sábado, 22 de fevereiro de 2014

TRÊS CIDADES


Outro dia, estive com uma portuguesinha que veio passar dez dias no Rio de Janeiro para conhecê-lo.

Contava-me que passou a primeira semana toda maravilhada com os encantos da Zona Sul.

Pintou-me um Rio de Janeiro de sonhos, um lugar destinado ao descanso da alma. Que privilégio viver aqui, com este mar magnífico e esta paisagem inebriante. Mas... justamente naquele dia, levara um choque. Fora visitar o Centro, em busca do Rio Antigo, o Teatro Municipal, o Paço Imperial, a Colombo, pontos turísticos tão marcantes da cidade.

Olhava-me embaraçada e meio perplexa: 

- É outra cidade, outro país que temos ali! 

Acresce que ela visitou o Centro, justamente (justamente!!!) no dia da mudança do trânsito por conta da interdição da perimetral para as obras do porto. Isso mesmo, no dia em que a Av. Rio Branco inaugurava sua mão dupla, com uma fila de mais de duzentos ônibus na Av. Presidente Vargas, esperando a vez de passar para a Zona Sul. Sem esquecer que os sinais de trânsito não estavam sincronizados, impedindo que os pedestres conseguissem atravessar com segurança (algum dia atravessaram com segurança?) as ruas completamente entregues ao caos. Caos? Não, não era o caos. Caos é o que sempre o Centro da cidade foi. Aquilo era a concretização de um novo vocábulo, ainda não encontrado em nossos dicionários. Urge um neologismo.

Mas é assim mesmo. Quando todas as obras acabarem e tivermos um porto transformado numa magnífica área de lazer, com um túnel funcionando às mil maravilhas, teremos ganhado um novo Centro, enfim digno de uma visita. Assim espero. Pensei nisso (com todas as forças de um coração que teima em ser carioca), quando a portuguesinha observou: 

- Mesmo naquela confusão, consegui ir onde queria ir. Quando cheguei ao Paço, no entanto, com aquelas construções belíssimas que fazem da Praça Quinze um dos lugares mais bonitos que vi do Rio Antigo, reconheci-me em minha terra, tão parecido é o estilo das construções. Mas... vi uma ponte suspensa, muito feia, contrastando com a paisagem local e me interroguei: como puseram esta ponte aqui, estragando completamente o quadro deste patrimônio da cidade? 

Mentalizei o mapa do Centro do Rio e me lembrei dos noticiários da manhã. Imaginei o que aquela turista, cheia do encantamento que vivera na última semana, poderia ter sentido durante aquele dia. Imaginei como conseguira abstrair-se, chegar aos pontos turísticos indicados e, ainda por cima, usufruir do que a viagem ao Centro poderia lhe oferecer de melhor. Sorri e lhe disse: 

- É justamente por causa daquela ponte que vai ser derrubada, que você viveu o pior dia de trânsito que a cidade do Rio de Janeiro sofreu em toda a sua história. 

E expliquei-lhe por alto sobre as obras que estão fazendo o inferno de nossa cidade. 

- Pensei não estar no Rio de Janeiro, mas em outra cidade completamente diferente.

- É... mas você esteve em outra cidade completamente diferente.

- Como assim?

- Se considerarmos apenas a cidade do Rio de Janeiro e não o Estado, você viverá três realidades completamente diversas, com características diversas, com culturas diversas.

- Como uma cidade pode ter culturas tão diversas?

- É o que acontece nas zonas Sul, Centro e Norte, nos hábitos, na maneira de vestir e, sob alguns aspectos, até na maneira de falar. Isto seria comum no que se refere a um país. É natural vermos a diferença entre o norte e o sul da França, da Itália ou da Alemanha. Aqui, tudo isso acontece no espaço apertado dessa "macrocidade".

- E o que há a Leste e a Oeste? 

