1996. Passava por ali
todas as quartas, em torno das 9h30min. Rua São João Batista, esquina de Mena
Barreto, Botafogo. Morro Dona Marta ao fundo e muitos, muitos meninos
esperando o sinal fechar para limparem os vidros dos carros. Eu nunca quis e já
fazia o gesto com as mãos, tão logo eles ameaçassem a se aproximar. Isso porque
não pediam licença, iam invadindo o espaço, com esponjas ensaboadas e sujas,
que deixavam o para-brisas completamente embaçado e engordurado. Mas não era só
por isso. É que esta invasão, exigindo um trocado, sem pedir licença, era uma
agressão que eu não conseguia aguentar. Era um assalto disfarçado de serviço. E só me
deixavam em paz porque viam que não iriam levar troco algum.Um dia desses, já
pronta para meus gestos teatrais, vi um desses meninos se aproximar, sorridente
e tranquilo, com o pequeno balde na mão e, sem ameaçar limpeza alguma. Chegou
ao meu lado e peguntou:
- Posso lavar tia? Não é sabão não. É limpa-vidros mesmo!
Aquele profissionalzinho em miniatura
me encantou. E todas as quartas, todos eles já sabiam. Meu carro era dele. Logo
que eu ia chegando, ele já gritava:
- A
tia, a tia!
E vinha sorridente, feliz e orgulhoso da qualidade de seu
serviço, que, aliás, era perfeito, sem deixar partes de vidro sem retoques, com
ótimo acabamento. Merecia, sempre, por certo, um retorno financeiro à altura.
Ficávamos satisfeitos, eu pela qualidade do serviço, ele, pela qualidade da
recompensa e, ambos, pela camaradagem feita, uma amizade de esquina, nosso
encontro de quartas-feiras. Se eu faltasse uma semana, na seguinte ele logo me
perguntava:
- E aí tia, o que aconteceu?
E assim, fomos criando um laço de mútuo respeito e sentimento.
Quando sabia com antecedência, passei a avisá-lo:
- Semana que vem não poderei vir.
- Que pena, tia. Espero na outra!...
Foi bom avisar. Assim, também não fico preocupado se eu faltar.
Um
profissionalzinho mirim!
Um dia, com muito pesar, tive de revelar:
- Querido, não vou mais poder vir às
quartas. Estarei trabalhando em outro lugar neste horário. Mas sempre estarei
passando por aqui para ver você.
- Agora eu estou vindo só às quartas de manhã,
tia. Estou mudando de trabalho.
Nossos olhos se encontraram. Os meus,
emotiva que sou, rasos d'água. Os dele tristes, profundos, sentidos.
- Passarei por aqui, sempre que puder, não se esqueça.
- Não vou esquecer.
Alguns
meses se passaram. Um dia estava a pé pelas redondezas, não me lembro fazendo o
quê, já que não é percurso perto de minha casa. Era quarta-feira. Lembrei-me do menino. Estiquei
a caminhada em direção à mesma esquina. Um grupo de garotos lá estava, sinal
aberto, eles sentados em grupo, conversando alto, com gestos largos. Consegui
reconhecê-lo. Me aproximei. Ele me olhou com olhos distraídos e não fez caso,
continuou na animada conversação.
Meu primeiro impulso foi de temor. A gente não
se aproxima assim, de alma aberta, de um grupo de meninos, ao sopé do Morro Dona Marta. Quem mora no Rio, sabe que, naquela época era pedir por assalto.
Meu
coração, no entanto, não resistiu. Fui a seu encontro, ignorando o resto. Meu
olhar fixo nele. Tão fixo, que ele parou.
-
Só por que eu não estou de carro, não me reconhece mais?
Ele crescera um
pouco, estava com outro porte, mais confiante e portentoso. O que uns poucos meses
podem fazer com um garoto! Mas sorriu, e o sorriso ainda era o mesmo.
- Tia!!!
Destacou-se do grupo e veio falar
comigo, ainda sorridente. Parecia muito feliz.
