sábado, 30 de abril de 2011

SAIA JUSTA


O primeiro domingo que passei em Portugal, merece menção de destaque. Estávamos em 1975, ano da revolução dos cravos, em pleno e agradável verão europeu. Meu pai, fazendo as honras da casa e querendo impressionar a filha por viver no que chamava o melhor país do mundo, convidou uns amigos e fomos almoçar no lugar mais badalado da cidade, o restaurante que ficava nos Escadórios do Menino Jesus de Braga.

Sim: escadórios. Aqui seriam as escadarias, mas lá são “escadórios” mesmo. O passeio exige que você tenha fôlego suficiente para subir as escadarias, coisa que meu pai jamais fez, chegando lá em cima de carro, pois é muito mais confortável. Eu enfrentei os escadórios, como boa viajante que sou. Cada lance com uma etapa do calvário e todo o enredo de entorno da fé cristã. A visita é coroada com a Igreja do Menino Jesus e, logo depois, finalmente, com o restaurante, seguido de uma tarde de passeio por ali. Domingo tradicional bracarense.

Mas o fato de destaque, por incrível que pareça, não foi isso. Foi mesmo a saia justa por que passei.

Vislumbre o contraste:

Portugal, 1975 - cultura tradicional européia. Eu não sabia, mas as mulheres casadas se vestiam muito discretamente, geralmente cores escuras, meias finas, saias sempre abaixo dos joelhos. As aldeãs, então, ainda conservavam o costume de usarem vestidos pretos, longos até o chão. Um folclore à parte, para nós.

Brasil, 1975 - não há diferença de modo de vestir entre solteiras e casadas. Na época, para quem lembra, cansamos de usar vestidos do tipo chemisier para situações esportivas e esporte fino (um camisão masculino, bem acinturado e talhado, com mangas compridas para ocasiões mais formais e curtas, no estilo esportivo). Acompanhava uma meia três quartos e um sapato fechado, estilo mocassin, mas mais fino e de saltinho. Muito chique. O detalhe é que o vestido tinha de ficar pelo menos um palmo acima do joelho... diga-se... um palmo medido bem generosamente.


Eu havia chegado na véspera de manhã. Nem me dera conta de ficar prestando atenção a qualquer detalhe de moda. Era a primeira vez que eu ia a Portugal e, em minha cabeça juvenil, o via apenas como um país irmão. E, eu, com apenas 24 anos, nem me ligara nessas coisas.

Outro detalhe: ocorre que, pelo menos naquela época, segundo a tradicional família portuguesa, o pai era encarado como... digamos... “senhor da filha” (ai meus deuses...) até que ela se casasse. A partir daí, quem apita é o marido. Então, segundo esses parâmetros, meu pai não faria qualquer comentário, por exemplo, em relação a minha maneira de vestir, nem que fosse para me alertar de que, ali, naquele país tradicional, as vestimentas femininas estavam longe de seguir as modas brasileiras. E foi aí que o bicho pegou.

Pois é... levei meus dois vestidos chemisiers para situações mais formais e um bando de calças compridas para passeios. Separei o mais bonitinho, a meia mais charmosa rendada (rendada acho até que piorou a história, para os parâmetros portugueses!) e desci as escadas de casa, rumo à sala de visitas, prontinha para enfrentar meu primeiro domingo. Meu pai estava ao pé da escada (como se diz em Portugal) e apenas olhou para minhas pernas. Olhou, baixou os olhos e nada disse. Achei que era apenas um trejeito de pai tradicionalíssimo, diante de uma filha com uma saia um pouco mais curta. Só muito depois descobri o que sua face revelara: “isso vai ser um aperto...” Mas... “como eu tinha marido” e ele estava presente... nada disse.

O tal “aperto” começou logo na saída. O casal de acompanhantes sustentava uma esposa no mais alto estilo português da época. E eu bem à brasileira, com o que chamamos de vestido bom para sair com o pai no domingo.

A saída foi fingir que não estava percebendo nada e ir em frente. Afinal, eu não tinha mesmo outro vestido e não poderia imaginar a saia justa em que estava me metendo.

Mas foi mesmo um atropelo. Em qualquer lugar que eu estivesse, percebia que, depois de passar, as pessoas se viravam para olhar – ouvia aquele barulhinho que o sapato faz no chão de areia, quando se vira -, via as mulheres me olharem como quem saiu do mundo dos escândalos. Muitas chegaram a parar na minha frente, meio acintosamente, me olhando com caras de santa inquisição... um horror, mesmo para quem não liga muito para essas coisas, como eu. Lembro-me, como se fosse hoje que, por duas vezes, ao passar, ouvi a expressão: “deve ser francesa... como se atreve a esse escândalo!”

