Aconteceu de novo.
Eu não tenho jeito
mesmo...
É que sou péssima fisionomista.
Tem um parafuso solto ou importante faltando em minha cabeça (entre os vários
que faltam a todos nós).
Nesta semana, andando
apressada pela calçada, dei de encontro com o olhar de uma senhora. Me
cumprimentou tão sorridente que, para ser delicada, dei uma travada no passo e
sorri de volta. Ela me disse animada:
-
Nossa! A gente quase não se encontra!
-
É verdade. A vida nos leva...
-Trabalhando
muito, como sempre?
Até aí, tudo se
encaixava. Pensei rápido: seria uma cliente, uma vizinha? Pelos deuses, quem
seria? Nenhum elo me vinha à cabeça, embora eu more por aqui há mais de 40
anos! Mas é preciso me encontrar quase cotidianamente com alguém ou conviver
muito para que meu cérebro registre a fisionomia...
Lembro-me de minha vida acadêmica. Depois de
tantos episódios, resolvi que, nas primeiras aulas, eu sempre avisaria meus
alunos:
-
Gostaria de dizer a vocês um terrível defeito que eu tenho. Sou péssima
fisionomista. Sou capaz de falar com uma pessoa e, no mesmo dia, depois da
aula, passar por ela direto. Assim, por favor, não levem isso em consideração.
Vim com esse defeito no kit. Mas... se vocês começarem a conversa de algum
conteúdo já conversado, sou capaz de lembrar até de onde veio a conversa,
descrevendo detalhes, mesmo anos depois. Às vezes, até me lembro de uma
pergunta feita e em que lugar da sala o aluno ou aluna se sentava. A questão é
a fisionomia, não o nome; é a aparência, não o conteúdo.
Os alunos mais
chegados, depois comentavam:
-
É que parece que você é arrogante, quando passa direto. Se você não avisa, a
gente não sabe mesmo...
-
Pois é...
Lembro-me de uma
passagem especial: tive uma aluna na universidade particular, onde dei aulas
por 13 anos. Quando passei para a universidade pública, acabei por criar um
curso de pós-graduação lato sensu, primeiro passo para o mestrado que se
seguiu. A esse curso acorreram muitos alunos, tanto de Letras, como áreas
afins. Eram sempre turmas de, no máximo, vinte alunos. Mas eu não conseguia
reconhecê-los pelos corredores, embora fosse a coordenadora do curso e
convivesse com eles quase cotidianamente. Como sempre, eles eram avisados dessa
falha no meu kit mental e logo se acostumavam com isso. Eu também era professora
deles e tinha de fazer a chamada. Mas, como professora, sempre fui péssima em
duas coisas: fazer chamadas e corrigir provas. Quanto às provas, corrigia o
mais depressa possível, para me livrar do tormento. Mas a chamada... para mim
sempre foi tempo perdido. Assim, combinava com a turma:
-
Faço chamada uma vez por mês, valendo por todas as aulas. Por favor, sempre me
respondam a quantas faltaram e me digam se preferem que eu lance em algum dia
especial. E funcionava. Como há a questão de reprovação por falta, um dia, um
aluno me perguntou:
-
Nunca passou pela sua cabeça que podemos mentir?
-
O travesseiro é seu, meu amigo. Eu durmo muito bem com o meu todas as noites.
Se quiser mentir, problema seu. Minha preocupação é com o conteúdo da aula e...
se você faltar, com o tipo de prova que eu dou, acho que você vai me pedir para
te reprovar por falta, no final, para não sujar seu histórico escolar. Aí,
lamento, vai ter de ser reprovado por nota mesmo. A escolha é sua.
Conclusão: sei que a
coisa funcionava bem. Pelo menos para mim. E os alunos não reclamavam. Pelo
contrário, ganhávamos tempo para mais conteúdo.
Mas nessa pós-graduação
aconteceu algo bem interessante: no primeiro dia em que resolvi fazer a chamada
- claro, só um mês depois de iniciado o curso -, me deparei com um nome que me
despertou a memória: E... W... Levantei os olhos:
- Quem é?
