sábado, 26 de outubro de 2013

O CONCERTO (Paris 3)

Às vezes, é preciso errar para acertar.

E esse foi um erro abençoado, talvez por um anjo muito atento e de bom gosto.

Se você já leu "Desejos" e "Lá longe" sabe de minhas recentes férias em Paris. Desse tipo de férias de não ter planos para o dia seguinte e resolver o que fazer depois que acorda, levanta, abre a janela e vê o que o dia pede para você fazer... férias perfeitas.

Naquele dia, acordei com vontade de ir a muitos lugares diferentes, o que exigiu um estudo minucioso para o planejamento de idas em vindas, com conexões específicas de metrô e caminhadas. Mesmo sabendo que poderia mudar de ideia a qualquer momento (coisa boa!), meus planos eram arquitetados de manhã, antes de sair.

Eu resolvia onde ir, estendia a minha frente o mapa com todos os meios de comunicação, arquitetava os percursos e, para não ter de abrir e fechar mapas a toda hora, anotava o roteiro de linhas de metrô ou outro transporte, num papel, com todas as dicas de percursos e depois era só seguir a receita.

Fiz isso. Era uma segunda-feira. Como tinha acabado de anotar, sabia exatamente de linha de metrô seria a primeira, bem como a baldeação necessária. Quando desci na estação da conexão e fui pegar o roteiro, na bolsa, é que me dei conta: tinha esquecido o papel em casa. Ai... essa não!!!

Preguiça de voltar... ah... não vou voltar não...

O que posso fazer, então, hoje, que eu saiba ir sozinha, sem precisar de muito planejamento? Fechei os olhos, olhei para meu mapa interno de Paris... hum...vou a Sainte Chapelle, depois emendo com a Notre Dame. Ainda não fui desta vez e está na minha lista de lugares que não quero deixar de visitar.

Uma breve consulta às linhas do metrô foi suficiente para eu me localizar. Vou começar pela Sainte Chapelle.

Desci pertinho do Palácio da Justiça e entrei na fila. Foi quando me lembrei de Ana, minha amiga carioca de coraçãozinho francês, que tinha me dado um monte de dicas. Entre elas...

- Se você tiver oportunidade, não deixe de assistir a um concerto na Sainte Chapelle...

Boa ideia, vou perguntar assim que chegar à bilheteria. Mas não foi necessário: um pouco mais adiante, pude ver um painel com muitos folhetos, contendo a divulgação dos concertos daquela semana. Saí da fila rapidinho e peguei um de cada. Voltei para a fila e comecei a olhar um por um... quem sabe, um deles me agrada...

Logo no primeiro, exatamente no folheto daquela segunda-feira, meu coração disparou: num só concerto, três das minhas clássicas preferidas - Adágio, de Albinoni, Ave Maria, de Gounod e a Ária da Quarta Corda, de Bach! Não é possível!!! Sem contar com as outras, que eram belíssimas.


Como mero detalhe, quando eu tocava piano, na juventude, tinha especial enlevo ao executar a Ave Maria, de Gounod e a Ária, de Bach. Mesmo depois de ter deixado de tocar piano, essas duas me acompanharam por muito tempo e eram as únicas que sabia tocar de cor, mesmo depois de adulta...

E estavam ali, a minha disposição, tudo num dia só, com o detalhe de que, se não fosse naquela segunda, só na sexta, véspera de minha volta para o Rio, o que já seria um certo atropelo.

Passei o resto do dia em êxtase, a espera do grande momento. Como brinde, uma ida a Notre Dame, é claro, e passeio descontraído pelas margens do Sena. Um pulo em casa para me preparar para o concerto e sair em busca do sonho, pisando em nuvens.

Foi uma noite mais do que encantadora. O céu tinha estado puríssimo durante o dia, o que brindou a capela com os reflexos indescritíveis de seus vitrais, no final da tarde.

Não consigo definir com palavras o que foi o encantamento para os olhos e para os ouvidos, o belíssimo encontro de sons e luzes, vindos de um quarteto de cordas impecável, de uma soprano celestial e das cores que penetravam por nossos olhos e corações.

Um concerto sem adjetivos, cuja percepção transcende os sentidos e alcança a alma, no mais recôndito de sua pureza. 

Presente de um anjo, que me fez esquecer em casa um roteiro que me levaria no sentido oposto - para outros céus, sem dúvida, mas... que me roubaria a chance irrecuperável de um anoitecer para sempre inesquecível.


sábado, 19 de outubro de 2013

RESILIÊNCIA


Se posso ir a pé, não escolho outra opção. Para tudo quanto é canto, se minhas pernas aguentam, é a pé que eu vou e, de preferência, com meus olhos abertos para dentro de mim mesma. É por isso que, quando me dou conta... já estou lá. 

Mas há coisas de fora que me chamam a atenção. 

