
Que os deuses nos
protejam.
4 comentários:
Não wm cima da hora, mas, depois da hora, decido sair do Rio de Janeiro.
Para me distrair nas primeiras horas de viagem, deixo o livro sobre Antígona de lado e procuro algo diferente.
Eis que me deparo com essa boa surpresa: Eulalia voltou a escrever!
E o que trata é outra outra surpresa: a evolução do carioca.
Uma constatação privilegiada, de quem lida com diferentes pessoas e diferentes situações no dia a dia, terminando com uma excelente dica: Aa de observar as pessoas que estão a nossa volta. Belo conto!
Concordo com minha amiga. O Rio, O Brasil comemorou o carnaval de uma forma meio obliqua, apesar de a midia insistir que todos estavam hiper felizes.
Torço que Eulalia esteja certa. Que estejamos enfrentando uma dolorosa adolescencia...
Lindo texto... Como sempre!
Lindo texto...
Pra contemplar..
Carinho
Obrigada pelos comentários!
Sim, estou de volta e me alegro quando recebo a alegria de "ler" o carinho de vocês.
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