Em plena obra, alma
precisando de descanso. Não um descanso, assim, como quem fala e não diz nada.
Não. Nada disso. Para uma obra que durou um ano (um ano!), quando se fala em
descanso, se fala desesperadamente em
descanso...
Com certeza, foi o que
sentiu João, amigo de alma, naquele dia, ao entrar em meu apto,
digo, no meu terreiro de obras.
- Vamos inventar uma coisa qualquer prá fazer.
Eu nem sabia com que
atinar. Sem grana, sem condições de pensar. Eu queria sumir, isso sim! Uma
metáfora suave seria pensar num gato dentro de uma caixa que ele ama muito,
mas... sem poder se mexer. E eu não tenho nenhuma vocação para me sentir presa.
Assim, quase ignorei o
comentário e, olhando em volta, falei sobre a obra e, entre outras coisas, disse
que a luminária da sala estava velhinha, mas vai ficar, pois gosto muito dela. Tinha sido comprada em
Mauá, presente de uma amiga. Uma cidade que eu nem conhecia.
-
Vamos lá achar uma nova. Saímos daqui na sexta de manhã. Tenho dias de
folga para descontar no trabalho. Tiro a sexta. Voltamos no domingo.
-
Eu não posso! Como posso?
-
Pode sim, são só dois dias, é barato, a gente anda por lá, dá uma esfriada na
cabeça, compra a luminária que deve ser
baratinha e você volta outra.
Do jeito carinhoso que
foi, fiquei meio sem saída. Na verdade, querendo mesmo ficar sem saída.
Fomos. Saímos daqui na
sexta, às nove, com reserva em um hotel singelo, cuja recepcionista me pareceu
muito simpática ao telefone.
-
A senhora vai gostar, aqui é tão tranquilo...
-
Quanto tempo mais ou menos levamos do Rio até aí?
-
Vindo com calma, umas três horas, quatro no máximo.
-
Ok, pretendemos sair daqui em torno das nove.
Viajar com João é a
coisa mais gostosa do mundo. Já fizemos algumas viagens pela vizinhança -
Petrópolis, Teresópolis. Sempre a mesma coisa: não há pressa. Gostamos de
conversar, de fotografar, de parar para fazer o que der na telha. Já sabemos
para onde vamos, então, a graça começa no curtir cada passo até chegar lá.
Afinal, "lá" nem é propriamente a meta. A meta é o simples fato de "ir".
Quando chegar, chegou. O compromisso é a falta de compromisso, senão, não tem
gosto de festa.
Saímos daqui às nove,
como combinamos. Chegamos em Mauá às dezesseis. Trânsito? Não. Problemas na
estrada? Também não. Mas aquela flor, no meio do caminho, merecia ser admirada
e fotografada. Depois, já que paramos no meio da estrada por que não sentar por
ali, conversar, contar "causos", aproveitar a paisagem?
Seguir viagem, depois
disso, deixa de ser cansativo.
-
Um cafezinho, vai?
- Claro
que sim. Vamos parar na próxima. E a próxima pode ser até uma simples água de
coco, na beira do caminho, tanto faz. João é comedido como eu nessas coisas de
comer. Então, fica mais fácil.
Um caminhoneiro, muito
gentil, chegou a nos dar passagem quatro vezes!!! Sempre que parávamos, lá
vinha ele, devagar, passando por nós. Na quarta vez, já nos reconhecíamos.
Quando chegamos a Mauá,
a recepcionista disse que havia telefonado algumas vezes, pois já estava preocupada.
Nem notamos que ela ligou.
Acomodados, fomos dar
uma volta e engrenamos na cidade vizinha, Maringá, que é onde tem tudo de
comércio. Queríamos arranjar um lugar para jantar. Foi aí que começamos a notar
a diferença. O falar calmo, a gentileza de quem está ali para atender de
verdade:
-
Os bons restaurantes estão do outro lado da ponte.
Para resumir, os
habitantes do Estado do Rio de Janeiro, nem um pouco incomodados com a
concorrência, nos indicavam, eles mesmos (!), os restaurantes mineiros, que
ficavam na cidade vizinha, coincidentemente de mesmo nome: Maringá - só que de Minas.
