sábado, 24 de dezembro de 2011

O PRESENTE DE NATAL


Acho que eu tinha 4 ou 5 anos, no máximo, quando vi Papai Noel ao vivo e a cores pela primeira vez. Para quem se lembra, nos anos 50, ele aparecia na Sears, a primeira loja de departamentos de nossa cidade, localizada onde hoje é o Botafogo Praia Shopping. E como era o único Papai Noel a aparecer na cidade, era mais fácil acreditar que era ele mesmo, de verdade verdadeira, vindo assuntar, ou melhor, conferir com certa antecedência, o que seus filhos natalinos iriam querer que ele trouxesse na noite mágica.

Rumo à Sears, então, eu, que morava na Tijuca. Viagem longa e ansiosa até Botafogo, zona sul, outro lado da cidade. A Sears era um encanto para os olhos infantis. Loja grande de teto alto demais para uma menina de 4 anos. Portentosa. Logo no primeiro andar, bem lá no fundo, enfim, Papai Noel. Estava ali, sentado, todo risonho e simpático, com suas barbas brancas de seda a festejar paciente e carinhosamente cada pequenino ou pequenina que viesse sussurrar, em seu colo, seus desejos ansiados, muitas vezes, durante todo o ano.

Eu nunca tinha visto Papai Noel e nunca mais o vi assim, tão de perto, de verdade, único na cidade, só para mim. Era tão real que me levou a ter coragem de me aproximar, um pouco envergonhada, mas convicta.

Eu tinha ensaiado por dias a frase escolhida para o momento especial, a pergunta esperada, a resposta pronta.

Aproximei-me devagar, como quem não quer nada, olhos fitos em sua bondade, seu sorriso doce, seu olhar acolhedor. Lembro-me do beijo acompanhado do roçar macio dos pelos sedosos de sua barba branquinha. Lembro-me de sua voz baixa, calma, tranqüila, suave:

- Que linda menina temos aqui. Qual o seu nome?

Fui surpreendida pela pergunta inesperada. Meu pedido entalado na garganta, decorado dias sem conta. Tinha medo de perder o fio de minha meada, ser enrolada por outros brinquedos. Eu queria por que queria realizar o meu desejo e estava concentrada nisso. Qualquer outra pergunta poderia desviar meu palpitante coração infantil da resposta trazida na ponta da língua. Engoli o fôlego e respondi rápido:

- Eulalia

- Que lindo nome!


Lindo nome. Eu gostava dele, desde que me entendia por gente e o bom velhinho o achava lindo, tão lindo quanto eu mesma achava. Embora tensa, lembro-me de que me senti mais segura e satisfeita. Sorri. Mas, na verdade, o que eu queria mesmo era destravar minha ansiedade e fazer meu pedido.

- Você se comportou bem o ano todo?

Ora bolas, ele era Papai Noel, aquele que vê tudo lá do Polo Norte... ele devia estar cansado de saber que eu era uma santa criatura! Por que tanta enrolação? Acenei rápida com a cabeça. Mas o bom velhinho, com sua falta total de pressa virou-se para minha mãe que espreitava um pouco afastada:

- Ela foi mesmo uma boa menina?

Minha cabeça parecia que ia dar um nó. O velhinho que de tudo sabia, ainda tinha de ter o testemunho da minha mãe? Estava fora de dúvida que eu merecia meu presente! Minha mãe acenou que sim. Pareceu, enfim, que estava convencido. Esperava ansiosa pelo clímax.

- Bem, então, o que você deseja ganhar na noite de Natal?

A tal dúvida sobre a onisciência ensaiou atrapalhar minha concentração, e lembro-me que tive vontade de dizer ao bom velhinho que tudo via e, portanto, que tudo devia saber sobre as crianças, que ele deveria ler, sem esforço, o desejo embutido na alma de cada uma em todo o mundo! Mas não era hora de colocar nada em discussão e, já que eu tinha idade suficiente para falar por mim mesma, não era ali que eu iria perder a oportunidade de externar meu desejo em sua presença e nem questionar nadinha. De jeito nenhum.

- Uma lapiseira.

- Uma lapiseira? Só uma lapiseira? Você não quer uma boneca? Algo mais?

- Não. Eu quero uma lapiseira. Uma... lapiseira... azul...

