sábado, 28 de julho de 2012

NO MEIO



Ontem estava voltando de uma celestial sessão de acupuntura. Celestial é o termo mais do que adequado: saio de lá pisando nas nuvens.

Decidi ir a pé para o metrô, que fica, digamos... a uns 500 metros. A caminhada promete um passeio descontraído pelas ruas descompromissadas de Humaitá e Botafogo.

E eu estava atrás de uma palmilha em uma loja perto da Cobal, que Patrícia, amiga que já apareceu em outros contos – “Eu sabia”, “Sessenta”, “Silvio” - tinha me indicado. Eu já assuntara a região, sem muito sucesso. Mas estava com pressa naquele dia. Quem sabe, com mais calma, eu achasse a tal lojinha.

Não achei. Mas já que estava por ali, fiz olhos agudos em volta e vi uma loja de cuidados com os pés – podologia.

Atravessei a rua descansada. Afinal, depois de uma sessão de acupuntura celestial, não dava mesmo para quebrar o encanto com uma agitação desnecessária. Meu próximo compromisso seria dali a duas horas. Tinha tempo para vadiagem.

Entrei na loja olhando as vitrines e ouvi aquele chamado inconfundível:

- Eulalia?

Virei-me, pensando: “ex-aluna, aluna, cliente, amiga”?...

Era uma amiga antiga, que não via há vários anos. Estava tão diferente que teve de identificar-se para que eu a reconhecesse. Não sei se fiquei feliz em vê-la, confesso, pois há três anos, só falava com ela nos natais e aniversários. Infelizmente, ela se transformara num poço de lamentações. Dessas que, por mais que você tente ajudar, conversar, aconselhar como “irmã mais velha” não tem jeito. Lamenta até pela água que bebe. Mas o encontro pessoal podia ser diferente. Assim, apostei na vida e a abracei carinhosamente:

- Nossa, quanto tempo! Como vai? E aquelas crianças maravilhosas?

Ela tem dois filhos que, quando vi, da última vez, só poderiam ser comparados a dois príncipes saudáveis e deliciosos de se ver.

- Vão bem. Eu é que estou com uma alergia de doido. Imagine, minha casa está em obras há dois meses, uma poeirada só.

Pronto... Começou! Tentei desconversar:

- É assim mesmo, obra é fogo. E aqueles príncipes, como vão?

- Vão bem. Hoje vim ver meus calos, enquanto o (nome do marido) fica com eles em casa. Sabe, estou de férias, ou melhor, estamos em greve. As férias oficiais vão acabar e eu não faço greve de jeito nenhum, pois acho um absurdo...

Bem, eu vou poupar você de ouvir o resto, mas era uma lamentação só. Fechei meus ouvidos para pensar depressa em como sair dali sem ser indelicada:

- Não vamos falar em greves, querida, você sabe que fui professora por 30 anos, sei bem o que é isso. Os meninos, como vão?

-Vão bem. Mas eu não vou entrar nessa de greve não, porque...

Olhei o relógio. Na verdade, acho que estava olhando para o relógio do tempo psicológico. Para ela, ele havia parado. Os filhos crescendo, ela parada; os anos passando, ela parada.

No meio de tanta vida para viver, ela parada.

No meio de uma manhã de sonhos para mim, eu, ali, parada, vendo aquilo...

No meio de tanta piração, os meninos, como iriam? Não perguntei mais. Despedi-me, às pressas, dizendo das inconstâncias da vida e também de minhas urgências.

No meio de tanta loucura, eu precisava ir... e bem depressa. “O que não tem remédio, remediado está.”

No meio desse imprevisto, eu tinha perdido a sensação de céu e nuvens fofas abaixo dos meus pés! Cadê minha sessão de acupuntura!? Ela não tinha o direito de fazer isso comigo! Eu não tinha o direito de deixar que ela fizesse isso comigo...

Saí meio tonta. Uma sensação esquisita.

No meio de uma manhã promissora, uma nhaca, argh... atravessando meu corpo.

Um banho de sal grosso resolveria? Caramba... cruzes!!! Ninguém merece!

