sábado, 29 de outubro de 2011

CONTO UNIVERSAL


Encontrar o desamor - desarmá-lo.

(setembro de 1976)

domingo, 23 de outubro de 2011

UMA FLOR NO DESERTO


Noite dessas voltava a pé para casa. Costumo caminhar tanto na ida quanto na volta, já que apenas umas 15 quadras separam meu apto do consultório. Pois então: geralmente, venho pela Nossa Senhora de Copacabana, principalmente à noite, pois é mais iluminada que a Barata Ribeiro. Mas eram apenas em torno de 21 horas e algo me puxava para cruzar a rua, pegar a Barata Ribeiro e vencer o resto do percurso por aliMeni, passando pela estação do metrô.

Não discuto com esses impulsos. Se existem, devem ser ouvidos. E foi assim que vinha caminhando pensativa, já esquecida de meu desvio de rota. Tudo por aqui é tão familiar que já nem me dou conta.

Na frente da estação do metrô da Cardeal Arco Verde, tem uma casa de lanches. Para ser franca, na minha distração, nunca me tinha dado conta disso. Mas naquela noite, um vulto sentado à beira da lanchonete, esticou a mão pedindo uns trocados para um lanche.

Não dou dinheiro. Não adianta. Nem que tenha de me desviar do caminho para comprar alguma coisa. Olhei para o menino. Perguntei se queria lanchar. Disse que sim e levantou-se. Só então vi que o menino não era uma criança, mas um rapazinho. Olhos penetrantes, olhando de frente, mas algo não desmentia a suavidade de sua expressão. Convidei-o a entrar na lanchonete comigo. Arredou pé:

- Não posso entrar ali, os seguranças não deixam.

Minha cidadania transbordou pelos poros.

- É ruim de ele te barrar comigo. Vem.

Entrei enfrentando os preconceitos sociais. Um segurança se aproximou. Apenas olhei para ele e murmurei:

- Ele está comigo.

Entendo o cuidado de quem foi contratado para isso. Entendo que há excessos. Só não entendo porque isso me machuca tanto. Diferenças sociais exacerbadas.

A lanchonete é dessas de uma rede extensa e bem conhecida, que serve através de pedidos no balcão, pagamos, pegamos as bandejas e nos dirigimos às mesas.

Pedi que o jovem escolhesse o que queria.

- Qualquer coisa, tia, a senhora escolhe.

- Não. Pode escolher. Um sanduíche e um suco a sua vontade.

Pediu um suco de laranja e um sanduíche de queijo. Eu não quis nada. Mas estaria ali para acompanhá-lo. Não sei por que pedi que se sentasse à mesa. Eu levaria o lanche para lá tão logo estivesse pronto. Havia deixado, descuidadamente, minha bolsa na cadeira da mesa. A lanchonete estava vazia àquela hora. Havia apenas uma mesa preenchida, bem mais ao canto. Não me toquei que o menino poderia pegar a bolsa e sair correndo. Esta idéia só me surgiu quando, pelo espelho, vi a imagem do menino sentado e, na cadeira ao lado, minha bolsa.

Seria muito indelicado eu ir pegar a bolsa. Agüentei firme, observando o jovem pelo espelho. Qualquer ato suspeito, eu estaria ali, atenta para dar o alarme ao segurança. Mas o menino não esboçava qualquer tentativa suspeita. Apenas havia me obedecido e sentara-se, a minha espera.

Levei a bandeja e coloquei a sua frente. Ele pegou o guardanapo com cuidado e separou uma das faces do sanduiche. Experimentou o suco. Agradeceu com a cabeça.

A imagem de vê-lo educadamente alimentar-se, comendo com a boca fechada, olhar tranqüilo e doce em nada combinava com suas vestes de rua. Quem seria essa figurinha que me parecia ter saído de um conto de livro?

- Onde você mora?

- Perto da Cruz Vermelha, no centro da cidade.

- Com seus pais?

- Não, moro sozinho. Tenho esse barraco faz dois meses. Antes, morava na rua.

- Quantos anos você tem?

- Dezoito.

- Mora na rua desde quando?

- Desde os quatorze.

- Por que saiu de casa?

- Meu pai morreu. Levou um tiro da polícia. Era traficante, sabe... sei que estava errado, mas era um pai muito bom para mim. Jogava futebol comigo, até me botou no time da escola. Ele também era muito carinhoso com todos nós. Sei que ele estava errado, eu sei, mas eu amava muito meu pai mesmo assim.