No restaurante, felizmente, o guardanapo era bem grande e pude cobrir as pernas que, geralmente, ficam mais à mostra quando se senta. Mas, durante o passeio da tarde, o que me salvou mesmo foi o meu espírito aventureiro. Vez por outra, eu me dizia: finja que está vestida de freira e vá em frente.

Que peça... pelo resto da temporada, naturalmente, só vesti calças compridas, pois não havia vestido português que eu experimentasse e dissesse que conseguiria usar. Culturas tão próximas e tão distantes...

1975. O tempo passa, mas não apaga as sensações de aventuras, de sentimentos, de vida... até hoje, quando lembro, me rio um pouco do escândalo que causei involuntariamente, numa cidade que, naquela época, era pouco maior do que Copacabana.

Você pode imaginar o que foi...

sábado, 23 de abril de 2011

CARAGO


Coisas de Portugal. Acho que agora, foi mesmo Portugal que entrou na berlinda dos meus contos.

Mas você pode entender... afinal.. sou filha de portuga, termo que uso com carinhos de filha. Amo o país, que me aceitou como cidadã. Graças a ele, tenho o passaporte que me faz européia. Agradecida, brindo essa terra também amada por meu coração.

Minha estadia na casa de meu pai, no entanto, traz mais recordações que o país em si mesmo. Natural, pois ficava muito mais em casa do que em qualquer outro lugar, curtindo um vinho verde (muito pouco, pois, depois de uma taça, o álcool sempre me disse chega...), as rosas aos montes que meu pai plantava no quintal e na Quinta de San Martinho de Dume e muito papo aqui e ali. Nada assim muito turístico propriamente dito. Vi muitos lugares, é claro, lindos e que me enchem de saudade, mas o que mais me chamava a atenção eram os hábitos caseiros, as falas, os costumes.

Meu pai, por exemplo, estava só esperando eu chegar para ir ao açougue e apontar para ele o que era filé mignon. Ninguém sabia... o nome de muita coisa é bem diferente e ele estava acostumado a ver as carnes já prontas no prato, nunca nas mercearias. Não me lembro mais que nome tem, mas lembro da alegria dele comendo o tal filé mignon exatamente como comia aqui no Brasil, super agradecido.

Os falares, naturalmente, me chamavam especial atenção, não fosse eu lingüista. Dois deles me marcaram de modo especial. Vamos a eles.

Carlos era o marido de Gloria, afilhada de casamento de meu pai. Na verdade, Gloria chegara menina lá em casa. Fora contratada para os afazeres domésticos e acabou se transformando em uma espécie de governanta. Quando casou, Carlos foi morar lá e era uma tranqüilidade. Tinham um quarto no segundo andar, em frente ao quarto de meu pai. Assim, ele não morava sozinho. Pelo contrário: era extremamente paparicado pelo casal, que lhe dera, de presente, dois “netos” muito fofinhos.

À mesa, praticamente só Carlos e o Sr. Viana (esse cara era o meu pai) conversavam. Ambos adoradores de política e, claro, de partidos diplomaticamente adversos. Nada mais natural: papai, do tipo patriarca familiar e Carlos, protético, do tipo classe média em ascensão... podem imaginar como a coisa se dava. O fato, na verdade, é que ambos se gostavam muito e a discussão era a pimenta das refeições. Coisas que amigos se dão o direito de ter.

Gloria era um amor de moça. Notei, logo que cheguei da primeira vez, em 1975, que ela estava toda sem graça comigo. Pude imaginar logo o porquê. Era evidente que ela era a dona da casa e eu chegando como filha, teria esse direito natural a meu favor. Assim, no primeiro dia, notei que ela não sabia muito como me tratar e também como tratar a direção dos afazeres da casa. Afinal, ela entrara ali como empregada e, embora tivesse se transformado em afilhada, tinha honras a prestar a essa estrangeira que chegava do Brasil, sabe-se lá se toda cheia de frescuras, com direitos de filha. Percebi isso logo na entrada e fiz questão de ir tratando das coisas como se ela jamais pudesse ter tido qualquer dengo em deixar o seu posto.