- Uma lapiseira azul... hum... você já sabe ler e escrever?

- Não, mas vou começar a aprender depressa!

- E o que você vai fazer com uma lapiseira azul?

- Vou escrever, vou escrever muito! Acho que vai ser a coisa que eu mais vou gostar de fazer na minha vida.

- Muito bem... então, se você for realmente uma boa menina até o Natal, terá sua lapiseira azul. Tem certeza de que não quer uma boneca também? Uma pequenina...


O velhinho, por mais doce que fosse, estava me deixando um pouco nervosa. Eu tinha um medaço que ele achasse uma boneca melhor do que uma lapiseira e acabasse me dando uma boneca em vez de minha tão cobiçada lapiseira. Eu queria uma lapiseira azul!

- Não, eu já tenho uma boneca... eu tenho até duas. O que eu quero mesmo é uma lapiseira azul!...

Ganhei a lapiseira azul. Guardo em algum lugar muito especial de minha mente o quanto essa lapiseira me acompanhou. Esteve em meus estojos escolares por muitos anos, mesmo quando já não mais escrevia, pois, naquela época, as lapiseiras enferrujavam, envelheciam e emperravam.

Foi com a minha lapiseira azul que me senti, pela primeira vez, dona do papel, solene, como quem alcança uma caneta tinteiro Parker antes da puberdade. Os que são da minha época e que chegaram a ganhar canetas tinteiro sabem o que significa...

Minha doce e querida lapiseira azul. Sim, querida, através de você eu já sabia, desde então, que escrever seria uma de minhas mais importantes responsabilidades acadêmicas e que seria, também, um de meus mais deliciosos e terapêuticos passatempos.

sábado, 17 de dezembro de 2011

CRIS


Cristina apareceu na minha vida num momento delicado. Tínhamos nos esbarrado em congressos, mas eu sou mesmo um desastre no que se refere a guardar fisionomias. Para você ter idéia, já passei algumas vezes direto por conhecidos bem conhecidos, até por vizinhos. Parece descaso, mas não é mesmo. Já avisava aos meus alunos, no primeiro dia de aula. "Se eu passar sem cumprimentar, não se aborreçam, por favor. Sou cegueta de fisionomia". Além de muito distraída quando ando na rua, sou mesmo uma negação nesse item.

Colegas profissionais de congresso, jamais fizeram exceção. E foi assim que topei com Cris, em plena cidade do Porto, num congresso internacional de Linguistica. Passei direto por ela, claro, e se ela não me travasse o passo, ficaria por isso mesmo. Felizmente, isso não aconteceu, pois foi o início de nossa estreita amizade, que permanece até hoje.

Cris mora em São Paulo e eu no Rio. Mas o milagre da internet faz com que saibamos mais uma da vida da outra do que a maioria de nossos outros amigos que convivem conosco, em nossas cidades. É que nos escrevemos quase todos os dias!

Mas nossa amizade, na verdade, começou meio atropelada. É que coincidiu com meu encontro com um dos casos amorosos mais gostosos da minha vida, que você já conhece, se leu o conto “o gabonês”. Pois então: estar no congresso era ficar ali apenas para as palestras que interessavam. Fora isso, dávamos um jeito de sumirmos, os dois, para curtirmos o tempo livre juntos.

De vez em quando, esbarrava em Cris, que me convidava para almoçar, sairmos juntas. Evidentemente, não tinha com ela a mesma intimidade que tenho hoje e não me sentia à vontade de apenas dizer que meu tempo já estava todo ocupado com uma pessoa muito especial. Assim, resumi nosso contato ao mínimo, educada e formalmente, mas, na verdade, o que eu estava fazendo era fugir de encontra-la.

Não me lembro muito bem como (Cris, com certeza, com sua memória de elefante, saberia descrever passo a passo!), a vida fez com que nos encontrássemos, no Brasil, em outros congressos e nosso contato foi sempre muito ameno e cordial. Passei também a reconhece-la mais e, conseguia - embora raramente, confesso - falar com ela, antes que ela falasse comigo. Ela não sabia, mas reconhece-la, no meio de tanta gente, para mim, já era um fato de destaque para meu apreço pessoal, já que minha memória fisionômica é mesmo um desastre.