Tem gente que adora ser assim! Mas precisa arrastar os outros junto? Continuei incomodada pela rua, a caminho do metrô. O dia estava lindo, mas a sensação esquisita me acompanhava. A Voluntários da Pátria é uma rua comprida. Eu tinha entrado nela pela Humaitá e teria de andar até quase o fim, para alcançar o metrô. Melhor ir para casa, tomar um banho e ver no que dá... estava incomodada, de verdade. Essas coisas acontecem com todos nós, desprevenidamente. Mas sempre tem um jeito de sair. Contra o dissabor pela vida, só mesmo muito amor por ela. E é o que eu tenho. Mas estava incomodada. Pensava, sinceramente, num banho.

No meio de tanta sensação agoniada, foi que ouvi um som de água. Um chafariz.

Uma chafariz!!! Em plena Voluntários! Nas minhas pressas, nunca havia notado. Tenho uma câmera sempre engatilhada. Tirei da bolsa, não resisti.

Imediatamente, a Voluntários se desvendou para mim. Atrás desse encantamento repentino, outros recantos dessa rua movimentada se desvelaram para mim. Virou festa, como um chão para aquele céu azul anil. Que dia lindo, lindo, lindo!!!







No meio dessa rua movimentada, sob este maravilhoso céu invernal me pegando de surpresa, meus olhos me brindaram com meu banho de sal grosso!

Agradeci a minha amiga chata por ter sido, ainda que involuntariamente, o botão despertador da beleza descompromissada dessa rua de passagem, em pleno bairro pouco festejado do Rio de Janeiro. Talvez eu nem tivesse percebido, se não estivesse tão ansiosa por uma limpeza de alma. Tem males que vem para o bem. Quem diria...

Fui caminhando para o metrô, afofando novamente meus pés sobre as nuvens, felizinha, felizinha... nessa maravilhosa cidade do meu coração.

No meio do caminho tinha mesmo uma pedra... mas dela brotou a água que inundou e banhou essa alma carioca.

sábado, 21 de julho de 2012

QUATRO


Dei uma volta pelo meu passado profissional e fiquei pensando em minha trajetória universitária.


Trabalhei 13 anos um uma universidade particular, como professora de Língua Grega, Cultura Clássica e Língua Portuguesa (haja diversidade...). Desses anos, passei o primeiro também em uma escola do Município do Rio, como professora de português – Comunicação Oral e Escrita, como se denominava, na época. Nos dois últimos, dividi o tempo acadêmico com um conhecido colégio particular, dando aula de Cultura Clássica. Isso mesmo, Cultura Clássica no último ano do ensino fundamental. Só conheço um colégio que se prestou a esse requinte, investindo tão a fundo nas mentes de nossa juventude!

Adorei fazer tudo isso, embora me sentisse dispersa. Fizera doutorado em Linguística e estava doida para aquietar minha mente não horizontalmente, com essa diversidade toda, mas verticalmente em estudos de Psicolinguistica. Precisava de um concurso, pois só uma Universidade Pública me daria essa chance, com a profundidade desejada.

A oportunidade surgiu em 1986, mas, naquela época (seria tão diferente, hoje, em certas universidades?), meus amigos me diziam para não perder tempo com isso:

- As vagas estão marcadas, você está se desgastando à toa. Já sabemos até o nome dos dois que vão entrar.

- Vou fazer, não tenho nada a perder. O máximo que pode acontecer é eu ficar onde já estou.

E fiz. Lembro-me que de março a junho, fora comer, trabalhar e dormir o mínimo possível, minha mente, meus esforços, minha vida se resumiu aos livros. Engoli aquele programa de dez temas, contidos no edital, de todas as formas que eu conhecia. Tinha livros pela mesa, pelo chão, vivia no meio de anotações, leituras as mais diversas, tentando resumir em centímetros cerebrais toda a minha existência como pesquisadora.

Eu dava cerca de 30 horas de aula por semana, o que já era um bocado, entendendo-se que me dividia entre o ensino universitário e aqueles espertíssimos e irrequietos adolescentes do tal colégio particular. Sinceramente, não sei como sobrevivi.

O concurso seria em junho. Lembro-me que, em torno do meu aniversário, em meados de maio, houve um dia em que eu duvidei sobre minha saúde para chegar lá.

