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domingo, 23 de maio de 2010

ÉSQUILO


Se você já leu o conto “Madre”, entenderá sua influência em minha formação em cultura clássica na universidade onde fiquei por muitos anos.

Entre os autores gregos, Ésquilo era seu favorito. Sabia suas peças de cor, com sua memória prodigiosa, mesmo aos oitenta anos. Memória? Na verdade eu não sei como denominar o seu cérebro nesse sentido. Ela não fazia a chamada na turma. Após a aula, abria o diário de classe e ia recitando os nomes: Ana veio, Ana Lucia não veio porque o marido está doente, Angela está com gripe, Angelina veio... 45 alunos em cada turma!

Assim, saber sobre Ésquilo e citá-lo era uma façanha das menores... e como gostava muito do autor, suas peças tinham privilégio na programação do curso, que tinha de ser seguida religiosamente por mim.

Ah, Ésquilo, de quem ela falava como se estivesse falando de um primo da família... e, claro, isso me influenciou bastante nas minhas aulas de juventude. Mas o fato esdrúxulo e fantástico aconteceu em uma manhã de quarta-feira, na aula de cultura clássica, e merece ser descrito, tanto pelo fantástico da situação, quanto pela reação da turma.

Amo os trágicos, sem exceção. Mas me parecia que Ésquilo tinha o dom da invocação aos deuses, por ser, talvez, o que mais fez reflexões filosóficas a respeito deles. E embora possa dizer o mesmo de meus igualmente amados Eurípides e Sófocles, jamais os invoquei com tanta convicção como o fazia com ele. Acredite você ou não, embora eu não tenha religião, tenho meus deuses e heróis protetores pedindo sempre que olhem por esta alma panteísta em suas excursões dentro ou fora do Olimpo. Que assim seja.

Libações feitas, vamos aos fatos:

Um dia, entrei em aula com a programação de uma tragédia clássica. Lembro-me até hoje do mapa dessa sala: retangular, no segundo andar, sala 201. A porta dando diretamente para um corredor comprido, aberta pela lateral, próxima à mesa do professor. Uma das poucas que ainda guardavam as características da academia clássica – tinha um estrado alto de madeira, com a mesa no centro dele e o quadro negro atrás. Portentoso. Agora, quase trinta anos depois, tudo deve ter mudado bastante. Mas quem teve aula comigo, naquela época, com certeza, se lembra disso.

Entrei, deixei as pastas e livros sobre a mesa, me virei para o quadro, escrevi o nome de Ésquilo e da tragédia que seria dada naquele dia. Aula típica dos anos 70. Mas eu sempre gostei de brincar com os alunos, em sala, pois, afinal, uma aula inteira sem uma piadinha ou outra é difícil de agüentar. Assim, antes de começar a falar sobre o autor, soltei a frase:

- Hoje vamos falar de uma das peças mais importantes da Literatura Grega. Que Ésquilo nos proteja.

Coincidentemente, talvez levada pelo vento, a porta entreabriu-se. Deixei-a como estava e não perdi a oportunidade:

- Que seja bem-vindo! E que eu faça jus a seu nome.

Desci do estrado, dando ao grande dramaturgo clássico o lugar de honra da sala. Para levar adiante o clima da peça, pedi permissão ao mestre e que ele me protegesse em minha aula e passei a falar sobre o autor e o texto em questão. Também para manter o clima alimentado pela presença dos deuses na peça, no final da aula, voltei-me novamente para a mesa em cima do estrado, eu abaixo dele e disse:

- Obrigada por sua presença, grande mestre. Espero te-lo apresentado à altura. Seja sempre bem-vindo!

O vento provavelmente resolveu colaborar mais uma vez e a porta que se mantivera entreaberta até então, fechou-se novamente.

Não é preciso dizer: cerca de cinco alunos trancaram a inscrição na disciplina.

