sábado, 24 de setembro de 2011

COSME E DAMIÃO


1969. Virgínia apareceu na minha vida por conveniência. Estávamos, ambas, noivas de colegas de universidade e, por isso, fomos apresentadas numa dessas saídas de casais de namorados. O objetivo, no entanto, estava traçado. Eu estava em pleno vestibular para o curso de Letras, ela idem. Eu queria muito passar e fazer o curso, ela nem tanto. O pai e o noivo queriam vê-la formada em qualquer curso que intitulavam “decente”. O que ela queria fazer mesmo era Belas Artes, mas o pai não deixou: era considerado, por ele, curso de menos valia, que não faz o futuro de ninguém.

Assim, Virgínia parecia acomodar-se a qualquer curso e Português-Inglês pareceu ser uma boa opção. Já que não poderia fazer o que queria, qualquer coisa serviria. Mal sabia ela em que arapuca estava se metendo. Ocorre que o noivo me apresentou Virgínia, já sabendo de minha fama de cdf. Assim, quem sabe, garantindo a amizade, conseguiria prender sua namorada, digo, noiva ao curso, nem que fosse para me fazer companhia.

No primeiro encontro eu disse que não tinha a mínima vontade de fazer português-inglês. O que eu queria era literatura, cultura clássica. Ela queria a mesma universidade do noivo, eu queria outra instituição. Mas sua vontade era mesmo frouxa. Ali mesmo, tomando sorvete, ela decidiu mudar de curso e de universidade, desde que estudássemos para o vestibular juntas. Aceitei. Não sei por que, até hoje, mas aceitei. Prefiro estudar sozinha, rendo mais, mas... aceitei.

No fundo, pressentia que Virgínia mais me parecia estar querendo encontrar uma amiga para folguedos. O fato é que esse pequeno, mas fundamental deslize de ambos os lados, ela por mudar de curso e de universidade e eu, por aceitar estudarmos juntas, nos rendeu uma amizade que persiste até hoje.

Para você ter uma idéia, ambas nos casamos no mesmo ano e por pouco, não nos separamos no mesmo ano. Pura coincidência, mas aconteceu. Somos madrinhas uma da outra.



Nossos ex nunca mais se viram, eles que foram os responsáveis por nosso encontro. Nós, no entanto, continuamos amigas até hoje.

Eu passei no vestibular entre as primeiras, Virgínia, sorridente e sem muito esforço, também passou. Para ela, era coisa só de passar. Para mim, tinha de estar entre as primeiras, pois custaria uma bolsa de estudos, conquistada a ferro e fogo.

A foto é um flagrante em plena prova de vestibular, tirada por Anita, uma colega: Virgínia em pé, pronta para entregar a prova de inglês, enquanto eu, no centro da foto, ao fundo, cheia de livros, lutando por uma boa classificação. Naquela época, as provas eram descritivas e a prova de língua instrumental exigia uma tradução.


Fomos ficando juntas, apesar de nossas incríveis diferenças. Mas, talvez, justamente pelas diferenças, nos ajustávamos. Eu muito séria, ela muito brincalhona.

Chegávamos juntas. Ela passava pela minha casa para me buscar, eu sonolenta por ter estudado até altas horas da madrugada, após um trabalho estressante do dia anterior, muitas vezes chegando em casa às 22 horas, sem sequer ter jantado. Quantas vezes ela me tirou da cama, com piadas e brincadeiras, faltando apenas 15 minutos para o início da primeira aula! Me ajudava a colocar a roupa e eu acabava de acordar percorrendo a única quadra que, felizmente, nos separava da universidade.

- Você viu os olhos daquele moço, que lindos?

- Que moço
?

Eu estava zonza, ela espertíssima, sempre!

Saíamos juntas. Ela para casa, eu para dar minhas aulas particulares, que, felizmente, eram muitas: meu sustento. Uma vez por semana, eu ia para sua casa, almoçávamos e fazíamos nossos trabalhos em grupo: Virgínia, Luzia e eu. Nesses dias, eu saboreava a deliciosíssima comida da vovó Laura. Doce criatura, que me dizia sempre:

- Faça essa menina estudar... só quero ver essa menina formada!

