Eu não me lembro muito bem quando
e como o conheci. Sei que era um cachorro de rua e que adotou meus amigos Dani
e André como donos. Isso mesmo. Pelo que sei, foi ele que os adotou.
Conquistou-os aos poucos, cercando a casa... ops... um apto tranquilo e simpático em um andar térreo de um bairro afastado do centro.
Fui visitá-los algumas vezes, mas
não me lembro muito bem do Jota lá. Só sei que ele já existia como membro da
família pois, quando eles estavam procurando um apto por aqui, umas das
preocupações era, exatamente, onde o Jota ficaria, se seria um lugar
confortável, etc.
Muitas coisas aconteceram entre
mim e Jota. Mas o que me chamava muita atenção é que ele me entendia. Conto
como descobri.
Quando Dani e André se mudaram
para perto, a principal preocupação era privar Jota do estresse da mudança.
Ofereci-me super feliz para ficar com ele o dia todo, se quisessem. O problema
era ele não se estressar e o casal poder cuidar da bagunça que é sair de um
lugar e arrumar tudo em outro, num dia só. André trouxe Jota bem cedo, me deu
um monte de pacotes e tigelas com ração, água, biscoitos para cachorro, ossos e
brinquedos. Disse-me para não me preocupar com a angústia do bichinho, quando
ele saísse, pois era natural. Aliás, não tinha mesmo outro jeito.
André saiu e foi um sofrimento
só. Aliás, um sofrimento a dois. Jota não queria osso, não queria biscoitos,
não queria nada. Só queria arranhar a porta de serviço, desesperado, pois fora
por ali que André se fora. Para sempre?
Tentei me colocar no lugar dele. Para um cão de rua abandonado, dois abandonos, seria demais. Por mais
carinhosa que eu fosse, seus "pais" não estavam ali! Tentei de
tudo.Nada funcionou. Então, sentei-me no chão da área de serviço, bem perto
dele e fiquei bem quietinha. Deixei-o ganir bastante, pois não tinha mesmo o
que fazer. A caixa de biscoitos à mão e também a dos ossos não chamavam sua
atenção. Sequer sua bolinha favorita. Ficamos assim por uma meia hora, até que
ele se desse conta de minha presença e expectativa. Lembrei-me de Tim, o cachorro de minha família, em minha infância, que
tivera sempre tanta paciência comigo. Mentalmente, não sei por que, pedi sua
ajuda e fiquei ali, exercitando minha espera.
Valeu a pena. Aos poucos, Jota se
cansou. Aquietou-se e eu resolvi fazer o que ele mais gostava: pegar sua
coleira para darmos um passeio. E foi se distraindo com as novidades de uma
nova rua, pois não conhecia Copacabana, que Jota se animou um pouquinho.
Afinal, ele era cão de rua, não era?
Mas as horas passam muito lentas,
quando a gente deseja que alguém não sofra. E sei que Jota estava estressado
com a ausência do casal. Inventei um banho numa loja de animais. Jota ficou
lindo e cheiroso, pronto para entrar na casa nova. Mas acho que não ajudou
muito no seu estresse. Ver mais pessoas desconhecidas o assustou. Resolvi
voltar para casa e, finalmente, depois de minutos que passavam como horas,
chegamos ao final do dia. Jota andava pelo apto de lá para cá, completamente
angustiado.
Não queria comer, não queria
brincar. Só encontrei uma saída. Sentei-me a seu lado e falei de igual para
igual, alguma coisa parecida com isso:
- Jota, meu querido, eu sei. Você está triste.
Mas André já vem te buscar. Não podemos fazer nada. O jeito é esperar.
Não sei se foram as palavras,
mas... com certeza, foi a emoção, a entoação, o carinho, o amor. Ele olhou para
mim com aquele olhar que só os cães tem.
Deitou-se, choramingou um pouquinho. Eu me levantei, peguei um livro e vim me
sentar a seu lado. Ficamos assim, quietinhos, por mais ou menos meia hora,
comigo coçando ligeiramente suas costas. Eu tinha certeza de que ele tinha
entendido.
De repente, levantou-se de
ímpeto, se jogou contra a porta. Alguns minutos depois, ouvi a porta do
elevador se abrindo, a campainha tocou. Era André. Como bom cão, ele
pressentira a chegada do dono.
De qualquer forma, sei que alguma coisa em Jota o ligou a mim, naquela meia hora. Eu senti. Foi um tênue, mas significativo elo
de confiança. Dali por diante, quando eu ia visitá-los, era uma festa só.