O tal colégio era (e ainda é) uma Instituição que pertence a um Mosteiro. Eu ia de carro e, ao subir a rampa de acesso ao setor do colégio, tinha de dar a volta, passando em frente à eminente igreja, magnificamente construída, de fachada portentosa dentro do monastério. Um dia, estacionei o carro, e resolvi descer e entrar. Gosto de lugares de oração, sejam eles quais forem. Não importa a religião, pois não me encaixo em uma ou outra exatamente. Mas casa de oração é casa de oração e meu coração, nas horas mais desavisadas, gosta de visitar uma, sem compromisso. Não precisa ser para pedir ou porque eu necessite. Pode ser simplesmente para entrar, ficar um pouco, sentir o ambiente de recolhimento e sair. Às vezes, entro apenas para agradecer. Não exatamente por uma coisa específica, mas para agradecer em geral. Somos, todos nós, de uma forma ou de outra, pessoas abençoadas, sob um ponto de vista qualquer.

Mas, naquele dia, eu queria pedir. Queria pedir forças para conseguir chegar lá. Não queria pedir para “passar no concurso”. Queria pedir forças para ter condições de lutar. Que o mérito fosse dado a quem fosse, mas queria estar em condições de conseguir lutar como uma boa guerreira.

A nave da igreja estava completamente vazia. Pelo restinho de cheiro de incenso, provavelmente teria havido alguma cerimônia há algum tempo atrás. Eram duas horas da tarde, minhas aulas começariam em torno de duas e meia. Teria sido uma missa ao meio-dia? Talvez... ou alguma cerimônia específica, pelo cheiro de incenso que pairava no ar. Havia, ainda, muitas luzes acesas e isso só me chamou a atenção por causa de um jovem monge que recolhia paramentos e começava a apaga-las.

Não sei por que, pedi por um sinal. Eu nem sabia que tipo de sinal eu queria. Mas é que me dá umas coisas dessas, de vez em quando. Queria um sinal que me orientasse. Orientasse o quê? Não importava muito o quê ou como, mas que me direcionasse para frente.

O monge foi apagando as luzes, quase todas, e retirou-se. A igreja, em penumbra, continuava portentosa.

Contei as luzes acesas: quatro. Olhei em torno de toda a nave. Apenas quatro luzes restavam acesas. Me veio à mente o número quatro. Da lista de dez temas do edital, o que constaria no número quatro? Levantei-me um pouco intrigada e fui dar minhas aulas que se estendiam até o final do dia.

Cheguei em casa e fui aviar as coisas cotidianas indispensáveis a uma dona de casa sem auxiliares. Estava casada, na época. Após o jantar, livros novamente. Faltava apenas um mês para o concurso. Depois, como eu dizia, recomeçaria a viver uma vida de mortal novamente.

Debrucei-me sobre a lista de pontos. Quatro - Gramática Transformacional: princípios e métodos.

Nem pensar! Cruz credo. Dos dez, poderiam cair sete dos quais eu saberia me safar com tranquilidade. Mas os três restantes - Gramática Transformacional, Fonética e Fonologia ou Linguística e Poética - não! Pelos deuses, não! Mas... afinal... eram só luzes dentro de uma igreja, num momento de cansaço e desalento. Que eu não me impressionasse...

De qualquer modo, prestei mais atenção ao ponto quatro naquela semana. Recolhi um material sobressalente, andei pesquisando mais um pouco, sobre um assunto que passara bem longe de minha academia. Nenhum dos cursos que fizera na graduação abordara a gramática transformacional. Idem no mestrado e doutorado. O que eu sabia era fruto de leitura isolada e como o tema nunca me atraíra, ficara com uma visão geral e apenas horizontal do tema, por si só um universo de estudos e pesquisas linguisticas. Ah, sim, também fizera um estágio, após o doutorado, com Miriam Lemle, da UFRJ, a pessoa que mais entendia do assunto no Brasil. Mas nada que me desse uma noção suficiente para enfrentar um concurso. Em outros termos, era um mar de conhecimento do qual eu dominava apenas um palmo em sua profundidade. Mas olhei melhor o tema, naquela semana, embora o fizesse com certa cautela, desconfiança e, por que não dizer... descrédito. Afinal, eu estava muito vulnerável e... eram apenas quatro luzes deixadas acesas a esmo por um monge ao cuidar de uma igreja.

