sábado, 17 de novembro de 2012

SR TÁURRRIO




Nas minhas andanças acadêmicas, tive oportunidade de viajar para muitos lugares do Brasil, quer por conta de congressos, quer por consultorias ou para dar cursos.

Lembro-me com alegria dos cursos de férias que dei, em verões de Blumenau. Que cidade lindinha! E que professores-alunos aplicados!...

O calor era de rachar, mas como adoro calor, isso não fazia a menor diferença. Pelo contrário...

E tinha a torta do Cafehaus, do Hotel Gloria, que existe até hoje. Eu, que nem sou chegada aos prazeres do estômago, não perdia um dia sequer de cumprir meu ritual: sair do trabalho e ir correndo para lanchar uma daquelas deliciosas, macias e inesquecíveis tortas alemãs. Nem na Alemanha consegui comer tortas tão gostosas. Chegava ao ponto de comer um pedaço e levar outro para meu hotel para comer, em vez de jantar.

O curso era muito puxado para mim - 40 horas de aula em uma semana! – mas valia a pena, pelos profissionais que frequentavam o curso e pela oportunidade de estar numa cidade tão interessante.

Se era puxado para mim, era puxadíssimo para os alunos. Eu dava 4 horas seguidas de aula teórica de manhã, com 10 minutos apenas de intervalo (e lá, 10 minutos eram só 10 minutos mesmo!!!). Depois, deixava uma batelada de exercícios para a parte da tarde. Eles tinham uma hora de almoço, mas eu tinha duas horas e meia, pois os deixava fazendo os exercícios e só voltava às duas e trinta para orientá-los um pouco e depois entrávamos na correção. Então, de meio-dia às duas e vinte, que era a hora pontual em que o motorista me pegava no hotel, eu tinha tempo livre.

Eu poderia dormir, mas não queria perder a oportunidade de zanzar pela cidade, aproveitando cada minuto daquela semana. Era o que eu fazia, mas, como ia todos os anos, lá pela terceira vez, aconteceu essa aventura maravilhosa.

Ocorre que, na rua principal, havia uma imensa loja Hering (que lá era pronunciada bem como caracteriza a cultura alemã da cidade: Rêringui). Se você falasse Hering, como aqui, ninguém sabia o que era. Mas... é claro, estamos falando da década de 80.

Pois então... a Loja "Rêringui" tinha de tudo que você pode imaginar, inclusive uma sessão de cristais magníficos. Lindos! Eu não queria comprar nenhum, mas era lindo de se ver o trabalho artístico que eles ostentavam. Numa dessas, o atendente, um senhor alemão muito simpático, e único vendedor responsável pela sessão, se aproximou de mim e me perguntou se eu gostaria de saber como eram produzidos, como poderia visitar a fábrica e coisas assim.

Para quem estava em  horário de almoço, nada mais atrativo. Encetamos uma conversa tão gostosa que, durante toda aquela semana, eu saia do almoço correndo para conversar com ele. No segundo dia, perguntei o seu nome e ele, com aquele sotaque puxadíssimo, respondeu:

- Taurio (Táurrrrio)

Claro, a linguista sorriu e passamos a semana conversando sobre a cultura alemã no Brasil, hábitos e costumes... e foi quando descobri que lá se falava um alemão diferente do alemão da Alemanha, o Brasildeutsch.

Aprendi que o Brasildeutsch é o alemão familiar daquela região do Brasil, uma língua adaptada à nossa cultura e ao nosso país. Há palavras que não existem no alemão europeu, outras foram preferidas e importadas, muitos verbos que se conjugam tendo raiz uma palavra portuguesa. Por exemplo, “capinar” não era um verbo existente no alemão europeu. Então eles utilizavam a palavra “capim” e a conjugavam como um verbo do alemão. O infinitivo desse verbo, em Brasildeutsch, por exemplo, era “capinier”. As gírias eram importadas da Língua Portuguesa, bem como muitos substantivos, como a palavra “sogra”, por exemplo. Ganhei um disco (naquela época as músicas eram gravadas, ainda, em discos de vinil!) com uma música muito engraçada. Eu não entendia nada, mas o refrão repetia: “.... sogra safada...”

Bem, para uma pessoa curiosa por cultura e uma linguista ainda que em “horário de descanso”, os papos com o Sr. Táurrrio foram a minha sobremesa favorita por toda semana.

