sábado, 6 de setembro de 2014

DEFEITO NO KIT


Aconteceu de novo.

Eu não tenho jeito mesmo...

É que sou péssima fisionomista. Tem um parafuso solto ou importante faltando em minha cabeça (entre os vários que faltam a todos nós).

Nesta semana, andando apressada pela calçada, dei de encontro com o olhar de uma senhora. Me cumprimentou tão sorridente que, para ser delicada, dei uma travada no passo e sorri de volta. Ela me disse animada: 

- Nossa! A gente quase não se encontra!

- É verdade. A vida nos leva...

-Trabalhando muito, como sempre? 

Até aí, tudo se encaixava. Pensei rápido: seria uma cliente, uma vizinha? Pelos deuses, quem seria? Nenhum elo me vinha à cabeça, embora eu more por aqui há mais de 40 anos! Mas é preciso me encontrar quase cotidianamente com alguém ou conviver muito para que meu cérebro registre a fisionomia... 

Lembro-me de minha vida acadêmica. Depois de tantos episódios, resolvi que, nas primeiras aulas, eu sempre avisaria meus alunos: 

- Gostaria de dizer a vocês um terrível defeito que eu tenho. Sou péssima fisionomista. Sou capaz de falar com uma pessoa e, no mesmo dia, depois da aula, passar por ela direto. Assim, por favor, não levem isso em consideração. Vim com esse defeito no kit. Mas... se vocês começarem a conversa de algum conteúdo já conversado, sou capaz de lembrar até de onde veio a conversa, descrevendo detalhes, mesmo anos depois. Às vezes, até me lembro de uma pergunta feita e em que lugar da sala o aluno ou aluna se sentava. A questão é a fisionomia, não o nome; é a aparência, não o conteúdo. 

Os alunos mais chegados, depois comentavam: 

- É que parece que você é arrogante, quando passa direto. Se você não avisa, a gente não sabe mesmo...

- Pois é... 

Lembro-me de uma passagem especial: tive uma aluna na universidade particular, onde dei aulas por 13 anos. Quando passei para a universidade pública, acabei por criar um curso de pós-graduação lato sensu, primeiro passo para o mestrado que se seguiu. A esse curso acorreram muitos alunos, tanto de Letras, como áreas afins. Eram sempre turmas de, no máximo, vinte alunos. Mas eu não conseguia reconhecê-los pelos corredores, embora fosse a coordenadora do curso e convivesse com eles quase cotidianamente. Como sempre, eles eram avisados dessa falha no meu kit mental e logo se acostumavam com isso. Eu também era professora deles e tinha de fazer a chamada. Mas, como professora, sempre fui péssima em duas coisas: fazer chamadas e corrigir provas. Quanto às provas, corrigia o mais depressa possível, para me livrar do tormento. Mas a chamada... para mim sempre foi tempo perdido. Assim, combinava com a turma: 

- Faço chamada uma vez por mês, valendo por todas as aulas. Por favor, sempre me respondam a quantas faltaram e me digam se preferem que eu lance em algum dia especial. E funcionava. Como há a questão de reprovação por falta, um dia, um aluno me perguntou:

- Nunca passou pela sua cabeça que podemos mentir?

- O travesseiro é seu, meu amigo. Eu durmo muito bem com o meu todas as noites. Se quiser mentir, problema seu. Minha preocupação é com o conteúdo da aula e... se você faltar, com o tipo de prova que eu dou, acho que você vai me pedir para te reprovar por falta, no final, para não sujar seu histórico escolar. Aí, lamento, vai ter de ser reprovado por nota mesmo. A escolha é sua. 

Conclusão: sei que a coisa funcionava bem. Pelo menos para mim. E os alunos não reclamavam. Pelo contrário, ganhávamos tempo para mais conteúdo.

Mas nessa pós-graduação aconteceu algo bem interessante: no primeiro dia em que resolvi fazer a chamada - claro, só um mês depois de iniciado o curso -, me deparei com um nome que me despertou a memória: E... W... Levantei os olhos: 

- Quem é? 

A moça, ao fundo da sala, levantou o braço e disse: 

-Eu, né, Eulalia, fui sua aluna na (nome da universidade particular) por três anos seguidos. 