Como se precisasse. Para Virgínia, a universidade, a meu ver, já passara a ser um divertimento. Fazer sem obrigação e fazer sem gosto era visto por ela como um passatempo. Eu ralando, ela rindo, esperando o curso acabar para se casar.

Andávamos coladas para cima e para baixo, nas escadarias, na cantina, na sala, pelos corredores. Onde estava a corda, estava a caçamba. Bem depressa nos puseram os apelidos de Cosme e Damião. Nasceu assim, espontaneamente, por conta dos colegas que nos imaginavam, talvez, amigas de infância.

Virgínia colava como ninguém. Sentávamos juntas. Ela lia minhas respostas, fazia algumas observações e críticas, depois inventava lá o seu texto, com uma classe e estilo que jamais pareceria tirada de outra prova, mas de livros eruditos. Inteligentíssima. Risonha. Engraçada. Feliz. Nossas notas sempre emparelhadas. Eu gostava da idéia, pois Virgínia dava conta das pesquisas que eu não tinha tempo de fazer, por conta do excesso de trabalho.

Não posso me esquecer de Virgínia assistindo às aulas. Atenta, pois não queria estudar depois, não perdia uma anotação. Lembro-me, especialmente, das aulas de fonética, do professor Dinamérico. Sentávamos na primeira fileira e Virgínia prestava atenção redobrada. Conteúdo difícil. Por muitas vezes, minha companheira, sem cerimônia, interrompia:

- Desculpe, professor, não entendi.

Aliás, ela e toda a turma, pois ele era excelente professor, mas quando ficava enrolado, não havia quem desenrolasse. O professor repetia a explicação e Virgínia o interrompia, sempre, de novo, sem a menor cerimônia:

- Desculpe, professor, mas... sabe... meu problema não é de surdez. Se o senhor repetir do mesmo jeito, vou continuar não entendendo. Eu preciso que o senhor explique de outro jeito, de um jeito que eu entenda.

Isso, dito assim, com a simplicidade de uma anja. Não havia quem conseguisse se aborrecer com seus comentários. Nem o professor Dinamérico. E lá ia ele, mais paciente, repetindo a explicação de um jeito diferente para que ela, e, na verdade, todos nós pudéssemos entender.

Luzia era a terceira desse grupo. Chamara a atenção de Virgínia desde o primeiro dia. Era a única cega da turma e Virginia, com seu coração generoso, logo percebeu que precisaria de ajuda para as anotações e infra-estrutura do convívio universitário. Luzia foi assim, incorporada aos nossos trabalhos formando um dos grupos de estudos da turma. Você se lembrará dela, se leu o conto
"Luzia".

Para desespero de Marco, único varão da turma, Virgínia tratava Luzia com requintes de “igualdade”. Puxava-a de um lado para outro, subindo as escadas depressa:

- Vamos, Luzia, a aula já vai começar!

E Luzia lá, acompanhando o ritmo aos tropeços, no começo... mas... com a bengala dobrável já enfiada na bolsa e confiando totalmente nas chamadas loucuras de Virgínia, apenas se apoiando em seu braço e andando rápida para lá e para cá. Nunca vi uma mudança de comportamento tão rápida em uma pessoa com necessidades especiais.

Lembro-me, de modo especial, de um dia. Luzia entrou na sala rindo:

- Meninas, vocês não sabem o que me aconteceu hoje! O guarda de trânsito que fica aqui em frente me parou e me disse para eu tomar mais cuidado com quem eu ando, pois tem uma moça que atravessa a rua comigo que nem uma doida! Só pode ser a Virgínia...

- O que você respondeu, menina,
arguí logo.

- Ah, eu disse para ele não ligar não que ela é meio doida, mas sabe o que faz.

De fato, Luzia estava mais desenvolta, mais feliz, mais confiante. Ninguém poderia ter feito algo melhor e mais adequado à inclusão dela na turma do que Virgínia, estou bem certa disso.

Assim era e é Virgínia até hoje, embora os embates da vida tenham traçado os veios de suas faces com marcas variadas entre os sabores e os dissabores da vida.

Lembro-me particularmente do dia de nossa formatura. Cerimônia simples, mas cheia de carinho e amizade pela turma especial que fomos na universidade. Tão logo acabou a cerimônia, Virgínia que, evidentemente, se sentava a meu lado, se levantou para receber de mim, seu primeiro abraço, como combinamos. Lembro-me de sua voz sussurrando em meu ouvido:

- Até que enfim. Acabo de me aposentar.