O fato é que, um dia, resolvemos almoçar juntas. Tínhamos, então, mais intimidade. Nossa forma de pensar sobre aspectos lingüísticos e educacionais é muito parecida e essa companheirice começou a fazer-se cada vez mais evidente nos encontros, simpósios e congresso. Nesse almoço, estávamos falando exatamente sobre isso, quando ela me sapecou uma pergunta bem em cheio. E Cris é Cris! E esta é uma das razões por que gosto dela, para citar apenas essa, é claro. Nesse almoço, ela foi direta e simples:

- Você se lembra de nosso encontro no Porto?

- Não muito bem.

- Tive a impressão de que você não ia com a minha cara. Me evitou o tempo todo. Tentava marcar uma coisa com você, mas você estava sempre desconversando. É engraçado como agora estamos sempre juntas.


Não pude me conter. Dei uma boa risada.

- Cris, você não vai acreditar. Mas é que eu estava de caso com um congressista francês, do Gabão. Fugia de tudo para conseguir ficar só com ele!

- Ora bolas, por que você não me disse logo? E eu achando que você não queria conversa comigo!

- Não queria mesmo, mas era por isso!


Um ano depois, mais ou menos, nos encontramos em Lisboa, para outro congresso. Desta vez, no entanto, sabíamos que nos encontraríamos lá. Mas, logo ao ver-me, Cris perguntou:

- Você está de caso com alguém?

Soltei outra bela risada.

- Não querida, acabei de chegar. Mas dessa vez, juro, se acontecer, você será a primeira a saber.

- Ok, assim eu sei por que você some.


Não conheci ninguém. Aliás, nunca estou deliberadamente a procura de alguém quando viajo. É que, às vezes, acontece...

O fato é que nós duas nos divertimos a valer. Cris tem um faro especial para descobrir lugares interessantes, restaurantes especiais que servem ao nosso delicado paladar. É também dessas companheiras de histórias infindáveis. Se não nos dermos conta, atravessamos a noite. Mas é que queremos aproveitar bem o dia seguinte e ficamos nos vigiando, para dormirmos razoavelmente cedo.

Aliás, o conto dessa semana é uma homenagem a Cris. Veio de São Paulo para passar quatro dias comigo aqui no Rio. Que delícia! Enquanto ela se prepara para dormir, meus dedos inquietos vieram escrever esse conto, para postar amanhã. Uma surpresa, para que ela leia, ainda aqui, ao acordar. Já que ela não perde nenhum dos meus contos, este a surpreenderá.

Haverá outras oportunidades, em que poderei contar algumas de nossas façanhas conjuntas. Por ora, queria apenas fazer-lhe este mimo, uma homenagem a sua visita, coisa rara, mas querida.

sábado, 10 de dezembro de 2011

TORTURA CHINESA



Decididamente, temos de tomar um cuidado redobrado com a escolha de médicos.

Foi-se o tempo, chi... foi-se há muito o tempo, o delicioso e insubstituível tempo do médico da família. Aquele que conhecia a todos e era chamado de tio pelas crianças da casa. Mas não dá para saudosismos... a saída é buscar e buscar, até achar a tal agulha no palheiro, o profissional cuidadoso e competente que entenda o nosso organismo. O problema é que de bons clínicos gerais estamos meio falidos... e, como a bola da vez é a “especialidade clínica”, o jeito é buscar essas agulhas nas tais especialidades.

Por falar em “agulhas”, gosto muito de acupuntura. Como terapeuta complementar, a observação parece óbvia. Mas é que essas agulhas, colocadas nos lugares certos, realmente nos colocam no prumo e, invisivelmente, nos deixam saudáveis a maior parte da vida. A questão é achar o profissional certo.

Se o nariz é bom, a gente acaba acertando, mas, antes disso, estamos expostos a cada armadilha!...

Por razões da vida, eu tinha perdido o meu e comecei a procurar outro, do jeito que todos conhecemos: por indicação e... por tentativa e erro.

Entre os que busquei, destaco um chinês legítimo. Médico e, segundo me disseram, muito conceituado. Quando cheguei lá, constatei que o homem quase não falava português, mas... se fosse dos bons, meus dotes lingüísticos acabariam por contornar a situação.

