sábado, 25 de junho de 2011

TONIQUINHO


Irmã Antonieta foi nossa mestra de classe no quarto ano fundamental, naquela época intitulado quarto ano primário.

Para fazer contraste com a Irmã “Cruz Credo”, eu tinha de contar, também, minha história com Irma Toniquinho. Pois é... Toniquinho ou Tonico foi como a minha turma apelidou essa religiosa nascida para ser mãe.

Claro que às vezes fazia sua cara amarrada, mas era até engraçado, pois não levava jeito para isso. O fato é que, com sua amorosidade, ela conseguia tudo da gente e não me lembro de uma disciplina consentida tão perfeita em outro ano de internato. Nós queríamos agradá-la, esta é a verdade, brindá-la com nosso amor, por tanto amor recebido.

Alda, uma de minhas colegas, foi quem colocou o apelido, que coincidia, perfeitamente, com o perfil da irmã: pequenina de porte, faceira, espertinha e descolada nas respostas às perguntas mais incríveis que inventávamos para lhe fazer. Não era jovem de corpo, mas era jovem e bem responsável de espírito. Sentíamos que estávamos seguras com ela, ao mesmo tempo sábia e brincalhona, o ideal para cuidar com amor e aconchego de uma turma de meninas que contavam entre 10 e 11 anos de idade.

Um dia, sem querer, Alda, em vez de chamá-la pelo nome, tascou o apelido:

- Irmã Toniquinho!

A freira se virou de pronto, a turma congelou. E agora? Ela descobrira! Acostumadas que estávamos às ranzizices das freiras das turmas anteriores, esperávamos que, mesmo sendo muito boazinha, Alda contaria com uma boa reprimenda, no mínimo!

Lembro-me que todas silenciamos, olhos fitos na freira. Ela primeiro ficou muito séria, depois soltou um pequeno sorriso e disse que precisava falar com todas, quando chegássemos à sala de estudos. Estávamos no recreio do jantar, isto é, misturadas com alunas de outras séries. E havia uma etiqueta bem protocolar no colégio: cada turma tinha lá os seus problemas e a mestre de classe jamais os expunha em público. Em outros termos, bem cedo aprendi que “roupa suja se lava em casa”.

Seguimos para a sala e fomos surpreendidas com o seguinte discurso:

- Meninas, eu já conhecia esse apelido que vocês me deram às escondidas. Fico agradecida pelo carinho e o acho muito bonito. Só que precisamos combinar uma coisa: ninguém pode saber disso em público. Não fica bem vocês chamarem sua mestra de classe de “Toniquinho” ou “Tonico”. Assim, vamos restringir esse tratamento aos momentos em que apenas nós estivermos presentes. E tomem muito cuidado, quando estiverem em público.

Não é preciso dizer que todas nos levantamos dos lugares e a rodeamos tão cheias de amor no coração quanto o amor que ela tinha para nos dar. Toniquinho aceitava o tratamento de você, não de senhora, como era de praxe entre alunos e mestres, sabendo de sobra que respeito se faz com o convívio e não com imposição. Mas tudo “só entre nós” segredo que nos aguçava, ainda meninas, a cumplicidade necessária para a conquista de nossos ainda tão ingênuos corações.

Tonico ou Toniquinho conseguia tudo que queria: desde filas impecáveis e silenciosas nos corredores, como o melhor comportamento à mesa do refeitório, postura impecável na Capela, pontualidade, assiduidade, e compromisso. Tudo feito com alegria, bom gosto, satisfação. No recreio, dessarte não ser tão jovem, Toniquinho jogava queimado com a gente e também participava do pique bandeira. Era mesmo muito diferente de tudo que vivi, entre todas as experiências de meus dez anos de internato.

Para melhorar a história, não sei como, embora fosse critério do colégio que as mestras permanecessem sempre como guardiães da mesma série e nós é que mudássemos de mestre de classe a cada ano letivo, Toniquinho foi nossa mestra por dois anos seguidos: quarta e quinta série fundamentais. Eu acho que ela mesma deve ter mexido lá os seus pauzinhos, pois, com toda certeza, nunca teve uma turma em que ela sentisse tanto amor transbordar. Uma pena não poder nos seguir por todo o percurso acadêmico. Eu teria sido brindada com a melhor “mãe” do colégio.

Mas, tudo bem... eu e toda a turma tivemos a oportunidade de viver dois anos da mais pura harmonia e encantamento. Toniquinho sempre esteve ao nosso lado de uma forma muito especial, ensinando, curtindo, disciplinando e incentivando nossas mentes e nossos corações para mostrar-nos as melhores qualidades do ser humano em si mesmo e em convívio com os demais.