Esta pergunta, assim, de sopetão, me deixou, por uns momentos, sem reação. Nossos noticiários se referem à Zona Oeste do Estado, nunca da cidade. E ninguém fala da Zona Leste! Mas eu não podia deixar, sem resposta, aquela portuguesinha tão interessada em nossa geografia. Coloquei o mapa de nossa cidade na mente e passei a descrevê-lo: 

- Esta descrição, confesso que um pouco esquisita, também faz parte de nossa história. Na época do Império, a palavra Centro se referia à área principal da cidade, onde tudo acontecia. Era a área nobre, justamente aquela que você visitou. Não se pensava em um Estado. Essa divisão ocorreu muito, muito mais tarde. Assim, a partir dali, foram considerando Zona Sul tudo que ficava ao Sul desse "Centro". E, como a Leste do Centro temos o mar e o que estava a Oeste geográfico ainda era considerado "parte do centro", ficamos sem Zona Oeste. O que não dá para entender, na verdade é porque chamamos a "Zona Norte" de Zona Norte, pois, na verdade, os bairros da chamada "Zona Norte" ficam a Oeste. 

A portuguesinha me olhou com cara de parede. Mas já que eu tinha chegado até ali, a saída era seguir em frente: 

- Na verdade, a cidade do Rio de Janeiro, fica, inteirinha, ao Leste do Estado. Esta divisão interna, me parece ser mais resultado dessa divisão histórica, nada tendo especificamente de geográfica, em termos de pontos cardeais. Assim, o que aconselho é que, estando no Rio, pense nos conceito e, jamais em geografia. Já teria muito a se perder se andar apenas com o mapa, nos intrincados meandros dessa cidade. Se ainda puser uma bússola, será o desastre total. Faz parte de entender as idiossincrasias de nossa cidade. 

Finalmente, ela sorriu. 

- Como faço então? Como conhecer a verdadeira cidade do Rio de Janeiro?

- Divida-a nas três zonas culturalmente conhecida por todos: Norte, Centro e Sul. E esqueça a bússola. O mais importante, é fazer como você faz. Mire seu destino na cidade e a usufrua. E acabará  conhecendo várias culturas em uma só. 

Voltei para casa, no entanto, pensativa. Pensei nesses dois pontos abandonados do vocabulário da cidade do Rio de Janeiro. Nunca é à toa que a língua reflete uma cultura. A palavra Oeste fora "expulsa" da cidade, para designar uma parte do Estado do Rio de Janeiro, justamente a mais abandonada quer em termos financeiros, quer em termos econômicos e sociais. E ninguém fala na Zona Leste, onde mora o mar silencioso e profundo, ainda tão violentado pela poluição de uma cidade que o olha sem cuidados...

E, enquanto vagava assim, entristecida, passei por uma rua completamente descaracterizada de uma marca de  região. Poderia fazer parte tanto do Centro, quanto das zonas "Norte ou Sul". E estava tão florida que não pude deixar de parar para apreciá-la e resgatá-la em uma foto.

Esquecida de seus problemas, essa cidade insiste em se exibir, enfeitando, travessa, mesmo os recantos escondidos de uma rua qualquer.

2 comentários:

João Carlos disse...

Interessante!
Eu não tinha pensado nisso!!
Essa marca cultural e não geográfica está tão entranhada em nossa mente (a do carioca desatento) que, só sob "pressão", é que a gente se dá conta. rsrs
Faz-me lembrar de uma outra coisa meio que correlata.
Outro dia, veio-me uma dúvida e lancei a pergunta aos amigos.
Quem nasce no nordeste é nordestino.
No sul, é sulista.
E no sudeste?
Soa mal, mmas... seria sudestino? rsrs
Ótimo conto.
Bjs

Celina disse...

Também espero (ardentemente) que o Porto seja mesmo uma maravilha, e que o transporte público me leve até lá em segurança.
O Rio é tão lindo, inclusive pelas suas diferentes formas de ser Rio. :)