- Mas você saiu de casa porque seu pai morreu? Não entendi... e sua mãe?

- Ah, foi por isso. Eu gosto muito da minha mãe, mas ela se juntou com outro traficante. Esse não é bom, tratava mal a gente. É um homem muito bruto, sem educação. Não sei como minha mãe se juntou com ele. Fugi de casa porque não agüentava esse homem. Ele me batia e me tratava muito mal. Daí, fugi. Peguei minha certidão de nascimento e fugi.

- Por que você se preocupou com sua certidão de nascimento?

- Ora, é a única maneira que eu tenho para provar que sou de bem. Meu documento. E ele vale tudo para mim. Agora que sou de maior vou tirar minha identidade e poder trabalhar sem o atravessador, direto na cooperativa.

- Cooperativa?

- É. Dos catadores de papel. Até agora eu cato, vendo para um que é da cooperativa e ele é que fica com a grana maior. Agora eu vou poder levar direto pra cooperativa. Mesmo assim, consegui juntar cento e cinquenta e com isso comprei o meu barraco. Já pensou quando eu puder trabalhar sozinho?

- Seu barraco?

- É. Custou centro e cinqüenta. Agora já tenho onde dormir. Lá até cozinho! Às vezes, faço até bife. E melhor ainda - como os barracos são de madeira e perto da Cruz Vermelha, eles vão derrubar tudo, pois periga incendiar a qualquer momento. Mas vão dar casa de tijolos lá em Mangaratiba para quem tiver documentos. Por isso é que vou tirar minha identidade logo. Eu quero a casa. Vou buscar minha mãe para morar comigo. Deus é bom. Nunca me desamparou.


“Deus nunca me desamparou”? Um menino que viveu jogado pelas ruas durante cinco anos me dizia que era muito agradecido a Deus! "Ele nunca o havia desamparado"! Decididamente, aquele jovem me desconcertava. Costumamos reclamar da vida por tão pouco...

- E como é sua vida agora?

- Venho para cá, trabalho catando papel, entrego para o tal da cooperativa e fico por aqui, até voltar para casa.

- E antes, como era?

- Era igual, só que tinha de ficar na rua. Quando o tempo está bom, tudo bem, não tem importância. Mas quando chove e faz frio é muito ruim.

- O que era pior na vida da rua para você?

- Chover e fazer frio. O resto era bom. Só sinto muita saudade da minha mãe. A comida dela dá muita saudade. As coisas também, ir à escola, jogar bola de tarde, dormir quentinho. Era muito bom.

- Você vê sua mãe de vez em quando?

- Nunca mais vi, desde o dia que fugi.

- E como sabe dela?

- Por minhas irmãs. Uma mora na Mangueira, casada, tem filhos. Às vezes, passo os fins de semana lá. O marido dela é legal. A outra mora numa casa de verdade, no Meier. Também tem filhos. Visito de vez em quando e pergunto da minha mãe.

- Sabe se sua mãe pergunta por você?

- Não sei, não pergunto. Mas vou buscar para morar comigo, logo que a prefeitura der notícias da minha casa de verdade. Mas não o homem que vive com ela. Só ela.

- Posso te dar um conselho? Você ouve e decide.

- Claro! Se Deus mandou a senhora hoje...


O menino me desconcertava a cada passo. Eu procurava conversar e saber das coisas como se fossem as mais naturais do mundo. Mas as respostas dele me desconcertavam...

- Primeiro você tira a identidade, depois você põe a casa no seu nome e só depois procura a sua mãe. Se você diz que esse homem não é bom, é possível que ele ainda tome a casa de você. Faça isso só quando estiver em segurança! E mesmo assim, se sua mãe escolheu viver com ele, você sabe que ela pode não querer ir com você sem ele.

- Bom, se for para ele ir, então ela não vai. Mas vou tentar, assim mesmo. Sinto muitas saudades dela. Vou então cuidar da casa no meu nome. Viu como Deus sempre chega na hora certa? Eu não tinha pensado nisso! Agradeço sempre a ele antes de dormir, todos os dias.

- De que religião você é?

- Não tenho religião, tia, mas Deus sabe que eu sei que ele existe e está sempre cuidando de mim.