Toniquinho, onde quer que você esteja - provavelmente sendo chamada de Toniquinho pelos anjos -, obrigada, querida, devo muito do que sou a você!

Tim-tim!

sábado, 18 de junho de 2011

IRMÃ CRUZ CREDO


Irmã “Cruz Credo” foi a única freira que, realmente, conseguiu angariar minha antipatia no colégio. Por uma questão de delicadeza, prefiro usar o apelido que tinha entre um pequeno grupo de alunas, felizmente jamais descoberto por outras alunas ou irmãs do colégio.

Era a mestra do terceiro ginasial (atual sétima série do ensino fundamental). Era dessas pessoas cheias de preconceitos, que gostava de fazer uma preleção por dia para a turma, olhando para cada um, como que pedindo aprovação de suas palavras.

Não gostava dela. Decididamente, não. Por várias razões: antipatia gratuita (isso acontece até nas mais nobres famílias) e por seu comportamento diante dos próprios preceitos que pregava a nós, suas alunas. Como lhe disse,em contos anteriores, ao escrever sobre o colégio, a cada ano, tínhamos uma mestra de classe diferente. Isso porque as freiras que eram as responsáveis pelas turmas ficavam sempre no mesmo nível. Nós é que passávamos de ano. Assim, Irmã “Cruz Credo” era a mestra daquele ano. Eu tinha treze para quatorze anos, estava em plena adolescência, acostumada há seis com o regime de internato. Quem ficava internada tanto tempo? Ninguém. Conhecia aqueles corredores como as palmas de minhas mãos. Era capaz de caminhar à noite, às escuras, ou melhor, no breu, sem topar nas portas ou móveis. E olha que breu no Alto da Boa Vista, dentro da mata, é breu mesmo. Assim como conhecia a concretude do edifício, conhecia a concretude dos santos ofícios, o regimento interno e tudo mais que alguém que é quase patrimônio do colégio poderia conhecer.

Pois bem, ninguém discutiria comigo as leis do colégio. Nem uma freira, ainda mais se tivesse entrado depois de mim, transferida de algum lugar. Digo isso para você ter uma idéia de como eu estava incorporada àquela vida e àquele cotidiano.

Irmã “Cruz Credo” vomitava as leis do colégio todos os dias, justamente na preleção, antes das aulas do dia. Já sabíamos: as aulas começavam às oito e dez. As internas chegavam à sala às sete e quarenta, esperando por suas colegas externas, que iam chegando pouco a pouco. A espera, todos os dias, era contemplada com os “sermões” de Irmã “Cruz Credo” Até hoje fico pensando onde ela arranjava tanto assunto. Uma chatice: como ser uma boa moça, como se sentar no refeitório, como manter o silêncio... tudo coisas que sabíamos de cor e salteado, melhor que as aulas de etiqueta, postura, culinária, bordado e tudo mais que faz o exemplar comportamento de uma moça prendada. Mas estávamos lá, pensando em ontem, enquanto a voz de fundo (nem a voz dela era agradável) daquela freira enchia o ar de nostálgico mal estar. Provavelmente ela própria necessitava de falar sem parar. Isso me irritava completamente. Eu queria ler, rever os assuntos das aulas daquele dia e aquela voz perturbadora atravessava o meu sossego.

Eu tinha de dar um jeito nisso para não pirar, até que um dia tive a idéia de prestar atenção, tim-tim por tim-tim. O plano passou a ser “pegá-la no pulo”. Quem sabe, assim, eu conseguiria fechar aquela matraca. Pois foi assim mesmo que consegui. Comecei a anotar os dias e assuntos pautados. Logo no começo, ela me chamou a atenção: estava escrevendo, enquanto ela falava e isso era desrespeitoso. Fiz ver a ela que estava anotando suas recomendações. Não havia como forçar-me, portanto, a ficar olhando para ela que nem peixe morto, como obrigava a todas as demais. Era uma bela justificativa e eu anotava assiduamente. Com que objetivo? Não esquecer, certamente. Era um argumento esquisito, mas irrefutável. Quando tive material suficiente, comecei minhas investidas.