Mas um fato, entre todos, me chamou muito a atenção. O Sr. Taurrrio falava um português típico de um alemão aculturado, com conjugações verbais de quem falava pouco o português. Ele dizia “ele fiz” em vez de “ele fez” e o sotaque era de matar, embora muito bonitinho. Eu pensava como ele teria vivido, pois já era um senhor e... brasileiro. Será que não teria ido à escola, teria sido um camponês, antes de morar na cidade? O que teria acontecido a esse brasileiro?

Com muito jeitinho, perguntei se ele tinha mesmo nascido aqui ou vindo para o Brasil com alguma idade.

- Não, eu nasci aqui em Blumenau mesmo!

Nossa! Incrível. Como teria um sotaque tão acentuado e um português tão característico de estrangeiro? Mas contornei minhas próximas perguntas. A sociolinguista entrava em ação:

- E com quantos anos aprendeu português?

Ele sorriu um pouco amargo:

- Eu não aprendi alemão. Não sei falar alemão. O que eu sei falar é apenas esse português que você está ouvindo.

- Como assim?

Inspirei confiança, por certo. Ele abaixou a voz, e quase num sussurro contou o que, para mim, só sabia por alto, em passagens livrescas, quase como se fosse lenda:

- Eu nasci no tempo da segunda guerra. Era proibido falar alemão em público. Mas meu pai era pastor e, naquela época, quando alguém morria, se fazia uma espécie de procissão pelas ruas, com os familiares levando o corpo até o cemitério. O pastor ia à frente, fazendo orações. Numa dessas vezes, o falecido era um amigo de meu pai e ele é que estava encabeçando a procissão. Talvez emocionado, começou a rezar em alemão. Foi agredido pelos que passavam e nossa casa foi apedrejada. Tivemos todos os vidros quebrados e muitas coisas pessoais também foram destruídas. Éramos cinco irmãos e eu estava começando a aprender a falar. Até o final da guerra e até depois disso, por um bom tempo, quase não saímos mais de casa.

Com medo de que algum de nós, sem querer, como ele, voltasse a falar alemão nas ruas, meu pai proibiu toda a família de falar em alemão até dentro de casa. Como eu só saí de casa quando já tinha cinco anos, o único português que eu aprendi foi esse, falado dentro da minha casa. E foi com esse que eu fiquei até hoje. Quando a guerra acabou e começamos a voltar para a escola, no início, não se ensinava nada de alemão. E os descendentes ficaram por muitos anos receosos de falarem alemão, em público, uns com os outros. Eu só fui para a escola com uns oito anos e sempre tive toda a dificuldade do mundo em aprender português. Para mim, matemática era muito mais fácil e sempre passei em português com nota mínima. E como eu não era o único a ter passado por isso, meus amigos também falavam como eu. E não convivíamos com as crianças brasileiras não descendentes, até porque aqui não havia muitas. E as que havia, não brincavam conosco.

E terminou:

- Se você procurar por aqui, nessas lojas ao lado, encontrará muitos brasileiros que falam como eu e não sabem falar alemão...

Você, que já me conhece um pouco, pode imaginar como eu estava emocionada. Aquela gentileza de pessoa, aquele brasileiro com características de alemão, alto, forte, faces rosadas e todo aquele sotaque, carregava a história de nossa história... um pedaço de cultura de nosso país. Um triste pedaço. Triste.

Mas estava ali, sorrindo para mim, dizendo que adorava o que fazia e que gostava de saber de meu interesse por vir dar cursos aos professores de lá, para melhorar a educação de sua cidade. Sua cidade. Sua.

É incrível o que se aprende, quando se anda por aí...

Sr. Taurrrio... um pedaço de lição de vida. Para aprendermos mesmo. E não fazermos de novo.

3 comentários:

Anônimo disse...

Uma história muito interessante mesmo, minha amiga, principalmente do ponto de vista linguístico, com a interlíngua do sr. Táurio. Um caso que mostra muito bem os malefícios do preconceito linguístico que se exerce contra os "nós fala" e os "a gente vamos" que encontramos por aí. Como mostra o "alemão" desse seu conto, não há como não falar a língua da sua comunidade. E a diversificação de falares às vezes é muito difícil de se conseguir! bjs, décio

Eulalia disse...

É verdade, amigo. Como linguistas podemos curtir isso em dobro.

E espero que a marca da guerra tenha deixado, também, sua lição de vida a todos nós... nesse país enorme, onde, muitas vezes, uma região não sabe o que acontece em outra...

João Carlos disse...

É verdade, mesmo. Inacreditável a quantidade de coisas que aprendemos por aí, inclusive saber que há fatos que não ocorrem dentro da nossa região. Em termos linguísticos, esse é o mais impressionante que conheci até hoje. Aaaamei.
Bjs
João Carlos