A moça, ao fundo da
sala, levantou o braço e disse:
-Eu,
né, Eulalia, fui sua aluna na (nome da universidade particular) por três anos
seguidos.
De pronto, me lembrei
da história toda. Felizmente, não sou de enrubescer, mas meu coração se
manifestou. Como poderia não a ter reconhecido? Logo quem! Chegou a ser minha
orientanda de iniciação científica! Pedi desculpas. Não havia como me explicar.
Parecia puro desleixo mental.
Cheguei em casa, fui
buscar meus achados. Encontrei o que queria. Dois dias depois, tive um novo
encontro com a turma. Dirigi-me à moça e lhe entreguei um papel (quando o aluno tem o hábito de se sentar sempre no mesmo lugar, fica mais fácil). Era um cartão.
Um cartãozinho lindo que ela havia me dado, anos atrás. É que ela tinha mesmo
sido um caso especial. Alcoólica, havíamos conversado longamente, em anos idos
sobre seus problemas, em cantos escondidos da outra universidade. Em uma
ocasião, cheguei a visitá-la em um hospital, onde fora internada por coma
alcoólico. Eu realmente não tinha como me desculpar por não conseguir
reconhecer alguém de cuja vida eu participara tão intensamente. Mas, naquele
momento, ao ver seus olhos rasos d'água, percebi que ela entendeu profundamente
que meu caso é mesmo esquecer da aparência. Eu não me esquecera da história e
muito menos dela. Ali estava um cartão guardado por anos, um cartãozinho
singelo, de agradecimento filial.
Não foi preciso dizer
mais nada. Ela entendeu a minha alegria de vê-la bem e recuperada, como me
prometera um dia, e todo o carinho que eu guardara em meu coração,
registrado no cartão guardado com cuidado.
Fez um ótimo curso e
seguiu sua vida. Por onde andará?
É possível ao cérebro
trazer, em segundos, toda uma história de vida. E foi isso que aconteceu,
quando, naquele momento, na rua perto de minha casa, eu me deparei com aquela
senhora. Quem seria? Poderia ser qualquer um... até uma E... W... da vida. Todo
cuidado é pouco. Mas fui logo salva pelo gongo:
-
Pois é, a vida nos leva! Como vai a sua mãe?
-
Mãe? Ela já morreu há mais de vinte anos...
-
Ué... você não é a Márcia?
-
Não. E você?
-
Nossa, confundi você com outra pessoa!
Para ser delicada,
respondi:
-
Eu também sou péssima fisionomista, também me confundi. Acontece sempre.
Nos cumprimentamos e
seguimos nossos caminhos.
Por via das dúvidas, nunca
sou eu quem toma a iniciativa de cumprimentar, por motivos óbvios: se dificilmente
reconheço as pessoas, nunca me arrisco, mesmo quando vejo um rosto que me
parece conhecido. No máximo, cumprimento delicadamente, pois carioca tem essa
de cumprimentar gratuitamente. Assim, não pago mico e me livro de possíveis
apertos...
Há uns anos atrás, foi
com um senhor:
-
Oi, como você vai?
-
Vou bem e o senhor?
-
Puxa, a gente mora tão perto e nunca se encontra.
Pelo tipo físico e por
dizer que morava tão perto, só poderia ser o pai da Virgínia, uma amiga antiga
de faculdade, sobre quem já escrevi um conto. Se você leu Cosme e Damião, sabe
a quem me refiro.
-
Pois é, a vida é mesmo louca. Como vai a R... (esposa)
-
Que R...?
Nos olhamos os dois:
-
O senhor não é o pai da Virgínia?
-
Não. Você não é filha da Angela?
-
Não.
-
Essa não! Aconteceu de novo!
-
Acontece comigo também.
-
Verdade? Eu me sinto tão mal com isso!
-
Fique tranquilo. Somos muitos, felizmente. Assim, não nos colocam num tubo de
ensaio.
Pois é... se você me
conhece e não sabia dessa particularidade, por favor, ao se encontrar comigo na
rua, não me julgue indelicada. Pode até já ter acontecido... e... me desculpe... é
mesmo defeito de fábrica.