Não era permitido falar no refeitório, durante as refeições, exceção feita a pedir para uma colega passar a cesta de pão ou a tigela de arroz, por exemplo. Apenas durante a sobremesa o silêncio era suspenso, até a hora das preces de ação de graças. Ocorre que Irmã “Cruz Credo”, não conseguia ficar quieta. Era mesmo uma matraca viciada. Falava baixinho com a aluna que sentava a seu lado (sempre uma puxa-saco, com certeza). Cabe explicar que, no refeitório, as alunas sentavam-se em mesas longas: dez alunas em cada mesa, encabeçada pela mestra de classe. Como cada turma de internas era grande o suficiente para ocupar duas mesas, a outra mesa era encabeçada pela assistente daquela mestra de classe. Assim, todas as mesas tinham uma freira à cabeceira e as mesas eram divididas por níveis escolares, o que, também, aguça o sentido de divisão por classes, o que nos lembra uma discriminação social. Não se misturam as classes...

Mas voltemos aos fatos: eu tinha meu assento à mesa da mestra, no caso, Irmã “Cruz Credo”, embora sentasse na outra ponta, para ficar o mais distante possível do meu desafeto. Quando percebi que ela não conseguia ficar quieta por tanto tempo, anotei a data de um de seus sermões sobre o silêncio e, na primeira oportunidade, sapequei minha lição. Olhei para ela como ela costumava nos olhar (olhos recriminadores) e levei o dedo indicador aos lábios, sussurrando: é hora de silêncio. A mulher quase morreu. Suas faces enrubesceram e não era de vergonha, era mesmo de raiva reprimida. Uma aluna a repreendia e, pior, com razão. Ela sequer poderia dizer que era falta de respeito, já que seus sermões eram todos pautados no respeito às regras. E assim foi: fui sapecando cada um de seus deslizes, que não eram poucos. E... como eu era considerada uma aluna exemplar, desde os anos anteriores, sempre apontada como modelo e todas aquelas baboseiras de cdfs que você deve conhecer, ficava mais difícil ainda.

Me transformei no pesadelo de Irmã “Cruz Credo” . Era visivelmente desagradável a minha presença. Mas eu não dava qualquer motivo para recriminação. Pelo contrário, cuidava cada vez mais de ser a perfeição personificada. Tenho certeza de que eu chegava a ser irritante, como consegue ser uma adolescente que resolve emperrar com alguém. As colegas me admiravam, pois eu passei a ser a representação da “moral”, diante da moralista. Pode imaginar um bando de adolescentes torcendo por mim, claro, já que ela era tão chata... Até eu me achava chata, mas não dei trégua.

Foi com essa freira que se passou o episódio do sacrário vivo, que já lhe contei e que deu panos para mangas entre as colegas de internato. Se você leu o conto ”dogmas e crenças”, talvez se lembre do episódio. E, naturalmente, foi com ela que armamos o único castigo já impetrado pelas alunas a uma freira...

Na verdade, eu estava mesmo esperando uma chance, mas não poderia ser de graça, é claro. E veio. Para desespero meu, no entanto, por causa de Helena, uma de nossas colegas. E conto-lhe já por que o desespero.

Helena era uma menina triste. Tinha lá seus segredos, que ninguém conseguia saber quais eram. Eu, no entanto, por ser sempre considerada a irmã mais antiga, mesmo que não a mais velha, era, quase sempre, a confidente de minhas irmãzinhas de turma. A antiguidade no posto, o sentir-me em casa por já viver ali tantos anos talvez inspirasse essa função. Pois então... Helena, num de seus dias de tristeza e desencanto, revelou-me que descobrira que era filha adotiva e isso a fazia muito infeliz. Passei a dedicar-me mais a essa pequena amiguinha, compadecida com esse sofrimento. Queria fazer ver a ela o quanto seus pais adotivos eram verdadeiros de alma e coração e quanto a amavam. Ela achava que havia sido colocada no internato por rejeição dos pais e não porque, como eles diziam, estavam se separando e tinham resolvido deixá-la longe desse delicado período de separação. Para ela, isso era uma desculpa... ela se sentia abandonada. Para completar, tinha sido introduzida na turma no meio do ano para o final, o que mais complicava a sua integração, numa turma já composta pelo convívio de meses. Aos poucos, no entanto, eu estava conseguindo dissuadi-la dessa idéia. Não poderia contar o segredo a mim confiado às outras colegas, mas incitava a todas a ajudarem-na, dando-lhe mais atenção. Helena, aos poucos, começou a participar de nossos jogos e tudo parecia começar a caminhar para o normal, senão quando... a megera atacou. Até hoje acho que aquela freira precisava era de um tratamento psiquiátrico...