Não que eu queira... nem que eu preste atenção deliberada. Parece que tem um botãozinho aqui dentro que liga e diz: "olha ali". 

E ele "ligou" para as plantas de jardim e árvores floridas. 

Nesse princípio de primavera, não pude deixar de notar. Talvez porque tenha andado mais... ou... talvez...  porque tenha andado por lugares diferentes. O fato é que elas estão por toda parte e nos dão uma lição de vida: resiliência!... 

É incrível como podem se aproveitar de um espacinho de nada, numa cidade infestada de prédios com jardins cimentados e pouco espaço para a natureza.  Mas elas estão lá... imunes (ou sobreviventes?) aos choques emocionais da cidade grande.


Não falo de nossos parques, onde elas se espalham vaidosas e enfeitadas. Falo das que crescem espremidas num cantinho de terra, no tico de um jardim, pelos poros dos muros...


Espreitam-nos entre paredes e grades - árvores ou simples pedacinhos de verde -,  observando nossos andares apressados, poluídos e estressados. Falo dessas, que escolheram uma forma muito particular de enfeitarem nossos olhares. Frutos da mãe terra, apenas nos ofertam sua simplicidade, suas cores. 


Ostentam-se, com modéstia, mostrando que, em nossa terra, em se  plantando, tudo dá. Não importa com quanta terrinha. Um nadinha de jardim basta para trazerem um quê de aconchego. 


Dão-nos mais do que suas flores. Enfeitam-nos com sua presença heroica, sobreviventes do caos.Estão lá, como a nos dizerem que entendem de poluição, que entendem as nossas dores, que estão presentes para darem colo a nossos olhares.


Resilientes.

No meio do caos.

Do ventre de nossa Mãe Terra.

sábado, 12 de outubro de 2013

12 DE OUTUBRO



Não. Não quero ser criança outra vez. Minha infância não me brindou com os melhores presentes. Mas... pensando bem, mesmo que tivesse brindado... não... não iria querer ser criança outra vez.

Vivi cada momento a seu tempo. Bons ou maus. E acho que os vivi bem, cada um a sua maneira, o melhor que pude, o melhor que me foi possível. Se alguém me perguntasse que idade eu gostaria de ter hoje, eu responderia:

- Nem um dia a mais nem a menos do que tenho hoje.

Não que eu não goste de crianças. Pelo contrário!!! Gosto muito!!! Vejo em cada sorriso sincero que elas oferecem a alegria que sinto, muitas vezes, em mim mesma; vejo a beleza do mundo contida num olhar vivaz, numa brincadeirinha sutil e cheia de graça; vislumbro também minha esperança em um futuro melhor para o mundo. Talvez seja a minha criança interior conversando com aquela criança. Não sei. E acredito, apesar de todos os indícios em contrário, num mundo melhor, vindo das mentes e das almas dessas crianças de hoje. Um mundo em que algo dentro de mim (a criança?) teima em acreditar e fortalecer em pensamento. E como as crianças sabem o que dizem ou o que pensam... melhor não fazer pouco delas...  um mundo restaurado e restabelecido, que ainda não podemos ver com os olhos concretos de hoje...

Se há uma criança interior, acho que a minha está bem brindada. E cuidada da melhor forma que meu projeto de mãe pôde conter. Cuido dela, sabendo que cuido do melhor que posso ser, pois também dela depende minha felicidade intrínseca de tantas pequenas (e grandes) coisas.

Mas não quero voltar. Nem anos, nem dias, nem minutos. Ela já está bem, dentro de mim. E eu estou bem, com meus vividos cabelos grisalhos. Eles me provam que o que vivi sabe buscar pela felicidade de hoje, sem a ingenuidade que me fez tropeçar em tantas "invicissitudes" do passado.

Meus cabelos grisalhos - que teimo e teimarei sempre em não esconder com as tintas maravilhosas dos salões de beleza -  denotam a experiência que me faz bem hoje, quando me olho no espelho, todas as manhãs. Eles me ensinaram a conversar comigo, com meus olhos, com meus sorrisos... e... quiçá... com minha criança interior, que se esconde em algum canto de mim.

É às crianças fofas que eu conheço, e também a essa criança 'de mim' que dedico minhas linhas de hoje. E não só a minha, mas... a todas as crianças interiores de todos os adultos que me cercam.

Feliz dia da criança, portanto, aos tiquinhos de gente... meus netinhos e netinhas do coração... mas... muito especialmente... às crianças de dentro dos adultos - amigos queridos - que sabem ser e viver o real e inefável encanto de ser adulto, sem deixar de saber ser criança, quando em vez.

Obs.: foto tirada por Francesca Pilo (Buttes Chaumont - Paris - 2013)

sábado, 5 de outubro de 2013

LÁ LONGE (Paris 2)



Os dias vão passando e me vejo, ainda, sorrindo pelas ruas, me lembrando disso ou daquilo,  dessas férias abençoadas em Paris.