O tempo passou e esqueci o evento. Saía para meu trabalho rememorando, pelos caminhos, o que estudara, buscando detalhes do que poderia cair sobre um assunto ou outro. Se apenas sorteassem o tema e nos deixassem fazer a prova, seria ótimo. Mas eu sabia que eram apenas temas e que, uma vez sorteado um deles, a banca apontaria uma ou várias questões sobre o assunto. E teríamos uma hora de consulta e três para fazermos a prova escrita.

Vencida esta etapa, viria a prova didática (prova de aula) e, finalmente, a prova de títulos. Por tudo que eu já tinha passado, lutado, conquistado, publicado, a prova de títulos era a única na qual eu nem pensava. Nota garantida. As outras duas é que eram as pedras do caminho, sendo que a escrita era a mais temida de todas.

Chegou o dia da prova. Lembro-me nitidamente que, ao sentar-me na cadeira esperando que a banca entrasse e sorteasse o ponto, a visão da igreja e das quatro luzes, de repente, concretizou-se em minha mente. Meu coração deu um salto. Não, não pode ser.

Enfim, a mão de um dos concorrentes tirou da caixa o número. Um: Fonética e Fonologia. Os professores da banca leram a questão que haviam preparado - Fonética e Fonologia: visão sincrônica e visão diacrônica.

Dois pensamentos vieram juntos a minha mente de uma só vez: “não foi o ponto quatro, viu? Que besteira!!!” E, logo após: “Fonética e Fonologia! E agora?” Um arrepio de frio me subiu pela espinha e, imediatamente, congelou meu cérebro. Depois, esquentou na mesma proporção. Adrenalina pura. O coração disparou: “Estou ferrada”. Olhei em torno. Todos os olhos esbugalhados como os meus. Eu não era a única apavorada. No meio do desespero, quando se está no mesmo barco, as pessoas se juntam. Todos sorriram amarelado juntos. Seis concorrentes levantaram-se e entregaram a prova em branco. De fato, o tema era muito específico e de pouco conhecimento na área. Era difícil achar alguém especializado no assunto. Talvez, quem sabe, alguém da banca... apenas! Poderíamos apontar a dedo os profissionais que entendiam de Fonética e Fonologia no Brasil... e acho que não encheríamos os dedos de uma das mãos. Daí a estupefação de todos. Mas era área de Linguistica. Não havia como embargar.

Esquecida do número quatro, pensei: “Bem, eu e todo mundo estamos apavorados. É colocar a cabeça para funcionar.” Tirei meus apontamentos. Felizmente, tentara estudar com mais afinco exatamente os pontos em que me sentia mais frágil, mas é que não havia mesmo muito o que se estudar do tema. O fato é que me lembrei, como uma luz vinda do céu, de um eminente professor que tivera no mestrado: Silvio Elia, de História da Linguistica. Eu simplesmente adorava aquela aula. O homem era um linguista filósofo. Ou seria um filósofo linguista? Aparentemente, sua aula era monótona. Mas só aparentemente. Logo nas primeiras semanas eu descobrira o segredo: era só fazer uma pergunta que o homem se levantava, se esquecia daquele caderninho (ele dava aula lendo um tal caderninho e filosofando sobre as frases que lia), ia para o quadro (quadro-negro na época) e dava um show. E eu me transformara em sua aluna favorita, tenho plena consciência disso, pois quando eu entrava em sala, às vezes, um pouco atrasada por conta dos compromissos profissionais, ele sorria com os olhos. Eu pedia desculpas, me sentava, na primeira fila, enquanto muitos de meus colegas, em seus cantos, disfarçadamente corrigiam provas ou liam outras coisas (que desperdício!). Eu abria meu caderno de anotações e ficava esperando a primeira chance de lhe fazer uma pergunta. E... descortinava-se a festa.

De modo geral, as pessoas não gostavam de História da Linguistica, então, ele praticamente ficava a minha disposição.

Pois então... naquele instante de pavor linguístico, em plena prova, me lembrei do caderno com as anotações de aula do Professor Silvio Elia. Claro, estava entre os livros que eu tinha levado para consulta, caso alguma coisa de história da Linguistica caísse na prova. Mal sabia que serviria para muito mais! Estava tudo ali, desde os Vedas, passando pelos primeiros eventos de Fonética na Gramática Comparativa, até os últimos disparos do Transformacionalismo. Na primeira hora, a hora de consulta, fiz um rapidíssimo esquema, com os autores principais que atravessavam os séculos e fixei os pontos principais. . Acho que desceu um santo. Não desceu o próprio Silvio Elia porque ele ainda estava vivo. Dos aspectos históricos ficou mais fácil puxar as teorias sincrônicas e diacrônicas e a redação começou a tomar forma. Silvio Eli serviu como a espinha dorsal da linha dos meus pensamentos.