Tudo aconteceu numa tarde, na sala de estudos. Era comum recebermos visitas de pais que vinham conhecer o colégio e seu cotidiano, antes de decidirem colocar suas “princesas” lá. De setembro ou outubro em diante, muitas visitas eram feitas, tendo em vista o ano seguinte. Deveríamos estar por aí, no calendário escolar. O aviso para nós já era comum, vindo do interfone do corredor e chegando por alguma outra freira aos ouvidos da mestra de classe que nos anunciava:

- Meninas, estamos com visitas.

Continuávamos estudando, atentas, no entanto, ao ritual. Pouco depois, uma freira aparecia na porta da sala, guiando os visitantes. Neste momento, levantávamos juntas, num movimento único, acompanhado, em um só acorde de delicadeza “natural”, treinadíssimas:

- Boa tarde.

Esperávamos que a mestra de classe se levantasse e dissesse:

- Podem sentar-se.

Aí, era um requinte de vinte meninas se sentando como princesas, juntas, sem fazerem o menor ruído, em nossas confortáveis e espaçosas carteiras de madeira encerada. Um primor. Coisa de filme. A mestre de classe, também cumprindo o ritual, aproximava-se dos visitantes e dizia alguma coisa a respeito da turma de que era responsável. Sempre alguma referência que identificasse melhor a turma. Pois não é que a jóia da Irmã “Cruz Credo” me solta a seguinte prenda?

- Aqui temos alunas de vários lugares do Brasil e de várias proveniências. Aquela, ali, por exemplo, foi adotada.

Assim, de estalo. Eu tive um treco, imagine você, então, a Helena! Em um segundo, ferida aberta para o mundo. Pode imaginar o rombo psicológico que foi. Poucos dias depois, Helema foi tirada pelos pais do colégio. Ela simplesmente não podia olhar para ninguém, especialmente para aquela megera. Até eu não conseguia mais ter acesso a ela, embora quisesse confortá-la.

Reunimos o conselho secreto das alunas, já seu conhecido, no conto do evento das toalhas (que só ocorreu dois anos depois). Esse crime merecia castigo, sem dúvida. E dos bravos. A idéia inicial foi a de roubar a chave do armário da freira e sapecar suas roupas íntimas com pó de mico, abundante na floresta da Tijuca. Para quem não sabe, pó de mico irrita muito a pele e dá uma comichão dos infernos. Dos infernos! Nas roupas íntimas, então, você nem pode imaginar... Poucas vezes, no internato, me senti tão furiosa, mas fui contra. Não sei se pelo exagerado requinte da crueldade ou porque eu queria algo que a expusesse a um ridículo à altura.

Decidimos por uma empreitada perigosa. Éramos apenas três naquela época e as outras não poderiam saber. Há sempre os dedos-duros. Não podíamos nos arriscar. E foi feito.

As camas das religiosas ficam nos dormitórios com as alunas, mas separadas por um cortinado indevassável para resguardá-las de nossos olhos. Dormem sem a touca, cabelos soltos e, evidentemente, sem hábito, com camisolões. Planejamos desparafusar a cama da freira para que desarmasse quando fosse se deitar, o que ocorria mais ou menos uma hora depois das alunas. Faria algum barulho, mas não tanto, pois o piso era de madeira e não de mármore, como nos corredores. Mas não era pelo barulho. Era, principalmente, porque o barulho que fizesse assustaria a todas no dormitório, que se levantariam para ver o que havia acontecido, levaria a freira assistente a acender a luz, e a megera, de camisola, esparramada no chão, estaria exposta à visitação pública.

E foi exatamente o que aconteceu. Fez mais barulho do que imaginávamos, mas não chegou a ser um escândalo. Irmã “Cruz Credo” estatelou-se no chão e quando chegamos para ajudar a levantar-se não apenas seus cabelos estavam expostos, mas suas pernas e as curvas de sua imensa barriga. Um vexame que, com certeza, ela jamais esqueceu.

Dali até o final do ano, que faltava pouco, felizmente, fomos olhadas com olhos de fúria. Mas não havia nada a acusar. Para todos os efeitos, foi mesmo um acidente, que poderia ter acontecido a qualquer um. Por uns dias, o andar trôpego e dolorido de Irmã “Cruz Credo” combinava bem com o seu tom de voz, sempre esganiçado. O conjunto era sintônico, embora jamais atraente.