Nunca mais invoquei deuses ou heróis clássicos em minhas aulas. Pelo menos, não em voz alta...

sábado, 10 de abril de 2010

MORAIS


Não fui aluna de latim do Morais. Infelizmente. Mas isso não quer dizer que não o considere um de meus maiores mestres. Fui sua aluna, de uma única aula, como você verá, a seguir.

Quando me formei e tive o privilégio de ser contratada pela própria universidade, ganhei de brinde o inestimável prazer de conviver com vários de meus mestres, na sala do cafezinho dos professores. Naquela época, existia.

No começo, sentia-me muito constrangida e pouco ia lá. Afinal, estaria tomando café com a maioria dos meus professores do ano anterior. Mas, aos poucos, fui me acostumando e lá aprendi muitas coisas do convívio acadêmico, chamado “informal”. Piadas como trocadilhos da língua portuguesa, entre conceituados gramáticos, alguns deles com renomadas gramáticas publicadas. Lembro-me do Morais conversando com um desses ilustres colegas que acabara de se mudar para a Barra da Tijuca. Na década de oitenta, isso significava muito luxo. E para um professor, então, só tendo mulher rica, no mínimo... mas isso não vem ao caso. O tal ilustre colega acabara de lhe dizer:

- Quando eu chegar à casa, avisarei.

Morais nunca perdia a oportunidade de um gracejo:

- Ah, claro, depois que você se mudou para a Barra só chega à casa. Eu, que moro em Botafogo, chego em casa mesmo.

É preciso dizer que Morais era queridíssimo dos alunos. Muitos madrugavam para se matricularem em seus cursos, quer por ser um mestre atencioso e sério em seus afazeres, quer por sua competência. A seriedade profissional, no entanto, não lhe tirava a graça, nem as piadas, sempre oportunas. Era competente e popular. Não fui sua aluna e lamento por isso, pois quando ele entrou para dar aula lá, eu já havia passado pelas disciplinas que ele ministrava.

Lembro-me de os alunos comentarem sobre suas aulas. Quando ele estava concentrado, com freqüência confundia o cigarro com o giz, tentando escrever com um e fumando o outro, pois sempre tinha os dois em suas mãos. Seria proposital, para manter a atenção? Como saber? E fazia da aula uma piada, o que ajudava a guardar o conteúdo. O que posso dizer é que não tinha nenhuma intimidade com ele e apenas o admirava à distância, restringindo-me a cumprimentá-lo gentilmente.

Não é apenas esse, no entanto, o Morais que trago no coração. Outro, muito mais grandioso se apresentou a mim, no momento mais adequado. O flash que tanto me marcou aconteceu numa manhã, depois de uma reunião do departamento.

Ocorre que a Chefe de Departamento tinha uma especial aversão por mim. E desde que subira ao posto, isso se tornava cada vez mais claro, não só a mim, mas a todos que me cercavam. Passou a ser uma coisa tão pública que não tinha como esconder. Aliás, ela não fazia nenhuma questão de esconder, verdade seja dita. Minha promoção que seria certa naquele ano deu adeus a meus sonhos. Meus artigos eram vetados, a revista que eu organizava com os trabalhos dos colegas simplesmente parou em sua mesa. Nada que eu fizesse ia para frente. Parecia que ela buscava pinçar ou adivinhar os meus passos para cortá-los antes que eu pudesse chegar lá. Só não conseguiu tirar minhas aulas de grego, mas até minha carga horária foi substancialmente diminuída.

Tudo corria às péssimas maravilhas e chegou ao ápice na tal reunião. A tal professora parecia meio neurótica. Marcava as reuniões sempre em uma sexta, às 7h30min da manhã e nunca terminava antes das 12horas. Quatro horas e meia de falação geral. Não havia tanto assunto assim, mas, uma vez por mês, ela nos reunia para seus infindáveis discursos sem muito objetivo e com implicâncias de todos os tipos. Uma chatice. Na verdade, era um suplício não só para mim, mas para todos os colegas. Naquela reunião, em especial, ela vetou três de meus projetos: o da revista, o de um congresso, o de uma pesquisa. Havia votação a favor, mas o argumento que ela apresentou, embora sabidamente não verdadeiro, era irrefutável: não havia verba para isso.