Escrevi dez páginas de papel almaço (lembram do papel almaço?) e entreguei a prova no último minuto. Nem eu poderia acreditar. Tirei dois dez e um nove, dos três membros da banca (um deles não dava dez para ninguém).

Ufa. Primeira etapa vencida.

No dia seguinte, fui mais tranquila para o sorteio da prova didática. Teríamos 24 horas para preparar uma aula, então, mesmo que o ponto fosse ruim, eu teria tempo para me preparar.

Só de uma coisa eu não sabia. Pensei que seria o mesmo ponto para todos, o que nos deixaria mais ou menos nas mesmas condições de comparação para a nota. Claro que uns seriam, por sorte, beneficiados por saberem mais sobre o tema. Mesmo assim, seria um método melhor de comparação, segundo minha visão. Mas não foi assim. A banca resolveu ir sorteando a esmo para cada pessoa e disse que não faria uma questão sobre cada assunto. Poderíamos simplesmente sortear o ponto e prepararmos a aula em cima de uma parte do tema ou todo ele, como preferíssemos.

Quando fui retirar meu ponto, minha mão tremeu. “Seja o que os deuses quiserem”. Entreguei o papelzinho para os membros da banca. Ponto quatro. Senti uma ligeira exclamação por parte dos colegas (uns de alívio outros de solidariedade). O ponto seria péssimo para qualquer um. Quem, nesse mundo dos meus deuses entendia de Gramática Transformacional? Só mesmo a tal Miriam Lemle, da UFRJ, provavelmente. Todos nós outros apenas a olhavam com cara de que “tem doido para tudo, até para entender de Gramática Transformacional!”

Ai, meus deuses! E caiu para mim! Bem que eu tinha sido avisada... A banca sorriu. Eu não sabia se de pena ou por deixar em vantagem aqueles tais dois concorrentes que todos diziam serem os donos das vagas. Não importa. Guerreira é guerreira. Sorri de volta. Eles não me conheciam. Não lhes daria pistas sobre minhas competências ou incompetências...

Agradeci aos deuses e à vida por um estágio que havia feito com a Miriam Lemle após o meu doutorado. Eu não tinha aprendido o que era a Gramática Transformacional, mas, com certeza, pelo menos, pegara o “jeito” de como falar sobre ela.

Voltei para casa, agradecida às luzes, mesmo que não tenha dado tanta importância a elas quanto acho que deveria, quando as vi. Pelo menos, tinha-me detido mais no tema, por uma semana, por pura “superstição”.

E foi o que me salvou. Dei a aula, tirei oito e passei na vaga do concurso. Fui professora dessa universidade pelos dezoito anos seguintes e lá me realizei profissionalmente de modo pleno e entregue aos mais belos estudos de Psicolinguistica que poderia ter feito apenas lá. Sonho realizado.

Nunca mais desprezei “sinais” desde que pudesse me dar conta deles.

Na semana passada, uma amiga de São Paulo veio passar férias no Rio. Se você leu o conto “Cris”, sabe de quem se trata. Entre os pontos turísticos, é claro que estava esta magnífica igreja, visitada por quase todos os visitantes da cidade, por sua beleza interior, folheada a ouro e, também, por seus rituais gregorianos. Minha amiga é católica e, portanto, essa visita não poderia passar batido.

Foi então que, entrando novamente na nave, depois de tantos e tantos anos (vinte e seis para ser mais precisa), me lembrei daquela mocinha exaurida que ali entrara duas vezes: uma para pedir forças e outra para agradecer.

Nesta terceira vez, apenas agradeci. Agradeci pela vida, por estar ali, por coisas que sei e também por muitas que ainda não sei.

E, claro, para tirar uma foto e agradecer, mais uma vez, àquele momento místico.

