sábado, 25 de fevereiro de 2017

REFLEXÕES DE CARNAVAL



Está esquisito.

Meu cantinho de rua sempre foi calmo, no carnaval. Mas... está tudo meio esquisito.

Tem bloco na rua? Tem.

Tem reportagem dizendo que o carnaval está bombando? Tem.

Como observadora incontestável de minha cidade amada, no entanto, posso dizer de cadeira: está esquisito.

Menos bulício, menos carioquices... menos tudo.

Tiro pelo cotidiano.

Ontem, sexta-feira, fiquei na dúvida se iria ao centro da cidade, mais especificamente, no Saara. Para quem não é carioca, o Saara é o lugar onde quase todo mundo acaba indo, de um jeito ou de outro. Lá tem a maior variedade de artigos possíveis e... bem mais barato. Você pode comprar de tudo um pouco ou de tudo um “muito”. Queria ir pelos descartáveis para o consultório e por um tapete emborrachado para fazer exercícios em casa. Quase não fui. Me lembrei que era sexta de carnaval e, para piorar, hora do almoço. O Saara fica insuportável, pois os apetrechos de carnaval são comprados assim, às pressas, pelos foliões de última hora e, claro, o Saara é pródigo nesse quesito. Tem mesmo de tudo: desde máscaras, como confetes, serpentinas, colares, fantasias dessas que você faz a folia e pode jogar fora depois. Praticamente não se pode andar por lá, na semana que antecede o carnaval. Na sexta, então, nem se fala.

Vou, não vou... vou! Não tenho outro dia, quero o tapetinho para minha casa, aproveitando os feriados para bombar nos exercícios. Ademais, os copos descartáveis para o consultório acabaram. Vou ter a tarde livre para isso, só preciso estar no consultório às 17 horas. Era meio-dia. Mesmo enfrentando mil filas, daria tempo.

Peguei o metrô. Teria me benzido, se fosse religiosa. Que os deuses me ajudem. E me preparei para enfrentar o trânsito dos pedestres, com mil bolsas transbordando pluminhas, purpurinas e máscaras. 

Desci na estação da Uruguaiana, atravessei a Rua Senhor dos Passos e me enfurnei pela Rua da Alfândega. Espaço para andar. Não havia os pregões de sempre, anunciando que “nesta loja é mais barato!”. Nada. Silêncio. Entrei onde queria, comprei o necessário. Funcionários sobrando, solícitos e sem pressa para atenderem. Rua vazia. Não havia fila no Caixa. Seria mesmo sexta de carnaval? Era.

Aproveitei o tempo ganho e, já que a rua estava vazia, fiz outras compras. Comprei o tapete, os descartáveis, entrei no “Palácio das Ferramentas” e comprei uma tesoura para jardinagem. É que estou cuidando dos jardins do prédio. Pura terapia. Se você quer que alguém faça alguma coisa, peça para quem não tem tempo. Deve ter sido por isso que me pediram para dar uma olhada nas plantas. Estão ficando lindas... sempre há um tempinho para dar uma olhada nelas.

Fiz tudo em menos de uma hora. Peguei o metrô. Não vi bolsas com colares, máscaras ou enfeites. O trem estava cheio, nem tive onde me sentar. Pessoas enfiadas nos seus pensamentos e nos seus celulares. Sexta de carnaval? 

Pensei no que foi minha semana. Nos elevadores, tira-se a temperatura do cotidiano. Carioca adora falar nos elevadores. Não importa se são desconhecidos. Se eles têm ascensorista, então... Mas não me lembro de ninguém falando do carnaval, como era o natural de todos os anos:

- Já comprou a fantasia?

- Vai sair em que Escola este ano?

- Saiu no bloco do pré (pré-carnavalesco), no domingo?

- Vai sair do Rio?

Nada disso. E olha que fico num entra e sai o dia todo. Atendo aos clientes, saio para almoçar, volto, saio para o banco, volto...

Nada.

O povo está triste. Não digo o povo que a mídia apregoa, com seus microfones e entrevistas. Digo o povo cotidiano, com quem me deparo todos os dias. O povo verdadeiro.

E têm menos turistas. Ah... não me enganem: têm menos turistas! No calçadão, posso constatar. Meus olhos acostumados sabem o que estou dizendo. E também pelo número de aptos de temporada alugados no prédio do consultório. Nem a metade de sempre. No supermercado, não ouvi aquela tagarelice multilíngue de todos os anos e nem as filas estavam triplicadas. Ouvi algum inglês e um espanhol aqui e ali, mas foi tudo. Estava acostumada a ouvir, também, os sotaques de vários cantos do país, numa paleta de tons entre o gaúcho e o nordestino. Nada disso. Na volta das compras, na sexta, me surpreendi com uma mesinha na esquina do Hotel entre a Rua Siqueira Campos e a Tonelero: Vendia ingressos para o desfile das Escolas de Samba. Parei para perguntar:

- Ainda têm ingressos?

- Para qual dia a senhora quer comprar? Domingo ou segunda?
 
Na sexta de carnaval? Pois é... eu podia escolher. Incrível. 

Aqui, esse meu cantinho é silencioso. Mas confesso que está silencioso demais.