Então, eu estava lá, sentada, vencida, mas bem quieta, para não me arriscar a mais uma de suas pauladas. Num determinado momento, no entanto, senti necessidade de ir ao banheiro. Levantei-me, o mais discretamente que pude, e me dirigi para a porta. Como estava no fundo da sala, ir e voltar seria uma questão de momentos. Ademais, outros colegas já estavam fazendo isso, quer com o mesmo objetivo, quer para descansarem um pouco daquela lenga-lenga. Mas bastou que eu ameaçasse sair que fui logo abordada por ela:

- Eulalia, posso saber quem lhe deu licença para sair?

Pronto, ela achou, provavelmente, que era uma das freiras do meu antigo internato a quem uma aluna teria de pedir licença para fazer xixi. Meu sangue jovem subiu, mas cautelosa, desceu rápido também. Não iria entregar os pontos, depois de ter resistido quieta, até ali. Fosse outra pessoa, talvez eu brincasse, mas apenas respondi seriamente:

- Desculpe, mas, infelizmente, a sala não nos oferece toalete. Eu preciso me retirar para cumprir uma necessidade física.

Não soou como piada, pois não era essa intenção. O enfoque era mesmo de indignação. Virei as costas e saí, não antes de notar que muitos de meus colegas olharam diretamente para ela, igualmente indignados. A essa altura, a perseguição era tão aberta, que eu tinha conquistado, mesmo sem querer, a simpatia de todos, mesmo de meus antigos professores, que eram antigos colegas de trabalho dela. Alguns já até tinham falado comigo, pedindo paciência. E paciência era mesmo o que eu tinha, a duras penas, mas tinha. E a exercitava calando-me. Há tempo para tudo e eu estava consciente de que aquele... era tempo de silêncio. Dadas as circunstâncias, eu sabia que o contrário seria o mesmo que dar murro em ponta de faca.

Este dia, no entanto, foi a gota d’água. Decidi pedir demissão. Eu era jovem e não precisava me subjugar a tanta perseguição. Haveria outros empregos. Eu estava terminando o doutorado, não havia razões a temer. Aos meus trinta e poucos anos, o mundo se abria em oportunidades para mim. Deixaria para trás grandes amigos e uma universidade de que gostava muito. Tinha me formado ali, me sentia muito querida por alunos e colegas. Mas resolvi me demitir e deixar que a rainha seguisse com seus súditos em paz.

A universidade em que eu lecionava naquela época tinha uns janelões lindos que davam para um lugar privilegiado do Rio de Janeiro. Como aluna ou professora, quantas vezes eu me debrucei ali para olhar a paisagem, conversar com colegas ou simplesmente descansar meus olhos. Nessa ocasião, no entanto, o olhar era de despedida. Queria decorar a paisagem que jamais veria de novo. Sairia dali para escrever minha carta, entregá-la no mesmo dia e nunca mais voltar. Estava acabado, eu me rendia.

Absorta, assim, em meus pensamentos, não percebi a aproximação de ninguém até que uma mão suave pousou em meu ombro. Virei-me. Era o Morais. Havia estado na reunião, que assistira calado, sem intervenções. Sequer tinha dado por sua presença, já que éramos 40 professores. Mas ele estivera lá, agora eu percebia. O mestre me sorriu, como se fôssemos aluno e professor. Devolvi-lhe um sorriso triste, sem palavras. Nada diria a ele. De que adiantaria? Não tínhamos qualquer intimidade. Ademais, isto era um segredo interior, algo que só cabia a mim arquitetar, colocar em prática e me retirar. Sem mais conflitos. Mas ele estava ali e, na verdade, eu não sabia o que ele pretendia. Nunca viera falar diretamente comigo. Nossos encontros se davam, apenas, na sala dos professores. Mas ele estava ali, sorrindo docemente até que me perguntou:

- Você me permite que lhe diga uma coisa?