Hoje, apenas sinto pena de não poder ter dito a ela, naquele tempo, o que hoje diria. Quem sabe, tão ferida quanto Helena, ela só soubesse viver esparramando a sua volta toda a amargura de seu próprio viver. Pobre freira... sabe-se lá por que razões foi bater nos costados de um colégio de educadoras. Dentre várias das recalcadas que lá conhecemos, ela, sem dúvida, sempre se destacou com louvor.

Para compensar, sua assistente era a Irmã Vitória. Uma sulista cheia de dons domésticos, com quem aprendi as artes mais sutis dos bordados de mãos de fada. Irmã Vitória sempre nos tratou como quem trata princesas, cuidando para que fôssemos realmente personagens de contos de fadas. Lembro-me de seus minuciosos cuidados e, até hoje, sua voz, vez por outra ecoa em meu coração, como quando nos alertava, sempre carinhosamente, para que nossos vestidos ficassem impecáveis na inspeção:

- Menina, ajeite seu vestido, você não está parecendo uma dama...

Eu tenho a impressão de que, se fosse uma novela, irmã Vitória seria uma serviçal do palácio, dessas que estão sempre para lá e para cá, levando chazinhos, costurando roupas, cuidando dos quartos, feliz, gentil, satisfeita. Sempre pronta a “contrabandear” mais cinco minutinhos de recreio (que mal faz... essas meninas já estudaram muito hoje...), de arranjar às escondidas mais um biscoitinho daqueles que a gente adorava, mas não podia roubá-los na cozinha, tirar a mancha do uniforme, antes que alguém mais veja... e a que sempre nos dizia, para os pedidos quase impossíveis:

- Pode ir, mas não demore, esteja de volta em menos de dez minutinhos...

Nem tudo foram cinzas na terceira série...

sábado, 11 de junho de 2011

TESTEMUNHA


Fui testemunha, uma vez, em toda a minha vida. Da santa fé católica. Ocorre que uma amiga muito querida, queria anular seu casamento religioso para poder casar-se de novo, segundo os princípios da igreja.

Não sei se você sabe: anular casamento religioso é um processo bem complicado, longo e trabalhoso, que transita nos corredores do Vaticano, exigindo mil e uma funções protocolares. E só pode ser concedido diante de uma série de pré-requisitos, como nunca o casal ter tido filhos, por exemplo. E corre como um processo judicial, cheio de protocolos e pendências, incluindo testemunhas.

Pois então... difícil arranjar testemunhas, ainda mais que aceitassem as exigências da igreja católica. As pessoas não gostam de ser testemunhas nem de roubos da esquina, quanto mais de algo tão mais trabalhoso...

Por isso, talvez, a dificuldade de minha amiga, sobre um casamento que já terminara há mais de vinte anos! Quem liga? E pra quê? Pra quê alguém iria se preocupar em anular um casamento de tantos anos atrás, se já está vivendo bem com outro grande amor, com filhos e tudo? Vai lá saber!!!...

Mas eu sabia. Tínhamos sido muito amigas (irmãs!) no colégio, de um carinho mútuo sem deslizes. E eu podia compreende-la: ao contrário de mim, ela permaneceu praticante dos rituais religiosos e, pensei que, provavelmente, uma situação como essa a colocava ao lado dos perfis aceitos pela religião. Quem é católico praticante sabe disso. E eu, que tinha traçado todos os caminhos da igreja por dez anos, também sabia. Então, um pouco titubeante apenas no que se referia a mim e não a ela, aceitei.

Titubeante? Claro! Ela não sabe, mas... se lê os meus contos, agora saberá.

Como eu tinha sido interna e sabia de cor e salteado os parâmetros concebíveis para ser aceita como testemunha, eu estava longe de preencher os requisitos: estava separada, melhor: divorciada (!), não tinha filhos e estava namorando. Não havia três melhores razões para me colocar completamente fora dos preceitos religiosos. A rigor, eu deveria ser excomungada, como você viu, se leu o conto “o marido que não era”. Mas o amor por essa irmã do coração foi mais forte e simplesmente aceitei. O máximo que poderia acontecer era meu testemunho ser rejeitado. Paciência. Tentar não custa.

Então, esperei o chamado dos responsáveis pelo processo no Rio de Janeiro, o que se deu duas semanas depois.

Tive, naturalmente, um cuidado especial ao me apresentar: sabia de velho que, se perguntassem muito sobre mim e meu estado civil, por exemplo, minha ida teria sido em vão. Que os anjos me ajudassem. Vesti minha cara de aluna de internato, pensei naquele anjo que me aparece nas horas mais desesperadas e entrei na sala com um sorriso interior de quem está ali para vencer.