Quando estávamos para
atravessar a ponte, João, que gostou dela, resolveu tirar uma foto. Mas as
pessoas estavam passando para lá e para cá e, com uma ponte estreitinha como
aquela, estava difícil ficar vazia. Mas ficamos ali, de papo, esperando uma
deixa. Num determinado momento, ela ficou vazia de todo. Quando João ia
aproveitar a chance, um casal se dirigiu para atravessar. Não resisti:
-
Vocês se incomodariam de esperar só um tiquinho para que ele possa fotografar a
ponte vazia?
O sorriso do rapaz
disse tudo, mas acrescentou:
-
Claro! Quem tem pressa nessa cidade?
A partir daquele
instante, nós dois, que já somos chegados a curtir cada item da viagem, fizemos
dessa frase o bordão do final de semana. Aliás, o "claro, quem tem pressa?" até hoje nos acompanha, mesmo quando
só vamos até a esquina comer uma pizza...
Para
completar, depois de um jantar magnífico de comida mineira (e olha que eu não
ligo nem um tico para esse negócio de comida... assim, um elogio vindo daqui
tem valor duplo!...) fomos dar uma volta e encontramos esta belezinha de cartaz:
Com certeza, Mauá foi o
melhor lugar terapêutico que o João poderia ter-me levado naquele final de
semana.
No dia seguinte, depois
de dormir tudo que eu queria, encontrei João no restaurante, calmamente
entretido com um jornal. Eu não o vi se levantar e muito menos fazer aquela
cara de quem perdeu tempo me esperando.
Tranquilo (como se eu
já não soubesse que seria assim), ele me propôs fazermos apenas um dos inúmeros
passeios que Mauá oferece.
Assim, em vez de vermos
milhares de coisas de uma tacada só, como um turista que tem de ver tudo, mesmo
que não aproveite nada, visitando todas as cachoeiras super badaladas da
cidade, elegemos apenas um passeio - As Cachoeiras do Alcantilado - e lá ficamos
o dia todo. É uma caminhada em subida de mil e quinhentos metros de altitude,
que nos brinda com nove recantos que escondem cachoeiras e poços com direito a
banhos naturais. Um passeio de meia hora para quem vai direto ao topo, mas que
nos tomou mais de quatro horas, fora a ida e a volta de carro, com paradas para
comentarmos livros que estávamos lendo, contemplarmos sutilezas da natureza e
usufruirmos do mais perfeito e harmônico "saber
estar ali".
As outras miríades de possibilidades da cidade -
cachoeiras, caminhos, recantos - esperarão por outra oportunidade... a calma de
poder optar por apenas um passeio e aproveitar profundamente a energia de cada
um daqueles recantos, como se nada mais existisse, restaurou meu coração machucado
pelo cansaço e pelo desânimo. Respirar fundo, rir muito de tudo e de nada,
esquecer o relógio e voltar só quando os mosquitos começaram a perturbar... e
ainda reparar que se está achando graça de pensar que apenas isso incomoda, já é
a dica para deixar de incomodar. Os olhos da alma aproveitaram cada recanto,
dos muitos dessa natureza singela e pura:
Foi tão bom que quase nos esquecemos do motivo da viagem: comprar uma luminária nova.
Não a encontramos, não
fazem mais desse artesanato por lá. Mas, afinal... quem estava mesmo querendo
uma luminária nova? No fundo, acho que a minha ainda dura uns bons anos.
Uma alma nova, sim, essa eu encontrei.
No domingo, saímos
cedo, depois de uma visitinha proveitosa a uma feira orgânica e uma parada
obrigatória na cidade de Penedo para almoçarmos e curtirmos mais um papinho. Haja
assunto! Paradas na estrada, é claro, não poderiam faltar. Só chegamos ao Rio
no final da tarde.
- É tão pertinho... só
umas horinhas... "quem tem
pressa?" . Vamos indo, a gente chega ainda a tempo para descansar.
Ademais, não poderíamos
fazer vergonha ao nosso modo particular de viajar ou, mais do que isso,
resgatar o verdadeiro encanto de saber viver.