- Claro, respondi.

Olhou-me profundamente, seu sorriso era brando e doce:

- A inimigo, querida, não se pede nada. Nem demissão.

Alisou meu cabelo, virou-se e afastou-se devagar, sem olhar para trás. Ele percebera. De todos, ele percebera. E buscara a palavra certa para o meu coração.

Não pedi demissão. E tive, desse grande e silencioso amigo, uma das aulas mais importantes de minha vida. Uma única aula. Inesquecível.

Dois anos depois, mudamos de chefe de departamento e eu fiquei ali, ainda, por uns três ou quatro felizes e maravilhosos anos.

Doce amigo, obrigada. Sua frase foi repetida por mim, várias vezes, no decorrer de minha vida. Esteja certo de que você salvou não apenas a mim, mas a muitas outras pessoas, através de mim, boa aluna que fui, naquela manhã de sexta.

sábado, 27 de março de 2010

O CRESTA



Trabalhei por 12 anos como professora em uma universidade particular. Lá, fui professora de Grego e de Cultura Clássica (essa vale um conto à parte), de Língua Portuguesa e de Linguística. Não ao mesmo tempo, é claro, embora o grego estivesse presente como pano de fundo, pois foi o que me valeu o início do contrato. Isso se deu de 1974 a 1986.

Felizmente, peguei o período de auge do Curso de Letras dessa Instituição e saí por conta do concurso que tinha prestado em uma Universidade Pública, em 1986. Saí na hora certa, pois o curso vinha ladeira abaixo e para quem gosta do que faz isso é de uma tristeza sem tamanho. Sentíamos que não tínhamos como segurá-lo, pois todos os incentivos da direção da Universidade estavam sendo direcionados para outra área de ensino. Hoje, pelo andar da carruagem, nem sei se o curso ainda existe.

O importante é que, enquanto estive lá, a minha vida deu panos para mangas. São tantas as histórias que nem saberia por onde começar. Assim, escolhi pinçar uma delas, ocorrida com uma das mais queridas turmas que tive, uma de Português-Inglês.

Os professores, geralmente, não ficavam mais de dois períodos corridos com uma turma. Podíamos até encontrá-la, novamente, em outra disciplina ou mais adiante, mas era praxe mudarem os professores para que pudessem conhecer a diversidade. Parece que havia entre mim e esta turma, no entanto, um encantamento mútuo, uma atração irresistível e refratária a qualquer mudança. O fato é que fiquei os dois primeiros períodos por pura coincidência ou conveniência de distribuição de carga horária por parte da coordenação. No terceiro período, confesso que fui pedir só mais um periodozinho. Veio como prêmio. Na quarta vez, houve um abaixo assinado da turma pedindo a minha permanência e foi a única vez na vida que me enfiei de cabeça para estudar uma disciplina que eu nunca tinha dado, uma tal de Gramática Histórica, só pelo prazer de ficar com eles. Na quinta vez, a coordenação mesma já estava disposta a me manter na turma, mas... cdf como eu sou, fui eu mesma quem se sentou com os alunos para convencê-los (e a mim também...) que deveriam experimentar outros mares.

Você pode imaginar o que é uma empatia de quase dois anos. Quando eu entrava na sala, sentia a temperatura da turma no ar ao percorrer o curto caminho entre a porta e a mesa.

Naquele dia, a turma estava, digamos... esquisita. Me virei para o quadro negro, apaguei todos os escritos da aula anterior. Era o tempo de eu sentir a turma mais de perto, além de não gostar de escrever por cima de outras informações. Isso sempre me incomodou e sempre ensinei a meus alunos, futuros professores, a jamais saírem da sala sem apagarem o quadro negro, uma gentileza ao colega que viria a seguir. Deve estar na conta das delicadezas de minha educação rigorosa, mas o fato é que é mesmo uma beleza você entrar numa sala e o quadro estar limpinho, esperando por você. Quem é professor sabe disso. Pois então, estava eu apagando os escritos da aula anterior e sentia a turma, enquanto isso. Eles estavam com bicho carpinteiro nas cadeiras, inquietos mesmo. Não resisti. Me virei e perguntei de frente:

- Afinal, o que há com vocês?