Não apenas quatro, mas várias luzes estavam acesas, como que comemorando um belo instante de vida!

sábado, 14 de julho de 2012

QUEBRA-CABEÇA


Na saída do metrô, aquele pisca-pisca ritmado fazia as pessoas pararem, olharem e se decidirem por descer mais rápido ou mais devagar a escadaria do metrô da Kurfürstendamm, a principal avenida de Berlim. Acho que nem eles conseguem pronunciar esse nome com tranquilidade, pois, carinhosamente, é conhecida como Kudam.

Parei ali, pondo a mente para funcionar. Com certeza, aquilo deveria ser um aviso do tráfego metroviário. Só podia ser... mas... como funcionaria? Sentei-me num cantinho da calçada e fiquei matutando. Alguns cidadãos olhavam para ele, conferiam com o relógio de pulso e desciam às pressas.

E eu... olhando. Saí dali encafifada. Não tinha conseguido entender. No dia seguinte, passei por ali, novamente, olhei aquela gracinha de monumento, sem grande expectativa e... eureka! Aquilo era um relógio! Nossa! Como eu não tinha percebido antes? E melhor... como percebia agora? Mas estava claríssimo! Era um relógio super hiper original!!!

Era, definitivamente, um relógio! Aproximei-me para destrinchar o segredo, tentando ler uma placa que ficava abaixo dele, como mostra os dois homens da foto. Em vão: tudo em alemão. Tentei falar com eles para ver se conseguiam me explicar o que significavam as casinhas vermelhas, as casinhas amarelas... Não deu certo. Eles deveriam ser poloneses, suecos, holandeses ou qualquer outro povo de língua inexplicável para mim. Sorrimos os três. Notei que eles também haviam descoberto a “pólvora”, só não sabiam destrinchar como. Tudo indicava que não entendiam alemão também.

Meu ex era colecionador de relógios. Nada mais sedutor do que motiva-lo a deixar suas lojas de trenzinhos e ir visitar minha descoberta. E ficamos ali, matutando, colocando sua cabeça de engenheiro para funcionar. Finalmente conseguimos e tudo pareceu tão simples quanto um relógio comum. Só que muito mais charmoso.

Para completar a façanha, descobri, naquela tarde, que sua miniatura era vendida nas lojas. Trouxemos uma. Pena que foi uma, pois se foi com o divórcio. Mas tudo tem suas vantagens: um dia vou lá ver se ele ainda existe e acabo trazendo um pequeno sósia para me distrair. Para uma mente não consumista, é preciso algo muito especial. Mas a originalidade e a estética acabam com um taurino. Pelo menos com essa taurina.

E acabo, assim, arranjando um motivo a mais (como se precisasse!...) para voltar a lugares de lembranças tão queridas. Se você leu o conto “Quem diria” com certeza me dará razão.



OBS.: Para quem ficou curioso(a) como eu: O pisca-pisca superior, que é redondo, conta os segundos; a primeira linha, com quatro casas vermelhas, conta os minutos – cada casinha se acende a cada minuto transcorrido; a segunda linha conta 5 minutos, ou seja, quando a linha de cima está cheia, e a casa redonda superior completa mais 60 segundos, toda a primeira linha se apaga e se acende uma casinha da segunda linha (pois se referem a quatro minutos + os 60 segundos); a terceira linha conta as horas e a última linha conta 10 minutos em cada casinha. Deste modo, quando a segunda casa da segunda linha se completa (ou seja, marca 10 minutos), esta segunda linha se apaga e se acende uma casinha da última linha. Quando todas as casinhas da última linha se acenderam (4 x 10 = 40 minutos) e todas as casinhas da segunda linha também estiverem acesas (4 x 5 = 20 minutos), todas as luzes das primeira, segunda e quarta linha se apagam e se acende uma casinha da terceira linha, marcando mais uma hora. Assim, para se “ler” que horas são a estratégia é ir, em primeiro lugar, para a terceira linha (para saber as horas inteiras), depois para a quarta linha e ver quantas luzes de 10 minutos estão acesas, depois ir para a segunda linha e somar quantas luzes de 5 minutos estão acesas e, finalmente, ir para a primeira linha e somar os minutos finais. Na marcação do relógio acima, são 2 horas e 49 minutos. Com o tempo você se acostuma e consegue ler tão rápido quanto os apressados alemães que sobem e descem as escadarias do metrô de uma das extremidades da Kudam. Simples, não? (risos)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

BEM-TE-VI



Hoje acordei manhosa, ao som de pássaros e do bem-te-vi.
Há quanto tempo eu não ouvia um bem-te-vi!