A anamnese foi rápida, acho até que pela dificuldade de comunicação. Na verdade, um bom acupunturista descobre o que você é pelo tato, pela leitura da energia nos pulsos. Acostumada a isso, já os tinha em cima da mesa. Disse-lhe que não tinha nenhuma queixa específica, mas que buscara a acupuntura como suporte para amenizar minha pressão alta dos olhos, aliás, um problema hereditário: meu pai tinha glaucoma.

Minha pressão era alta, mas não exigia maiores cuidados, apenas atenção. Ainda estava no limite de não precisar medicação. Mas a idade avançava e como já estava na minha década de 40, a tendência a subir começava a se fazer sentir. Vez por outra, o oculista me pegava com ela ligeiramente mais alta. Já estava passando do limite e ele já apontava para a possibilidade de entrar no colírio. Disse ao chinês, portanto, que, por causa dos efeitos colaterais da medicação, estava procurando um jeito de baixar a pressão, se fosse possível.

O médico tinha aquela aparência firme de quem sabe o que está fazendo e de quem não gosta de dar muitas explicações. Aliás, de não ouvir também muitas perguntas. Isso, por si só já me desagradou um pouco, mas, como ele era chinês...

Desde a primeira sessão, percebi o desastre: ele impôs um ar condicionado às alturas – melhor dizendo, às baixuras - e ao lhe pedir que aumentasse a temperatura ou me desse um abrigo, ele apenas retrucou que era indispensável deixar como estava e, sobretudo, manter os pés descobertos. Colocou um finíssimo lençol por cima de mim (com os pés descobertos!), sapecou minhas orelhas com um monte de agulhas e escafedeu-se. Eu literalmente congelei. Minhas orelhas doíam horrores! Eu nunca tinha tido uma sessão de acupuntura com tanta dor. Se resolvesse o problema dos olhos, com certeza, sairia com dor de garganta. Mas ele era chinês, da terra onde nasceu a acupuntura. Agüentei firme. Firme até o pré-congelamento, mas agüentei.

Meia hora depois, ele entrou na sala, eu provavelmente azul de frio e tremendo dos pés à cabeça. Disse-lhe isso e ouvi como única resposta que ele sabia o que estava fazendo e que, provavelmente, com o tratamento, dentro de um mês, mais ou menos, eu estaria com pressão 12 por 12, super normalizada, pois ele já tratara muitas pessoas assim, com excelentes resultados.

Voltei para casa com esta última frase gravada em minha mente e decidi ficar por um mês para ver se teria resultado. Valeria a pena suportar o que comecei a intitular de tortura chinesa, que era, literalmente, o que acontecia.

Um mês depois, corri para o oftalmologista e qual não foi a minha surpresa: a pressão que sempre estivera no limite de 20, tinha subido abruptamente para 25!

Saí com a receita do colírio e uma raiva incontida! Voltei ao chinês para lhe dar a notícia e apenas ouvi, numa voz de poucos amigos:

- É, acho que, no seu caso, será preciso usar colírio.

- Mas eu não precisava usar, até que cheguei aqui!


Ele apenas respondeu:

- É, se não precisava, passou a precisar.

Eu não tinha nem como retrucar, pois como e onde teria argumentos suficientes para processá-lo? Também não dava para avançar no seu pescoço: ele era bem mais alto e mais forte do que eu...

Foi assim que me meti com um colírio e seus efeitos colaterais. Passei assim muitos anos, até achar as pessoas certas, tanto em acupuntura, como em oftalmologia. Hoje, finalmente, tenho os dois, bons profissionais: um médico acupunturista, que aquece a sala, nos dias de inverno e me cobre com um cobertorzinho maneiro, para que eu me sinta num estado pré-celestial. Achei, também, uma oftalmologista que, de brinde, é médica homeopata das boas, que junta ao tratamento uns dois ou três tabletinhos, que tomo diariamente.

E tem o Reiki, florais e outras coisas que a maioria das pessoas chamaria de “místicas”. Na verdade, eu as considero terapias complementares.

O fato é que minha pressão baixou, depois de quase dez anos de escravidão: agora sustento 16 por 16, muito menos do que tinha, quando era jovem.