De pronto, me lembrei da história toda. Felizmente, não sou de enrubescer, mas meu coração se manifestou. Como poderia não a ter reconhecido? Logo quem! Chegou a ser minha orientanda de iniciação científica! Pedi desculpas. Não havia como me explicar. Parecia puro desleixo mental.

Cheguei em casa, fui buscar meus achados. Encontrei o que queria. Dois dias depois, tive um novo encontro com a turma. Dirigi-me à moça e lhe entreguei um papel (quando o aluno tem o hábito de se sentar sempre no mesmo lugar, fica mais fácil). Era um cartão. Um cartãozinho lindo que ela havia me dado, anos atrás. É que ela tinha mesmo sido um caso especial. Alcoólica, havíamos conversado longamente, em anos idos sobre seus problemas, em cantos escondidos da outra universidade. Em uma ocasião, cheguei a visitá-la em um hospital, onde fora internada por coma alcoólico. Eu realmente não tinha como me desculpar por não conseguir reconhecer alguém de cuja vida eu participara tão intensamente. Mas, naquele momento, ao ver seus olhos rasos d'água, percebi que ela entendeu profundamente que meu caso é mesmo esquecer da aparência. Eu não me esquecera da história e muito menos dela. Ali estava um cartão guardado por anos, um cartãozinho singelo, de agradecimento filial.

Não foi preciso dizer mais nada. Ela entendeu a minha alegria de vê-la bem e recuperada, como me prometera um dia, e todo o carinho que eu guardara em meu coração, registrado no cartão guardado com cuidado.

Fez um ótimo curso e seguiu sua vida. Por onde andará?

É possível ao cérebro trazer, em segundos, toda uma história de vida. E foi isso que aconteceu, quando, naquele momento, na rua perto de minha casa, eu me deparei com aquela senhora. Quem seria? Poderia ser qualquer um... até uma E... W... da vida. Todo cuidado é pouco. Mas fui logo salva pelo gongo: 

- Pois é, a vida nos leva! Como vai a sua mãe?

- Mãe? Ela já morreu há mais de vinte anos...

- Ué... você não é a Márcia?

- Não. E você?

- Nossa, confundi você com outra pessoa! 

Para ser delicada, respondi: 

- Eu também sou péssima fisionomista, também me confundi. Acontece sempre. 

Nos cumprimentamos e seguimos nossos caminhos.

Por via das dúvidas, nunca sou eu quem toma a iniciativa de cumprimentar, por motivos óbvios: se dificilmente reconheço as pessoas, nunca me arrisco, mesmo quando vejo um rosto que me parece conhecido. No máximo, cumprimento delicadamente, pois carioca tem essa de cumprimentar gratuitamente. Assim, não pago mico e me livro de possíveis apertos...

Há uns anos atrás, foi com um senhor: 

- Oi, como você vai?

- Vou bem e o senhor?

- Puxa, a gente mora tão perto e nunca se encontra. 

Pelo tipo físico e por dizer que morava tão perto, só poderia ser o pai da Virgínia, uma amiga antiga de faculdade, sobre quem já escrevi um conto. Se você leu Cosme e Damião, sabe a quem me refiro. 

- Pois é, a vida é mesmo louca. Como vai a R... (esposa)

- Que R...? 

Nos olhamos os dois: 

- O senhor não é o pai da Virgínia?

- Não. Você não é filha da Angela?

- Não.

- Essa não! Aconteceu de novo!

- Acontece comigo também.

- Verdade? Eu me sinto tão mal com isso!

- Fique tranquilo. Somos muitos, felizmente. Assim, não nos colocam num tubo de ensaio. 

Pois é... se você me conhece e não sabia dessa particularidade, por favor, ao se encontrar comigo na rua, não me julgue indelicada. Pode até já ter acontecido... e... me desculpe... é mesmo defeito de fábrica.

3 comentários:

Dani Dias disse...

Amei seu conto hoje! Sou uma excelente fisionomista não me esqueço de ninguém, isso às vezes me coloca em belas saias justas. O outro lado da moeda. rs Um dia te "conto". bjS!

Eulalia disse...

Adoro suas histórias. Estou ansiosa por saber!!!

Celina disse...

Querida, passo por isso frequentemente. Além de ter péssima memória para nomes, eu sempre fui muito desligada, vivia "pensando". Quando encontro alguém de 'öutrora' é batata!