Outro dia, passeando pelo calçadão, na ponta de lá da praia de Copacabana, avistei, na ponta do lado de cá, o monte do Forte do Leme, com sua bandeira altaneira, plantada no alto do mirante. E pensei: "já fui lá"...

 É meio meu ver algo lá longe e dizer: "um dia, vou lá." 

Foi assim com La Grande Arche de la Défense - na verdade, La Grande Arche de la Fraternité. Mas ninguém o chama assim. Plantado na região conhecida como La Défense, não existe nome de batismo que resista ao apelido ("a voz do povo é a voz de Deus"). Ficou Arche de la Défense mesmo e, se algum desavisado tentar perguntar onde fica o "Grande Arco da Fraternidade", é bem provável que o parisiense fique olhando para ele com "cara de parede", sem saber do que se trata.O monumento me pegou pela distância, assim como a bandeira do Forte do Leme: "um dia, eu vou lá". E foi dessa vez. Não sem antes ler a respeito, é claro, pois essas coisas, para curtir até o fundinho, a gente vai como quem visita um museu: 

"La Défense é o maior centro financeiro da cidade de Paris. Com uma população de 20.000 habitantes aproximadamente, é centrado em um circuito oval de auto-estradas no departamento de Alto do Sena, nas comunas de Nanterre, Courbevoie e Puteaux. O distrito está na extremidade ocidental de Paris, ao longo do Eixo Histórico, que começa no Louvre, no centro de Paris, e continua ao longo da Champs-Élysées, através do Arco do Triunfo, até culminar em La Défense.Com o Grande Arco, com cerca de 110 metros de altura, a área abriga muitos dos maiores e mais altos edifícios da área urbana de Paris. Com 314.000 m², seus 72 edifícios de vidro e aço, incluem 14 arranha-céus acima de 150 metros, com 150.000 trabalhadores diários e 3,5 milhões de metros quadrados de espaços de escritórios, La Défense é o maior centro empresarial desenvolvido na Europa." (http://pt.wikipedia.org/wiki/La_Défense) 

Com essas informações básicas, peguei o metrô e desci duas estações antes, para ir curtindo, aos poucos, a chegada ao monumento. Queria vê-lo crescer aos meus olhos. Mas nem precisava. Ele já é imenso, mesmo de longe. Estava anoitecendo e esta parte da Paris moderna, construída com arranha-céus que nunca imaginei que pudessem combinar com Paris estava ali, como vitrine viva ao meu olhar. É diferente, completamente diferente. Se eu não tivesse saído de um metrô tipicamente parisiense, duvidaria que estaria na mesma cidade. 
 


Quando cheguei aos pés do monumento, vi o tamanho de minha pequenez. Ele é muito, muito maior do que eu podia imaginar. Uma escadaria de 54 degraus, divididos em três lances de 18 (terá isso algum significado não explicitado nos guias turísticos?) ainda o faz mais portentoso.



Mas... daí a concordar com a descrição da Wikipedia, de que o eixo histórico de Paris culmina com La Défense... já é uma questão de ponto de vista. 

Para mim, o eixo histórico culminou e sempre culminará com o Arco do Triunfo que, a meu ver,  vence o de  la Défense por sua estrutura, seu precioso bordado e suas esculturas impecáveis. Nada o sobrepuja, nem mesmo a grandiosidade de uma moderna Paris que ali se descortina.

Fiquei por ali, algum tempo, contemplando a nova cidade. Foi muito bom ter ido, ter visitado essa parte igualmente brilhante de Paris. De lá, pude ver, lá longe, o Arco do Triunfo e me sentir na outra ponta... no fundinho do eixo histórico da cidade.





No dia seguinte, passei pelo Arco do Triunfo, novamente. Meu olhar se estendeu distraído pela Avenida da Grande Armada, até alcançar La Arche de la Défense, bem ao longe, quase imperceptível.



Sorri: "Já fui lá"... 

No final da tarde, voltei para casa, pensando na parte nova da cidade e nas palavras que havia lido no livro de Lorânt Deutsch: 

"Assim, a cidade volta lentamente às suas origens... Lembremo-nos de que a Lutécia dos gauleses situava-se à margem do Sena, na localização da Nanterre atual. O século XXI talvez veja Paris voltar à Lutécia e encontrar, mais de dois mil anos depois, a curva do rio onde nasceu a cidade gaulesa."  (Lorànt Deutsch, do livro Próxima estação, Paris).   

Sorri novamente. E não pude furtar-me a acrescentar em pensamento:

E, para os saudosos das famosas leituras em quadrinhos de "Asterix, o gaulês", quem sabe, por entre as árvores e bosques que restam por lá, nessa França que guarda com cuidado suas tradições, vejamos as sombras de nosso herói, acompanhado de Obelix, caçando, ainda, seus javalis...