Bem-te-vi, bem-te-vi...
Bem me veja mesmo, meu pássaro,
Antes que o mundo me consuma.

Obs.: Imagem de wikipedia http://pt.wikipedia.org/wiki/Bem-te-vi

domingo, 1 de julho de 2012

SHEIK


Sheik foi um cão que eu nunca tive... aliás, “não tive” para os olhos dos adultos, que nunca puderam vê-lo. Mas, na verdade, desde bem pequena, até os sete anos de idade, Sheik foi meu companheiro para tudo.

Um cão pastor alemão, manto negro, de focinho grande e protetor. Uma fera, que poderia proteger-me de todos os males do mundo.

Brincava com ele em meus sossegos de quintal, correndo para lá e para cá, com nossos folguedos prediletos: pique e bola.

De vez em quando, minha mãe ralhava comigo:

- Menina pára quieta, deixa de falar sozinha com o vento! Sai do quintal!

Nesses momentos, Sheik empertigava-se. Orelhas em pé. Eu entrava em casa com ele colado à minha perna, quase do meu tamanho de tão grande. Chegava a sentir-lhe o cheiro do pelo que eu tratava muito bem - tinha uma escova só para isso, que eu guardava cuidadosamente junto com minha roupas. Ouvia-lhe o arfar das narinas.

Só eu sabia, pois nunca contei a ninguém, mas ele não me largava para nada. Quando ia dormir, ele estava ali, deitado no chão, ao meu lado. Até para tomar banho ele me acompanhava, refestelando-se no canto do banheiro. Não gostava do meu banho quente, enchendo o ar de umidade e vapor. Espirrava. Eu ria baixinho para não chamar a atenção de minha mãe, quando ela estava por perto. Se havia vapor em excesso (sempre adorei banhos ferventes) e ele não resistia, saía meio irritado e me esperava no corredor.

Sheik me defendia dos meus medos. Minha mãe me mandava comprar pão na padaria da esquina, naquela rua escondida do Meier – Raul Barroso -, onde fomos morar, depois de quatro anos na Tijuca, na tranquilidade também escondida da Marechal Trompovsky.

A Raul Barroso ficava ao lado da saída da Unidos do Cabuçu. Aquelas pessoas grandes, falando grosso, sempre me colocavam em estado de alerta. Mas eu estava com Sheik e, se tinha medo, balbuciava:

- Avança, Sheik!

Ele avançava, abrindo caminho para mim... e eu ia e voltava confiante, com meu guarda de confiança.

Um dia, me levaram para o internato. Sheik ao meu lado. Mas o inesperado aconteceu. Ele não entrou. Postou-se no portão, aquele portão enorme, que se fechava atrás de nós. Chamei-o. Não veio. Chamei-o com todas as forças da minha mente. Mas, pela primeira vez, meu fiel amigo não me obedeceu. Quase entrei em pânico. Mas não havia o que fazer. Eu nem podia comentar com nenhum adulto, para que abrissem o portão e eu pudesse convencer meu amigo a me acompanhar. Ninguém acreditaria nas minhas verdades.

À noite, ouvia nitidamente os latidos familiares de meu doce amigo. Estava me chamando e eu não tinha como ir. Eu estava presa lá dentro. Ele estava preso lá fora.

Sofri não sei quanto tempo nessa angústia, ouvindo seus latidos me chamando, principalmente à noite, no silêncio da mata. Ele não podia entrar por quê? Sempre fora onde bem entendesse comigo. O que estava acontecendo? Nunca pude compreender.

Os dias se passaram e Sheik parou de latir.

Eu sabia que ele tinha ido embora... e sabia que era para sempre.

Meu luto silencioso me acompanhou por muito tempo. Não houve folguedo, amiga de colégio ou brinquedo que tivesse podido substituir meu amigo e me proporcionar toda a felicidade que, durante os primeiros anos de infância, esse grande amigo, terno companheiro e cúmplice fiel proporcionou ao meu coração infantil.

Guardo, até hoje, a lembrança de meu parceiro invisível, meu doce e querido Sheik.

E, em sua homenagem, todos os carros que eu tive (e também o atual), foram batizados com seu nome, para representar aquele que foi o grande companheiro de muitas de minhas vivências, nas direções de minha meninice.