Pronto, essa foi a tacada final. Eu tinha um verdadeiro herói, diante de mim. Pequeno, franzino, de olhos profundos, educado. Eu quase não acreditava no que estava vendo.

- Como era sua vida nas ruas, com seus amigos? Você tem amigos, não é?

- Tenho, eles são legais, mas tem coisas que eu fico sozinho.

- Como assim?

- Eles querem que eu experimente. Nunca experimentei. Sei que faz mal. Meu pai morreu por causa disso. Meu padrasto é mau homem e fugi de casa por causa disso. Não quero essa vida para mim. Assim, às vezes, tenho de agüentar o que eles dizem, que eu não tenho coragem, que sou frouxo porque não quero experimentar. Mas eu não ligo. Agora que tenho casa, vou para casa e agradeço a Deus por saber que isso não é para mim.


Será que eu estava vivendo o mundo real ou seria sonho?

- Tem outros meninos como você, que não querem se viciar? Usei o termo de propósito.

- Tem, mas são poucos. Vivem por aí, como eu. Prefiro me afastar. Agora o que eu quero é trabalhar, ganhar meu dinheiro e ter minha casa.

- E os estudos?

- Parei na quarta série. Até do futebol do colégio tive de sair. E não tem escola para quem está na rua. Eles forçam a gente a voltar para casa e para lá eu não volto, não adianta. Assim, fiquei sem escola.

- Você gostaria de estudar?

- Eu não sei. Acho que sim. Não pensei nisso. Quero trabalhar direto na cooperativa e ter minha casa primeiro, trazer minha mãe. Depois eu penso.

- Você quer tirar sua carteira amanhã? Podemos combinar para tirar o retrato.

- Não precisa. Tenho dinheiro guardado para o retrato. Vou ver isso essa semana. Não quero que derrubem o meu barraco comigo sem o documento. Sei que a certidão de nascimento não serve. Eu preciso de um número de identidade para preencher o papel.


Eu queria acompanhar a vida desse menino. No fundo, queria ver o seu esforço e seu sucesso. Queria ajuda-lo. Os meninos ficam por ali e, na minha insensatez, achei que o encontraria de novo. Assim, nem perguntei como encontrá-lo. Pensei que o veria nos dias seguintes, por ali, como os demais meninos, que fazem ponto nas ruas.

Nos despedimos. Ele me agradeceu muito pelo jantar. Assim, já iria direto para casa. Estava feliz, pois sabia que sua vida iria mudar.

Doce ingenuidade. Que certeza tinha esse menino de que reconquistaria a mãe, depois de cinco anos de afastamento, sem nunca ter procurado por ele. Seria provável? Minha mente duvidava, meu coração torcia para que sim. Vim assim para casa, também certa de que o veria mais vezes, talvez no dia seguinte. Até lá, planejaria como ajuda-lo.

Passei no mesmo horário muitas vezes, durante uns dois meses, pelo mesmo caminho. Mal virava a esquina que dava para a Praça Cardeal Arco Verde e meus olhos buscavam esperançosos pelo vulto sentado à beira da lanchonete. Mas... em vão. Nunca mais o vi... meu pequeno príncipe das ruas...

sábado, 15 de outubro de 2011

PRETINHA


Pretinha foi a gata que não tive.

Tudo começou com a minha intolerância de viver na casa do Humaitá, que você já conhece do conto “o galo”. Precisava voltar com urgência para o meu discreto e também silencioso recanto de Copacabana, a três quadras da praia, supermercado e farmácia a duas quadras, abertos 24 horas todos os dias e jornaleiro na esquina. Sem contar com o elevador que estava sempre funcionando! Meu querido apto que já me abrigara de 1978 a 1987! Era como voltar para casa. No Humaitá, sempre me sentira hóspede.

Excitada, portanto, pela mudança, como um bom filho que à casa torna, entrava e saía do edifício a toda hora, no afã de renovar o antigo ninho, por sinal destruído pelo inquilino. Como alguém consegue destruir um apto em um ano? Pois consegue.