De fato... Virgínia aposentou-se do Curso de Letras tão logo recebeu o diploma. Hoje é artista plástica, como sempre quis, desde adolescente. Isso é que é ter conquistado um sonho do coração...

Apesar de tudo, se não fizesse o curso de Letras, talvez eu tivesse perdido a oportunidade de conhecer uma das pessoas mais interessantes da minha vida.

E, de quebra, uma amiga prá ninguém botar defeito!!!

domingo, 18 de setembro de 2011

A LAREIRA


Voltar desses cursos de Reiki é como voltar de um país longínquo, de outra cultura, de outras linguagens. Não, não é “como voltar de um país longínquo”... é mesmo “voltar de um país longínquo”, em todos os sentidos: encontrar-me com meus mestres e com seus ensinamentos traz um monte de duplos sentidos...

Os ensinamentos são baseados em uma cultura oriental, com mitos e costumes que desconhecemos. A forma de encarar processos de cura são diferentes dos nossos. A filosofia é outra. A língua de aprendizado é outra. Um banho de cultura para a alma e para o coração, para a mente e para as raízes da intuição, da percepção, do convívio com o humano, com nosso interior.

Voltar de três semanas como essas, uma em Buenos Aires e duas no Brasil é como voltar de um país distante. Três semanas que valeram por três meses. Uma semana com Arjava Sensei e duas com ele e Tadao Senseis, pela primeira vez no Brasil. Muitas línguas juntas, em tão pouco tempo. Ainda meio anestesiada, impossível transformar a experiência em conto.

É como se o mundo “paralelo” se transformasse em realidade e o cotidiano é que se transformasse em “mundo paralelo”. Difícil pescar um “peixe-conto”. Era o que eu pensava, numa das gélidas noites de Buenos Aires, sentada ao lado da lareira do hotel, com o mais recente livro de Arjava Sensei nas mãos.

A gentilíssima gerente do hotel passou por mim e comentou:

- Não acha que você está muito perto da lareira? Vai assar!

Resposta sorridente dessa carioca acostumada aos 40 graus:

- A intenção é essa!

Um frio do cão! De resto, Buenos Aires e Reiki são duas expressões que se casam para mim. Lá conheci meu atual mestre de Reiki, em 2004. Para lá voltei mais três vezes para estudar Reiki novamente e, claro, para desfrutar daquele paraíso de cidade, que também agasalha um casal de afilhados muito queridos.

Desta vez, no entanto, amedrontada pelo frio, fiz apenas um breve, digo, brevíssimo passeio às margens do Tigre aproveitando o horário mais quente do dia da chegada. Pelo resto da estadia guardei todo o calor interno possível apenas para ir da pousada ao curso e vice-versa.

Os dias estavam lindíssimos, mas traiçoeiros: era só colocar os pés na rua que o vento do Tigre tomava conta dos meus ossos, da minha alma. Para mim, acostumada com os trinta graus do Rio, nem pensar. Volto no verão.

Mas Buenos Aires, para mim, é puro encantamento e, só de pisar lá, me lembro de histórias sem fim. Lareira é lugar para o romance, o sonho, a recordação. E eu estava assim, ao lado da lareira, “assando”, lendo o livro e, volta e meia, descansando meu olhar nas chamas mágicas, divagando sobre as lembranças gentis que esta cidade me trazia.

Os que insistem em dizer que os argentinos são grosseiros e antipáticos precisam me mostrar onde e como. Você se senta num café, se acomoda e se esquecem de você. Uma vez, fiquei em um, na Rigoleta - um dos bairros impossíveis de não se visitar. Tinha andado tanto que as cadeiras me atraíram como ímãs. Entrar para um breve café para descansar as pernas era tudo o que eu queria. O garçom serviu o tal cafezinho como se estivesse servindo uma refeição e fiquei ali, esquecida do tempo, saboreando um café antecedido da tradicional água gelada e um biscoitinho delicioso de brinde. Faz parte da cultura você tomar um cafezinho de quarenta minutos ou mais quase pelo mesmo preço de nosso café em pé. O mesmo que nos cafés europeus...

As chamas do fogo buscavam por outras recordações...