O que aprendi com tudo isso e o que me fez escrever este conto, foi, na verdade, o convívio com essa experiência e, também, com as incontáveis histórias de maus atendimentos clínicos que, muitas vezes, tenho ouvido, diariamente, de meus clientes de Reiki e florais. Só nesta semana, por exemplo, recebi dois casos exacerbados como este meu.

Não dispenso o atendimento clínico em quaisquer dos casos, pois sei que as terapias complementares (Reiki, etc.), como o próprio nome diz, são “complementares”. Mas as pessoas não precisam passar por torturas chinesas, por causa disso. E muito menos serem mal atendidas, como eu fui. Menos ainda, saírem pior do que entraram.

Aprendi que, ao primeiro sinal de descontentamento bem fundamentado, devemos mudar. Aprendi a desconfiar da frase “sei o que estou fazendo”, quando eu não sei se tenho certeza disso. Principalmente, aprendi que quem tem de saber o que está fazendo somos nós, não eles.

A tortura chinesa fez um mal quase irrecuperável aos meus olhos físicos, mas aguçou meu olhar interior. Passei a enxergar melhor, a buscar melhor, a escolher melhor.

Quem sabe, minha experiência possa inspirar você também...

sábado, 3 de dezembro de 2011

O QUEIJO


Passei anos de minha vida esperando ir a Paris. Na verdade, acho que começou no dia em que me dei conta de que Paris existia. Sem saber explicar racionalmente por que, algo indescritível fala francês dentro de mim desde que me conheço por gente.

Em 1975 realizei meu sonho pela primeira vez. Digo primeira vez, pois o sonho se renova a cada vez que ponho os pés lá. A última foi em 2001 e, se demorar muito mais, quem sabe eu tenha um treco.

Mas voltemos a 1975. Quatro dias apenas, mas quatro dias vividos com quase volúpia. Respirava cada detalhe por dentro e por fora, meus olhos encharcados de luz e sonho.


A cidade, a todo momento, registrava o descompassado ritmo do meu coração. Paris, afinal, fala por si mesma. Não há como descrevê-la. Não há como dizer qual lugar é mais intenso do que outro. Tenho pensado nela por esses dias... quem sabe, hora de fazer uma loucura... uma saudável loucura... vou começar a tramar melhor isso.

Mas hoje vim para casa com um queijo tipo Camemberg nas mãos. Me deu saudades do gosto e, por extensão, da lembrança de queijos e vinhos... por associação... Torre Eiffel. A memória é fantástica e nos enreda por cheiros ou gostos já vividos. É como um raio de luz que abre um espaço em recordações escondidas. Mas desta vez, voltei para casa inquieta e só consegui me sentir acomodada quando meus dedos começaram a digitar essa lembrança.

Torre Eiffel, depois de uma manhã inteira de muita caminhada. Um percurso de muitos quilômetros de encantamento e as pernas pediam repouso. Uma fila imensa aguardava os visitantes. Entrei nela e inventei de esquecer que minhas pernas existiam. Por um bom tempo, meu corpo resumiu-se aos meus olhos que filmavam, centímetro por centímetro, aquela harmoniosa ferragem engendrada em forma de Torre.



Quantas e quantas vezes eu a tinha visto apenas corporificada pelo papel de fotos e postais. Mas estava ali, a minha frente, mais um precioso tesouro para os olhos do meu coração.

Subir ao seu topo significaria para mim conquistar a cidade, fincar minha bandeira no cume e dizer: “Paris, no teu topo, aqui estou eu!” E faria isso. Poucos passos me separavam dessa conquista.

Foi quando percebi que o avançado da hora exigia cuidados alimentares. Claro, não abri mão de almoçar lá em cima. A subida deu-se harmoniosa só no que tocava ao bondinho, que ganhava as alturas suave e firme.


Meu coração é que subia aos trancos, em trilhos internos desencontrados, talvez um pouco enferrujados por tantos anos de espera. Meus olhos precisavam de lubrificantes, pois negavam-se a piscar. Até hoje, sinto as sensações físicas esquisitas do momento, contrastando com minha alma em festa.

Chegamos ao segundo, dos três andares que compõem a estrutura. A vista maravilhosa era, para mim, o ponto central da festa, mas meu ex-marido me puxava impaciente para o restaurante. Entramos. Meu delicadíssimo estômago pediu o prato mais simples que existia. Meu ex, ao contrário, boa boca, pediu o que encontrou de mais sofisticado. Muito justo: em terra de franceses, seja francês.