Numas dessas idas e vindas me deparei com Pretinha. Novidade no prédio. Tinha sido trazida pelo porteiro Zé, o baiano, que você já deve conhecer do conto “o vigia”. Pois é, o Zé, amigo do Geraldo, nosso vigia noturno. Zé trouxera Pretinha da rua ou ela mesma teria adotado o prédio, ao ser alimentada com freqüência por ele. Foi ficando, ficando, cuidando dos ratos que visitam as lixeiras dos prédios de Copacabana. Começou a mostrar serviço e acabou sendo aceita como “funcionária”. Assim me contaram. Escusado dizer que não tinha nenhuma manchinha. Era totalmente negra, como lhe honrava o nome. Pêlo liso e curto. Lindinha. Olhei-a com o carinho de quem gosta de animais, mas não mais do que isso. Miou para mim, deu uma ligeira abanada de cauda. Em gatos, nunca sabemos o que essa abanada de cauda significa. Ou não sabia, até que nos conhecemos melhor.

Uma semana antes da mudança eu estava eufórica. Minhas idas e vindas se multiplicaram. Numa segunda-feira, bem cedo, vim trazer umas coisas para o apto. Pretinha estava estirada esquisitamente no tapete da portaria, bem na passagem dos transeuntes. Miava. Parecia ser de dor. Perguntei ao Zé.

- Está na hora de ter filhotes, respondeu. Está assim desde ontem.

- Levou ao veterinário?

- Levei, ele disse que demora mesmo e que ela sabe o que faz. É deixar.


Olhei para ela. Não estava com focinho de quem estava no domínio da situação. Muito pelo contrário. Para mim, parecia mais focinho de quem estava atravessando o caminho para ver se alguém conseguia entender a sua dor. Precisava de ajuda. Ademais, pelo que sei, gatas somem do mundo na hora de terem seus filhotes. Ninguém sabe onde se metem e se alguém descobre, mudam seus filhotes de lugar. Pretinha não parecia comportar-se desse modo. Miava muito. E alto. Não estava procurando ninho algum.

Não resisti. Liguei para André, veterinário de Neguinha, minha canária. Ele disse para levá-la lá imediatamente. Alguma coisa, com certeza, estava bem errada. Falei com o Zé, pois para todos os efeitos, ele era o “dono”. Coloquei-a numa caixa de papelão, levei-a para o carro. Seu olhar não resistiu, seu corpinho gordo não resistiu. Deixou-se levar. Deveria estar muito mal.

Tão logo cheguei à clínica foi diagnosticado o problema: os gatinhos jamais passariam por seu quadril estreito. Ele tinha uma parte da bacia entrada, provavelmente, por algum acidente de infância. A radiografia mostrava o primeiro gatinho preso, digamos, entalado na saída. Pude imaginar o sofrimento de horas sem fim!

Só com cesárea e aconselhamento de ligação de trompas. Ela não suportaria outra gravidez. Os filhinhos precisavam ser retirados o mais depressa possível. Eram cerca de duas horas da tarde. Eu já deveria estar na Universidade há tempo. Estava perdendo uma reunião. Aprovei o procedimento, mas precisava sair. André disse que não me preocupasse. Fosse trabalhar e a pegaria na volta.

- É meu dia de dar aula até as 22 horas!

- Não tem problema: deixo o enfermeiro na clínica esperando você voltar.


Santo André. Tudo certo. Pagamento feito, era dar uma última olhada no bichinho e sair. André estava acabando outro procedimento também grave e só poderia atendê-la em 20 minutos. Ok. Expliquei a ela, mais com todos os carinhos que podia encontrar do que com as palavras que ela não poderia entender. A cada contração, no entanto, desde que chegáramos à clínica, era no meu braço que suas patas dianteiras se agarravam, em angústia. Não pude deixá-la. Naquele momento, uma fêmea sentia a dor da outra. Não podia arredar pé. Ficamos, então, juntas, numa salinha de espera. O que eu falei a essa minha companheira de vida e o que o olhar desse bichinho me transmitia selou nossa amizade para sempre.

Finalmente, André veio buscá-la e fiquei ao seu lado até que fosse anestesiada, prometendo voltar para buscá-la. Fui trabalhar. Às 22h20min estava de volta. O enfermeiro abriu a porta tão logo toquei a campainha, dizendo dar graças aos deuses por minha chegada. Pretinha tinha tido cinco lindos filhotes. O que estava entalado também se salvara, mas era o mais fraquinho. O problema é que, tão logo acordara da anestesia, a gata nem olhava para os filhotes. E nem descansava. Ficara o tempo todo sentada na caixa, atenta, olhando para fora. Estava nervosa e inquieta.