Uma vez, comprei um casaco de couro num modelito diferenciado. Quando voltei para casa onde estava hospedada, minha afilhada me olhou admirada:

- Que lindo! Onde você achou?

- Não achei. A vendedora era tão simpática que desceu as prateleiras para me servir. Quando eu já estava até sem graça e lhe pedi mil desculpas por não ter achado o que queria e ter dado tanto trabalho, ela sorriu, pensou um pouco e me disse:

- "Tenho uma coisa lá em cima que acho que vai lhe agradar." Pedi-lhe que não trouxesse, pois se eu não gostasse, teria dado mais esse trabalho. Mas ela disse que esta era a sua função e ela a realizava com o maior prazer. Daí desceu com esta pérola. Olhei em torno, envergonhada pelos dez ou mais casacos que tinha experimentado, mas ela se adiantou:

- É uma questão de minutos colocar tudo no lugar, não se preocupe.


Essa foi a antipatia argentina que conheci. Não fosse outra língua, pensaria que estava no Rio...

Em outra vez, tomei um taxi para me levar do centro da cidade ao local do curso, San Isidro, bem distante. Naquela época não havia GPS e o taxista deu tratos às bolas para descobrir o local do curso. Não tivéssemos acertado o preço antes, acharia que era embromação. Mas fomos conversando como dois bons cariocas, ops... argentino e carioca, povos irmãos, inimigos só no futebol, como me dizia o sorridente taxista.

Volta e meia, no entanto, ele se remexia no banco. Acabei por perguntar-lhe se estava sentindo alguma dor. Disse que sim, sofria muito de dor nas costas. Chegamos cedo ao local e como era rua sem movimento, o encontro acabou com uma belíssima sessão de Reiki de 20 minutos, em suas costas, no próprio carro. Ele saiu dali já com um cartãozinho de uma colega reikiana argentina. Espero que tenha ficado cliente, pois saiu dali renovado.

Antipatia argentina? Pode ser, não duvido, mas, se for, sempre topei com as exceções... para confirmar a regra.

Meus olhos titubeavam entre as chamas que me traziam recordações e o livro aberto em minhas mãos. Sentia-me aquecida e confortável. Preguiça boa.

Notei que dois hóspedes que jantavam numa mesa um pouco mais distante (quem agüenta fritar ao lado da lareira?), de vez em quando, paravam de conversar e me olhavam. Falavam um alemão um pouco esquisito para meus ouvidos de linguista. Será que era alemão mesmo?

Continuei a leitura até que eles levantaram. Distraidamente, levantei os meus olhos. Um deles me olhou e me perguntou, num espanhol estranho, de onde eu era.

- Do Brasil, respondi.

Ambos sorriram e ele me respondeu num português com um sotaque muito meu conhecido:

- Somos de Blumenau!

Imediatamente identifiquei o alemão esquisito como o dialeto falado pela colônia alemã que vive no Brasil, língua materna de grande parte da população daquela região: Brasildeutsch. Sorri.

Um deles se aproximou disposto e tirar um dedo de prosa. Queria saber o que tanto eu lia, com tantas palavras japonesas. Sorri de novo. Ele se referia aos kanjis e outros símbolos de Reiki, abundantes no livro que eu tinha nas mãos. Falei um pouco sobre Reiki, e emendamos num papo sobre minhas aventuras por Blumenau. Que saudades! Ele me contou que estava trabalhando numa empresa alemã, e rodava o mundo. No momento, morava naquele hotel em Buenos Aires e, provavelmente, ficaria por mais um tempo. Conseguira o emprego graças ao alemão, sua língua materna.

Soube das novidades de Blumenau. O Hotel Garden fechou (nossa!!!), mas o Gloria Hauss continua fazendo as mesmas tortas deliciosas. Falamos de tudo e de nada, enquanto a noite seguia rápida em suas horas.

Lareira é um lugar para o romance, o sonho, a recordação... e ficamos assim, dois brasileiros, aconchegados pelo fogo da lareira, em uma pousada perdida na região do Tigre, neste final de inverno, nos falando sobre coisas do Brasil, da vida, de nós mesmos...

Voltar ao Brasil e emendar no curso daqui apenas prolongou o encantamento. Volto, aos poucos, das viagens marcadas pelas chamas do fogo da lareira e do meu coração.

Outro dia conto mais.