A primeira iniciativa, é lógico, é jurar sobre a bíblia de que estaria comprometida com a verdade. Isso foi fácil, pois é lógico que eu não estava ali para mentir. Eu só estava era torcendo para que o assunto girasse apenas em torno de minha querida amiga e não sobre mim.

Mas é indispensável dizer que a primeira pergunta foi:

- Você é católica?

Graças aos deuses olímpicos, não me perguntaram se eu era católica praticante. Isso facilitou as coisas, pois me deu chance de responder:

- Fui interna no (nome do colégio) por dez anos, minha formação vem de lá. Meu capelão e confessor foi D. (nome de um frei beneditino super venerado naquela ordem e já falecido). Aliás, foi ele quem realizou meu casamento. Depois de formada trabalhei como professora na (nome da universidade, também católica), onde tive a honra de conhecer D. (outro frei beneditino do alto escalão). Minha formação foi, portanto, rodeada dos preceitos religiosos da fé católica, apostólica, romana.

Pronto. Não menti. Falei toda a verdade disponível em meu arsenal e com tantos predicados e pistolões, que ele nem percebeu que eu estava falando do meu passado, não do meu presente. Para completar, esse tipo de julgamento é entregue justamente aos beneditinos que, neste caso, respondem pelo Vaticano. Assim, tendo lançado mão de tão eminentes nomes de sua própria ordem religiosa, ele se esqueceu de perguntar qualquer outra coisa a meu respeito. Sorriu e disse apenas:

- Estes dados são suficientes. Passemos, então, ao testemunho.

E aí, foi até engraçado. As perguntas se restringiram a eu dizer se o cônjuge em questão era católico, se tinham tido filhos com a pretendente à anulação e se eu achava que tinham sido felizes. Fácil de responder: não, ele não era católico, era espírita, não tinha tido filhos com ela e eu não poderia dizer sobre a felicidade, pois era algo muito íntimo do casal. Mas poderia supor que um casamento que durara apenas em torno de um ano não seria um casamento modelo para a fé católica.

Isto posto, ele agradeceu e me dispensou.

Saí dali meio tonta. Tudo que eu falei refletia a mais pura verdade! Eu respondera exatamente como as coisas tinham ocorrido, como tinha sido a minha formação, como via o casamento realizado, tudo certinho, tim-tim por tim-tim. Ele perguntou, eu respondi, sem negar, sem sonegar informações solicitadas.

Mas algo, dentro de mim, me fez rever como são feitos os julgamentos, como são levados os processos (não me refiro aos católicos em especial, me refiro à lei em si), como é possível responder com verdades, omitindo informações, sem deixar de ser verdadeiro... só pode ter algum sofisma aí...

Estranho...

sábado, 4 de junho de 2011

DOIS MAIS DOIS


Tenho recebido muitos mails me perguntando as mais variadas coisas sobre as “verdades do blog”.

Acho isso muito interessante, pois reflete o interesse das pessoas não só pelos meus contos, mas sobre verdades da vida.

Só não sei por que é tão importante saber se o que eu escrevo é mesmo verdadeiro. Será que faria diferença? Pelo visto (melhor, lido...) faz.

Tá bom, vou responder matematicamente, pois está me parecendo que a verdade passou a ser mais importante do que a verossimilhança.

Sim, tudo que postei aconteceu MESMO. Eu posso ter enfeitado com os coloridos da minha alma, mas aconteceu. O que há é que, muitas vezes, não conto a história toda, ou melhor, todas as facetas da história. Por quê? Porque tiraria o encanto, a forma com que prefiro guardá-las no coração.

Para que dizer que o personagem do conto “A ponte” faleceu há dois meses? Em que isso engrandeceria o conto escrito há tantos meses atrás? Pois é... mas a creche continua lá, firme e forte, sob os cuidados de sua esposa, escolhida no Brasil e tão amada por esse espanhol que fez de nossa terra o lar de seus sonhos...

O gabonês me deu mesmo um cinto no último dia? Deu, sim, com aquelas palavras mesmo: para combinar com o vestido com que ele me viu no primeiro dia, quando eu nem tinha me dado conta de sua existência... é tão intensamente romântico que a verdade mais parece conto de fadas... pois é... mas aconteceu assim mesminho. Presentes da vida...

Com essas duas respostas, você calcula o resto, tão certo quanto dois mais dois são quatro.

Mas o estilo está longe de ser matemático, pois são histórias contadas com o coração.