Quando entrei, ela me viu, miou, encostou-se no fundo da caixa e adormeceu imediatamente. O enfermeiro disse que gatos são assim mesmo, principalmente quando estão fora de casa e conhecem o dono há muito tempo. Concluí, ali mesmo, que “muito tempo” era o tempo de sobra que tínhamos tido para nos tornarmos cúmplices. E isso me bastou para levá-la com carinho redobrado para casa.

Eu ainda estava morando na casa e não no prédio para onde me mudaria no sábado seguinte. Liguei para o Zé, porteiro. Para todos os efeitos, dono de Pretinha. Disse que estava tudo bem e que ela estava comigo. Avisei-o que era avô de cinco lindos bichaninhos. Disse também da cesárea e que era melhor ela ficar comigo por uns dias.

- Tudo bem professora.

O problema a enfrentar, no entanto, passou a ser outro. Entre mim e Pretinha ia tudo muito bem, mas ela simplesmente não reconhecia os filhotes como seus e se negava peremptoriamente a amamentá-los. Telefonei, de novo, para o André. Ele disse que, se até o dia seguinte ela não os alimentasse, que levasse toda a família lá. Isso era natural já que ela não tinha presenciado o nascimento dos filhotes e cuidado deles ao nascer.

Que drama! Cinco filhotes famintos e eu não sabia o que fazer. Lembrei-me, então, de minha cunhada, que morava perto e tinha um monte de gatos (para mim, mais de dois vira monte). Chamei-a e deixei-a a sós com Pretinha. Não sei o que ela fez, só sei que Pretinha começou a amamentar suas crias, para meu alívio. De brinde, ganhei ração para gatos e algumas instruções. Ela queria levar a gata para casa, apaixonada que é (ou era) por esses animais. Mas aí seria demais. Pretinha já significava mais do que uma simples gata para mim e tê-la sob meus cuidados passou a ser imprescindível. Sou boa cuidadora e, bem orientada, dou conta do recado. Até porque, a cada vez que eu me aproximava, todas as atenções de Pretinha se voltavam para mim.

Uma semana depois me mudei para o prédio. Minha primeira preocupação foi devolver minha amiguinha ao Zé, sã e salva com seus filhotes. Ele me ofereceu um. Não quis. Se você leu meus contos anteriores, se lembrará de que gosto tanto de animais que não posso vê-los presos. Não sob minha responsabilidade.

Pretinha passou a ser um marco em minha vida e, com certeza, eu na dela. Quando saía para trabalhar, se ela estivesse por ali, vinha correndo ao meu encontro e me acompanhava até o carro. Ao voltar da Universidade, no entanto, é que se dava nosso maior chamego. Ela me buscava no carro, me acompanhava até o elevador e era ali que brincávamos. Fazíamos muitos carinhos uma na outra e, a cada vez que eu ameaçava subir, ela miava como nunca, me prendendo por mais cinco minutos. Eu levava muito tempo até poder subir de verdade.

Todas as manhãs o capô do meu carro aparecia com marcas de patinhas. O Zé me dizia que era ali que Pretinha dormia todos os dias, depois de suas andanças pela cidade.

Pretinha morreu passados alguns anos. Provavelmente, de velhice, pois era muito bem cuidada por nós. O prédio a via com simpatia e ela não perturbava ninguém. Em meu coração, guardo a gratidão de ela ter-me ensinado a amar os gatos, bichanos que, até então, eu via com simpatia, mas certa distância. Aliás, no fundo, tenho certeza de que me ensinou muito mais do que isso.

Doce amiguinha... que saudades de você!!!

sábado, 8 de outubro de 2011

CONTO



Um elefante se pendurou
numa teia de aranha,
mas, quando viu que esta resistiu,
foi chamar outro elefante.

(e a aranha com seu fio
riscava o imenso vazio
no espaço de sua teia)

Dois elefantes se penduraram
numa teia de aranha,
mas, quando viram que esta resistia,
foram chamar outro elefante...

(e a aranha no seu frio
queria o imenso vazio
do abraço de sua teia)

Três elefantes se penduraram
numa teia de aranha,
mas, quando viram que esta resistia,
foram chamar outro elefante...

(e a aranha como um rio
pedia o imenso vazio
do leito de sua teia)

Quatro elefantes se penduraram
numa teia de aranha
e, enquanto viam que esta resistia,
a aranha veio e comeu todo mundo.