- Hoje é quarta, eu disse. Não me esqueci. Estava passando por aqui e
não podia deixar de te visitar.
- Foi bom, porque não trabalho mais aqui. Só
venho às quartas por causa dos garotos. Nem todos moram lá em cima.
Referia-se
ao Dona Marta.
- Mudou de trabalho? O que
você faz agora?
-Ah, eu ganho muito dinheiro. Quer algum?
Aquela inocência me
comoveu. Vi-o tirar do bolso um maço
grosso de notas.
- Você quer quanto? Real
ou dólar? Tenho tudo aqui.
Não precisou um segundo para que eu me desse
conta do que estava acontecendo. Ele se tornara traficante. Um profissionalzinho
traficante...
- É muito melhor o serviço,
tia. Estou muito feliz, ganho muito dinheiro e estou rico!
- Você sabe mesmo o que
você está fazendo?
- Sei sim. É muito melhor do que estar aqui. E tenho até mais
tempo para ir à escola.
- Mas você está se metendo em algo muito perigoso e
proibido.
Ele percebeu, de imediato, que eu sabia onde ele tinha se metido.
- Tia, esse negócio de proibido todo mundo
faz. E não tem jeito. Eu não vou trabalhar feito cachorro magro o dia todo, com
esses donos de bar expulsando a gente e para ter apenas uns trocados no final do dia. Trabalhar,
trabalhar mesmo, eu não posso. Sou de menor. E... quer saber? É muito bom poder
tirar esse dinheiro todo do bolso. Vou ser muito rico. Mais do que você. É
serviço fácil. Estou muito feliz. Eles me tratam bem, sabe, com respeito. Não é
como aqui, com esses "bacanas" xingando a gente (percebi que se
referia aos motoristas daquela esquina).
Fora você, né tia. Você foi diferente. Me diz, tia, quanto quer? Eu dou. É
presente!
Eu estava, naquele momento, vivenciando uma passagem da inocência para a marginalidade.
Não... marginal ele sempre fora, a sociedade o fizera assim... era a passagem
entre a inocência e o resultado do descaso. Do descaso de todos: do governo, da
sociedade, do inconsequente descaso de todos. Do meu descaso...
E, ali, vendo de
perto a ferida aberta de nossa sociedade, eu não sabia o que fazer. Eu não
sabia o que dizer! Meu primeiro impulso era poder salvar "aquele um"!
Aquele que "não passava sabão
não". Mas eu não sabia o que fazer. Não sabia o que dizer. Todas as
alternativas pensadas me levavam a nada!
- E aí, tia, quanto quer?
- Não quero
dinheiro, obrigada, se é presente, eu quero um beijo. Nunca ganhei um beijo de
você.
Aproximou-se envergonhado, não sei se por ele mesmo ou por causa dos
meninos que estavam por ali. E ganhei um beijo rápido, contraído, mas sincero,
daquele menino descalço... que não era mais um menino.
- Te vejo por aí
- Tá
tia, vai com Deus.
Até hoje, quando passo por aquela esquina me entristeço. Por ele e por
mim, pelo peso inerte que trago no peito, pelo descaso de todos... pelo meu
descaso...
8 comentários:
Um gesto de carinho tem muito poder. Carinho e atenção podem mudar uma realidade. Isso aconteceu, mesmo que por alguns minutos. Um conto emocionante que nos leva a entender melhor a trajetória da criminalidade.
E havia tanta esperança...
Pois é...
Esperança?
Havia?
Como assim, "havia"?
Não existe mais?
Infelizmente.
A esperança.
Continua.
Viva.
Aqui.
Aí.
.
Será? Tomara...
Às vezes, o que dá para a gente fazer é dar um beijo.
Beijocas
Seu descaso? Que nada! Quem escreve esse conto, faz caso do descaso do mundo, nunca do seu. você se importou! Se importa. Já o mundo... Lindo texto, Lali!
Pat, pois é...
Celina, fiquei emocionada. Mesmo. Mas... não tira o peso... é duro prá caramba...
Muito bom, e como precisamos disso, cara Eulalia.
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