Silêncio.

- Vocês estão preparando alguma?

- Não.


- É sobre algo que eu possa saber ou vai ficar por isso mesmo?

- Poder saber você pode, mas é um bocado delicado. E começaram a rir, como quem já havia rido muito antes e a lembrança abrisse, de novo, as comportas do coração.

- Mas afinal, o que houve?

- Tivemos um probleminha com o Professor LF.


Ora, o tal professor LF era um dos muitos professores portugueses que aportaram no Brasil por conta da independência das colônias portuguesas da África. Ocorre que os portugueses tiveram de abandonar tudo às pressas e voltarem para Portugal, expulsos que foram pela famosa independência das colônias africanas, lá pelos anos de 1975 ou 77 não me lembro bem. A coisa tinha ficado preta e me lembro muito disso, pois a revolução foi em torno do mês de abril e eu fui em julho visitar meu pai que morava em Braga. A confusão ainda era tamanha que, quando desci no aeroporto de Lisboa, centenas de portugueses exilados ainda estavam acampados nos saguões e dependências do aeroporto. Enfim, foi mesmo difícil acomodar tantos portugueses em um país tão pequeno. E, vocês sabem da generosidade do povo brasileiro. Acolhemos muitos deles com os braços e corações abertos, dividindo nosso espaço acadêmico com esses exilados de tudo e de todos.

Não fosse o ar um tanto arrogante que, em geral, esses colegas apresentavam, como se eles é que estivessem fazendo o favor de serem acolhidos em nossas universidades, teria sido perfeito. Apesar desse “senão” os acolhemos bem, com o natural carinho brasileiro, bastante tolerantes com esses colegas de além-mar desabituados a nossos costumes. Entre os hábitos mais difíceis de convívio, custava-lhes entender nossa maneira de ser na academia universitária, nosso contato estreito com os alunos, nossa forma descontraída, termos em comum os mesmos elevadores (lá havia elevadores só para os professores), idem os papos pelas escadas e, porque não dizer, vez por outra a mesma mesa de bar para um chopinho descontraído, sem que isso jamais desmerecesse a seriedade do trabalho acadêmico. Poucos foram os que se adaptaram e, justiça seja feita, quando conseguiam, tinham a nossa maior admiração. No fundo, agora, mais madura, fico imaginando como muitos desses colegas sofreram com a necessidade dessas adaptações. Não deve ter sido nada fácil enfrentar os costumes e o clima brasileiros.

LF era um desses mais rígidos colegas. Acresce que tinha um sotaque terrível e dava aula de História Externa da Língua Portuguesa. Para você entender melhor os fatos a seguir, preciso explicar um pouquinho o que isso significa: história externa refere-se aos acontecimentos históricos que acorreram na Península Ibérica, mais especificamente, em Portugal, e que poderiam ter influenciado as mudanças lingüísticas, a história da língua por influência externa. Cito, como por exemplo, oito séculos de invasão árabe e as influências que o convívio com esta língua pode ter trazido à nossa, quer sob o ponto de vista de palavras importadas, quer das estruturas de frases. Isso era a matéria de LF. Eu dava História Interna, ou seja, a descrição da gramática, propriamente dita. A tal matéria em que eu estava enfiando a cara só para ficar mais esse semestre com a turma, já que não era a minha especialidade.

Eu tinha três horas de aula por semana com eles e entrava logo depois das duas aulas do LF, às quartas-feiras de manhã se não me engano. Tudo sempre correra às maravilhas, mas naquele dia, com certeza, alguma coisa muito diferente tinha acontecido.