Colesterol à parte, adoro queijo! Ao final da refeição, portanto, me animei a participar com ele do ritual do prato de queijos. O garçon, como todo francês que se preza, trouxe, vaidoso, o que havia de melhor em Paris. Cuidadosa, pedi o queijo mais simples que encontrei. Ele, ao contrário, para honrar a festa, solicitou que o garçon apontasse o que seria recomendado. Não me lembro que queijo era, mas a aparência era das mais “sofisticadas”, para não dizer, por puro respeito, das “mais esquisitas”. Mas foi esse mesmo que ele escolheu e eu tratei de fixar minha atenção apenas para a simplicidade atraente do meu prato.

O queijo era tão magnífico que me esqueci do que estava à volta. Por isso levei algum tempo para me dar conta do que acontecia ao meu companheiro de jornada. Quando o fiz, notei que ele estava congelado, como se fosse uma estátua. Apenas olhava para mim, sem mexer um músculo. Sua expressão era, no mínimo, muito engraçada. Notei que seu prato havia sido tocado, mas eu não podia imaginar o que ele sentia. Estava adorando o que tinha em sua boca ou detestando? Ele não se mexia.

- O que foi?

Ele, mudo, olhos fitos em mim, sem mexer um músculo.

- Bom demais?

Ele quieto.

- Ruim demais?

Ele acenou muito ligeiramente com a cabeça.

- Engole de uma vez!

Ele quieto, olhando para mim.

- Não pode ser tão ruim assim.

Ele acenava que sim.

- Vai ao banheiro e joga fora.

Ele não se movia. Olhei-o, incrédula:

- Não é possível.

Disse isso e, discretamente, avancei com meu garfo e peguei um tiquinho de nada do queijo dele, pois não queria me arriscar. Experimentei. Imediatamente senti o mesmo congelamento que percebera ao fitar meu companheiro. Não era ruim. Era tão insuportavelmente intragável que me senti a última das francesas. Os músculos de minha boca reagiram imediatamente, a possibilidade de engolir não existia. Minha garganta trancou. A agudeza do sabor agredia o meu íntimo. O impulso era o de descarta-lo imediatamente. Não consegui engolir, mas, no meu caso, não me apertei. Me levantei e fui ao toalete, joguei o tal tiquinho fora e lavei bem minha boca. E o pior: uma crise de riso me invadia. Explodia em mim, a cada segundo que me lembrava da expressão inusitada do semblante de meu comparsa. Queria sentir pena, mas não conseguia!

Mas precisava voltar. Afinal, eu tinha um queijo maravilhoso em meu prato para honrar a minha prudente covardia na escolha, uma escolha talvez considerada desastrosa para um gosto francês mais apurado. Para mim, no entanto, era o queijo mais simples e, ao mesmo tempo, o mais delicioso que jamais provara.

Ao voltar, para minha surpresa, não havia mais queijo nenhum no prato de meu ex.

- Você comeu?

- Não.


Ele conseguira colocar o queijo num pedaço de papel que tinha no bolso para descarta-lo quando saíssemos. É óbvio que sentiu uma vergonha inusitada de deixa-lo no prato, depois de ter sido tão elogiado pelo garçon, por sua escolha.

A parte ruim é que dividi meu maravilhoso queijo com ele. Mas, tudo bem... ninguém conseguiria sair com aquele gosto horrível na boca. Só um francês, talvez, desses que comem daqueles queijos desde pequenininho...

Depois dessa experiência, a tarde voltou-se para o puro encantamento de fazer com que minha alma alçasse vôo rumo ao terceiro andar e vislumbrasse a bela, magnífica, indescritível Paris.


Os dias seguintes também me brindaram à altura de todo o sonho esperado por tantos anos. Lembro-me, vez ou outra, a troco de tudo ou de nada, de tantos recantos, aventuras e deslumbramentos.

Mas toda vez que compro um queijo francês não posso deixar de me lembrar do restaurante da Torre.


Preciso voltar lá. Mas, com certeza, na hora do prato de queijos, meu pedido se repetirá certo, simples e fagueiro, sem cair na conversa de nenhum glamoroso garçon!...