Mas minha amizade com Jota só se
concretizou, verdadeiramente, pelo inominável privilégio de tomar conta dele,
quando o casal viajava. Minha função era visitá-lo todos os dias, encher o pote
de ração, trocar a água e fazer uma festinha. Mas a festinha acabava sempre
sendo uma volta pelo bairro, o que ambos fazíamos com muita alegria e aventura.
Lembro-me especialmente de um dia
em que Jota achou um osso de frango na rua. Foi uma briga de foice, pois eu
tinha ouvido falar que osso de galinha pode ser muito perigoso para cães, por
conta de suas pontiagudas farpas que podem ferir o aparelho digestivo.
Agarrei-me ao osso em sua boca e ficamos ambos, ali, imóveis. Ele não largava
sua presa e eu, tampouco... não largava o osso.
Felizmente, aqui no Rio, você
pode sair de roxo com bolinhas amarelas que ninguém olha para você. Assim, os
passantes não ligavam a mínima para essa contenda entre humano e cachorro. Na
verdade, bem que eu queria, pois ficamos empacados ali, sem ajuda e sem que eu
soubesse como me livrar da situação. Apenas uma coisa eu sabia: eu não ia
largar aquele osso nem por um decreto. Acho que Jota estava convencido do
mesmo princípio. Era ver quem se cansava primeiro e, enquanto isso, eu pensava
em uma saída. Finalmente, resolvi fazer cócegas nele e, por um instante, ele
reagiu. Tempo necessário para eu conquistar o osso.
Jota não avançou, não me mordeu.
Apenas ficou muito frustrado e voltou todo emburrado para casa, sem olhar para
mim.
Felizmente, cachorros são
acessíveis ou, pelo menos, Jota é. E quando chegamos à casa e eu comecei a
brincar com os ossinhos que ele podia comer, a birra acabou.
Mas estava faltando alguma coisa
para pactuar de verdade nossa amizade. Eu não sabia o quê. Percebia isso
porque, como todo cão de rua, Jota mostrava que não confiava plenamente em mim.
Nos donos, sim, mas esta fã de carteirinha não conseguia chegar ao mais íntimo
de seu coração.
Eu não sabia que não precisava
senão de tempo para que isso ocorresse. E foi em um dia, sem mais nem menos,
que aconteceu.
É que Jota, como todo bom cão de
rua, é previdente. Se você põe comida para ele e ele se sente inseguro, não tem
jeito, ele não come tudo. Deixa sempre um pouco para o dia seguinte. Era assim
que, prevendo isso, eu colocava mais ração do que o necessário, para que ele
comesse, pelo menos, o que lhe cabia por dia. E era tiro e queda: no dia
seguinte, quando eu chegava, quase metade da ração ainda estava lá e o pote da
água pela metade, por mais quente que estivesse o dia. Tão logo eu entrava, ele
vinha me receber, em festa, mas logo após corria para beber água. Sinal de que
estava com sede.
Acostumei-o a esperar-me sempre
mais ou menos à mesma hora. Mas não adiantava, era sempre a mesma coisa: ração
pela metade e água suficiente para pelo menos mais o dia seguinte, até que... um dia... ao entrar, ele não correu
para o pote, apenas me fez festa. Achei um pouco estranho e fui direto para o
lugar de sua alimentação. O pote da ração estava vazio, havia pouca água na
tigela da água.
Senti, naquele momento que Jota,
enfim, me incorporava à família. Lembro-me que meus olhos se encheram d´água
pelo alívio que senti. Talvez Jota também se sentisse aliviado com minha
presença, enfim!
Somos grandes amigos até hoje.
Ele, bem mais velho, um senhor idoso digamos, mas sempre amoroso e de bom
coração. Seu olhar é sempre o mesmo e sempre me recebe com muita alegria.
Jota não entrou em minha vida.
Desta vez, eu sei, fui eu quem entrou na vida de alguém...
Não sei de seu passado. Ninguém
sabe. E não tem como saber. Mas o cão de rua que ele foi, soube preservar algo,
dentro dele, que é digno, estável, solidário e gentil, o que fez de Jota um dos cinco amores caninos de minha vida!
Obs.: Se quiser conhecer as histórias dos outros quatro cães do meu coração, leia "Sheik", "Radar" e "Tim - dois cachorros inesquecíveis" .