Puxei uma das cadeiras desocupadas dos alunos, me sentei junto à primeira fila e pedi que abrissem o jogo. Foi então que eles se dividiram por contar ou não contar, entre uma gostosa gargalhada e outra, quem sabe por puro descontrole ou, talvez, para aguçar a minha curiosidade e aumentar o suspense. Finalmente, me contaram o que se segue:

Eles estavam estudando a invasão da Península Ibérica pelos chamados bárbaros. E a forma que o LF dava aula era aquela bem típica do professor de antiga geração que fazia da aula um “ditado”. Na prova, caía exatamente o que ele tinha dito, não adiantava estudar nos livros. Os alunos, então, copiavam tudo, tim-tim por tim-tim, como taquígrafos, e depois ajudavam uns aos outros a completarem as informações. Gloria era uma excelente aluna, e conseguia juntar dois atributos valiosos: era aplicadíssima e, também, engraçadíssima. Sem contar com a forma esdrúxula com que se vestia. Quem a visse, juraria que ela estaria cursando Letras por farra. Parecia que estava indo a uma discoteca, ou melhor, chegando de uma, já que as aulas começavam às 7h30min. Ledo engano: quando sentava para escrever, era difícil tirar menos de 10. Incrível. Pois bem, foi Gloria quem conseguiu suster o riso para contar:

- É que esse professor tem um sotaque do cão e é muito difícil entender o que ele diz. Anotamos tudo, nos ajudamos uns aos outros, pois ele fica muito irritado, quando pedimos que ele repita. Mas hoje não dava mesmo para entender. Ele estava contando sobre a invasão dos bárbaros e nos disse:

- Então, vieram os godos, os visigodos... o cresta...

- “O cresta”,
acrescentou ela para mim, que diabo de povo seria esse? Além do que, parecia erro de concordância: os godos, os visigodos... o cresta? Não seriam os crestas? Como não entendi, me armei de coragem e perguntei:

- Professor, me desculpe: os godos, os visigodos... depois? E ele repetiu já um pouco intrigado:

- Os godos, os visigodos... o cresta...


- Aí, acrescentou Gloria, fiquei na mesma e pedi ajuda a Patricia (sentavam-se próximas). Ela não tinha entendido também. Armou-se de coragem e pediu que ele repetisse. E ele, que já estava irritado, levantou a voz e repetiu:

- Os godos, os visigodos... o cresta...

- Outro aluno, veio em nosso socorro, pois afinal, ninguém estava entendendo e, com certeza, era assunto de prova:

- O cresta, professor?


LF pos-se diante da turma, em fúria, segundo eles, e redargüiu a plenos pulmões:

- O cresta... o que sobra, o que fica!!!

Quem diria: “u kresta” = “o que resta”, referindo-se ao restante de outros invasores, dito assim, num genuíno e carregadíssimo sotaque português!!!

Você pode imaginar como a turma teve de se segurar para não cair numa tremenda e estrondosa gargalhada, diante daquela eminente figura de um metro e cinqüenta e cinco centímetros de altura. Pois foi o que fizeram até que o professor saísse de sala e, é claro, sobrou para mim.

A partir daí, não teve jeito: a turma sapecou-lhe, às escondidas, o apelido de “Crestinha”, pois aluno não deixa passar em branco nada, nadica. Aproveitaram o mote e juntaram a ele o metro e cinqüenta e cinco do “ilustre” professor e, em conseqüência, só poderia dar diminutivo, bem ao estilo carioca.

Muitas vezes, meus colegas me perguntaram se eu sabia por que os alunos o chamavam assim, meio às escondidas, pelos corredores. Claro, cúmplice de meus filhotes, eu armava uma cara bem inocente e dizia:

- Coisas de aluno. Quem sabe, um dia a gente descobre...

LF já faleceu faz tempo, como aliás, a maioria dos meus colegas de academia, já que eu era muito mais moça. Quase todos tinham sido meus professores.

Mas os que ainda existem, se lerem este conto, agora saberão.