(Rio de Janeiro, julho de 1976)


sábado, 1 de outubro de 2011

O TERAPEUTA



Eu já o conhecia antes de “conhecê-lo” .

Começou comigo embirrada com ele. Tudo porque um doce e meigo amigo, que tinha sido meu aluno e orientando, já amado como filho, teve um treco. Hoje esse “menino” tem mais de quarenta anos e somos amigos desses que ficam um tempão sem se verem, mas quando se encontram rodam a noite filosofando sobre tudo e sobre nada, até cairem de sono, mas ninguém querendo ir embora. Quantas madrugadas e manhãs nos pegaram juntos...

Pois é... mas ele, ainda bem moço, teve um treco. Quem não tem dentre os que são, realmente, conscientes do mundo de hoje? Ele teve... e dos bravos. Sua esposa veio correndo me pedir para dar um jeito nele. Mas era fundo mesmo... acabou numa psicóloga que diagnosticou esquizofrenia e indicou um psiquiatra. Eu achava que ele podia ter tudo, menos esquizofrenia. Seria consciência do que estava se passando ou meu amor por ele? O fato é que caiu nas mãos de um psiquiatra.

Foi então que comecei a detestá-lo, mesmo sem o conhecer. Preconceito. Mas o homem, logo de princípio, garantiu que esquizofrênico ele não era. Menos mal. Meu amigo, mesmo com meu nariz meio virado, começou uma terapia com ele e acabou se empolgando pelo homem. Eu... muito cabreira, mas... se ele estava gostando...

Nas palavras do meu amigo, ele parecia estar mais para “terapeuta” do que para psiquiatra e isso temperava a análise...

Depois de cinco anos, meu amigo estava com banho de alma tomado e muito bem. Incrível. Invejável. Dei meu crédito, dei minha mão à palmatória.

Um ex-namorado teve uma depressão daquelas. Largou o analista que tinha e ficou perdido no mundo. Me procurou como quem procura uma tábua de salvação. Mandei pro homem. Ele se ajeitou e deve estar por aí, por esse mundão dos meus deuses. Parece que deu certo.

Uma amiga também pifou. Mandei pro homem. Está lá, até hoje e parece que está dando certo.

Eu, lá na minha vida de trabalhar com Reiki, Florais de Bach e aconselhamento. Volta e meia, quando via que o caso estava além do meu conhecimento, passei a indica-lo. Eu já tinha feito terapia, mas me afastara de meu terapeuta por razões éticas: ele deu um furo desses que não se dá, melhor nem comentar. Este, portanto, não servia. Fiquei meio sem luz e passei a ter esse outro, como referência. Ademais, era perto do meu consultório, o que também facilitava tudo para meus clientes.

Mas eu nunca o tinha visto ou falado com ele, sequer por telefone, e ficava imaginando que ele não deveria saber que tal Eulalia era essa que, de vez em quando, mandava alguém prá lá.

Um dia, um amigo que se mudou para o nordeste precisou de apoio terapêutico. De longe, eu não podia ajuda-lo. Não conhecia ninguém por lá. Que fazer? Me lembrei do homem. A saída estava ali. Peguei seu telefone e deixei um recado na secretária eletrônica. Ele retornou logo. Pedi o nome de um colega em Recife. Ele deu. Conversamos amigáveis por alguns momentos. Dois terapeutas, se conhecendo pela voz. Gostei do que ouvi, ou melhor, como ouvi.

Um ano depois, telefonei, de novo. Eu não estava bem, precisava de um apoio terapêutico. Mas... quem procurar? Depois do desastre do primeiro terapeuta, a coisa fica difícil. Pensei em procurá-lo, para que me indicasse alguém. Afinal, eu tinha mandado tanta gente lá que não sabia se ele me aceitaria como mais uma. Disse que queria encontra-lo ao vivo. Marcou para a mesma semana. Entrei no seu consultório, expus a situação. Ele, de pronto, disse que teria a indicação. O que eu tinha em mente?

- Eu queria você, mas acha que seria possível?

- Por que não? Afinal, você mandou tantas cobaias, antes, para ver se eu prestava...


Sorri da graça. No fundo, inconscientemente, foi o que eu fiz. Emendei numa terapia naquela mesma semana.

Que caminhos encontramos para nós mesmos... hoje rimos juntos da artimanha que urdi.

Aliás, ele faz aniversário depois de amanhã. Tim-tim!