No fundo, no fundo, por mais que se fale em crise, acho que é mais do que isso.

O povo está mais triste, mesmo sabendo que costuma, sempre, afogar as mágoas e curtir o carnaval. Afinal, aqui no Rio, qualquer calção ou biquíni, com umas purpurinas serve para sair sambando por aí. Põe um apetrecho qualquer na cabeça e pronto. Tudo baratinho. Mas nem vi os camelôs de sempre nas calçadas da Nossa Senhora de Copacabana, vendendo acessórios para enfeites de ultima hora. A gente nem podia andar direito pela calçada! Sumiram. Vi só uns mirrados, aqui e ali. Este ano está diferente.

Fantasio minha imaginação, visto a máscara de investigadora, mas... acho que nem precisa. O povo está pensando.

Tirada a catástrofe da falta de emprego, da crise, das dívidas, da corrupção e da profunda desilusão que afoga nossos corações brasileiros, mesmo assim, a tragédia não traz apenas um preço. A meu ver, traz certas vantagens também. 

Sou pura esperança. Sempre tem uma luz no final do túnel. E eu acho que esta é uma luz diferente das outras. Talvez seja a luz de uma conscientização mais plena.

Demora. Não se pode ter pressa, não adianta. Somos um país muito jovem. Quinhentos anos é nada, perto da milenar civilização que grassa o continente europeu, por exemplo.

Confesso que fico um pouco atônita quando tentam nos comparar com o continente ancião:

- Na França não é assim, na Inglaterra isso não aconteceria, mirem-se no espelho sueco da civilização, a Alemanha... 

Não que eu não admire o povo europeu. Sou metade europeia, com passaporte e tudo. Adoro a Europa. Ponho os pés lá e me deslumbro a cada passo. Nem precisa enumerar um país ou outro... não, a questão não é essa. É que são maduros. As pessoas se esquecem de que também foram crianças e adolescentes!!! Quantos séculos tem a civilização europeia? Por quantos revezes passou, quantas guerras, quanto sofrimento, quantas perseguições durante séculos, quantas barbáries, roubos entre reis e impérios, até chegar onde chegou? Isso ninguém leva em conta. Não são séculos... são milênios!

Temos apenas quinhentos anos. Acho que estamos entrando na adolescência agora, com ares ainda de crianças que querem agir como adultos e batem o pé porque não estão gostando do jeito com que foram criadas, aprisionadas em princípios que as levaram ao caos.

Não adianta me dizer que nossos irmãos do hemisfério norte também tem quinhentos anos e são donos do mundo. Para mim, não adianta. Primeiro, porque foram criados por “pais” diferentes. Segundo, porque foram criados por pais ricos, desses que ensinam os filhos a serem arrogantes...

Nós crescemos jogando futebol de rua com bolas feitas de meia. Não tínhamos condições de comprar bolas de verdade. Vejo nossos irmãos do norte como aquele menino, cujos pais compram a bola e dizem que eles são os donos da rua. Desses meninos que saem de casa e emprestam a bola para os colegas de rua, mas escolhem em que time querem jogar, em que posição querem ficar e, mesmo que não seja a posição mais adequada, se as outras crianças querem ter o privilégio de tocar em uma bola de verdade, têm de se sujeitar. Caso contrário, eles levam a bola embora e ninguém joga...

Não vejo diferença entre a infantilidade de nossos irmãos do norte, os mais poderosos do mundo, e nós. Poder não significa discernimento, nem maturidade. Não significa bom senso. Podem ter conquistado poder sobre os outros, mas e daí? Fazem guerras fora de casa, impõem condições que apenas lhes dê vantagens, são poderosos, porque seus pais lhes ensinaram a serem “donos da bola”. Isso não é maturidade. E também ponho em dúvida que tipo de poder e sucesso econômico é esse. Tiro pelo que está acontecendo: um chefe de Estado que tem discurso para os trabalhadores, mas funciona como um capitalista. Isso é sucesso?

Prefiro jogar futebol com minha bolinha de meia. Pelo menos, por enquanto. Prefiro não me vender a esse “riquinho dono da bola” e muito menos admirá-lo.

Mas é carnaval. E apenas reflito: o que está acontecendo com nosso povo de apenas quinhentos anos, recém saindo da infância? Que adolescentes estamos nos criando? Que indignações justas nos assolam?

É preciso sofrer para amadurecer? Deixarmos de nos alimentar de pão e circo? Considero como hipótese verdadeira: acho que sim.

Leva tempo, mas, pelo que tenho visto nas ruas, no silêncio dos elevadores, nas faces cansadas, tenho esperanças. Muitas.

Há carnaval? Há.

Há blocos nas ruas? Sim.

Muitos? Talvez, mas... me parece que as pessoas estão outras por dentro.

Por aqui, percebo o silêncio como sinal de vida.

Uma vida nova nascendo, uma criança adolescente que ainda apenas bate o pé, sem saber muito o que fazer. Mas... bate o pé com novos argumentos. Alguns meio doidos, outros transformadores.

Mas... está crescendo. Talvez muitos não estejam vendo, mas eu acho que está. Se tivermos olhos mais observadores e menos críticos, dá para se notar.

Que os deuses nos protejam.