Assim, já no dia seguinte ao da chegada, procurei me colocar no lugar de ajudante, deixando claro que ela é que entendia da casa. Achei que assim estava de bom tamanho e ela logo entendeu. À tardinha me bandeei para a cozinha e fiz tudo para mantê-la em seu lugar de governanta. Eu era a filha, o dono era meu pai... e ela mantinha suas prerrogativas. No mesmo dia, logo de saída, nos tratamos por você e eu achei que a intimidade estava feita. Era você para cá, você para lá e estava tudo certo. Mal sabia eu...

Dias depois, acho que umas duas semanas, ela já mais chegada e confiante, me perguntou se podia saber uma coisa. Estava meio sem graça, mas notei que muito curiosa.

- Claro que sim!

- Por que você e vosso marido se tratam por “você?”

- Ora, porque temos intimidade... é assim lá no Brasil... e aqui?

- Intimidade, aqui, é tratarmos por “tu”...


Nos olhamos pasmas uma para outra por algum tempo... mas logo depois caímos numa gostosa gargalhada. E não conseguíamos parar. Afinal, eu a tratava por “você” dando-lhe intimidade e ela achava que eu a tratava por “você” para manter certa distância. Isto posto, não se atrevia a me tratar por “tu”... dali por diante, realmente, nos tornamos verdadeiras amigas, numa troca de “você” e de “tu”, agora propositais, só para fazer graça.

Mas o melhor foi mesmo a segunda história, que deixo para o final:

Voltemos às discussões políticas à mesa. Carlos era generoso no uso de uma palavra que, ao que me parecia, consideramos bem pesada. Por uma questão de delicadeza, para você saber qual é, trata-se de uma que é bem parecida com “carago”.

Pois então, nas discussões, ouvíamos com uma freqüência avassaladora:

- “Carago”, Sr. Viana, deixa estar que esses políticos, do seu jeito, vão colocar Portugal a perder.

Vale dizer que estávamos em 1975, ano da revolução dos cravos, mais especificamente em julho, poucos meses depois. Na televisão, mesas redondas para discussões políticas quase diárias incitavam meu pai a responder:

- E vós que não cansais de fazer mesas redondas com bestas quadradas...

- “Carago”, Sr. Viana, estamos a construir Portugal!


Meu ex me olhava com o rabo dos olhos. Um dia, depois do jantar, comentou comigo:

- Não saio de Portugal sem soltar um “car...” num jantar desses, só para descontrair.

E assim foi. Um dia desavisado, a troco não sei de que, ele soltou, em alto em bom som o tal “car...” só para se sentir “enturmado”.

Depois do jantar, no entanto, ouvi Carlos dizer que queria falar com ele em particular.

Mais tarde, no quarto, ele ria tanto que não conseguia contar para mim o que ocorrera. Depois de se acalmar, no entanto, me explicou:

- Carlos me chamou a atenção para não dizer a palavra “car...” na presença de mulheres, pois aqui em Portugal é um palavrão sem tamanho. Respondi que o ouvia falar todos os dias à mesa e não estava entendendo a reprimenda. Foi aí que ele me esclareceu:

- Não! O que falamos é “carago” e isso não é palavrão... esse aí que você usou é palavrão e dos bravos. “Carago” qualquer um pode dizer, mesmo uma mulher educada, quando tropeça na rua, por exemplo. “Ai, carago” é uma expressão muito comum. Uma exclamação. Qualquer um pode usar. Não há mal algum.

- Mas que diabos significa “carago”?

- É uma palavra que se solta, como exclamação ou indignação. Sentido mesmo, acho que não tem.


Como lingüista, para mim, essa expressão que, afinal, é uma gíria, me soou como um manjar dos deuses. Procurei saber a origem, mas não consegui saber de ninguém, entre todos que perguntei. Quem sabe, um dia eu descubra.

“Ai, carago!”... Será que ainda existe?

sábado, 16 de abril de 2011

A PORTA


Eu acho muito engraçado como Portugal se denomina, se denominou ou se deixou denominar “a porta da Europa”. Como pode um outdoor dizer: “É tão fácil chegar à Europa a partir de Portugal”? Ora, se eu estou na porta, não estou dentro! Para mim, é resultado de um raciocínio muito simples!

Tudo me faz crer que aquela Península fez um esforço imenso para fazer parte da Europa. Mas, pelo menos, até os finais da década de noventa, eles mesmos se consideravam como algo à parte... quem sabe... mesmo que inconscientemente.

Não foi à toa que Saramago escreveu “A Jangada de Pedra”, um de seus vários livros clássicos, acusando a situação da Península na época de sua inclusão ou não na Comunidade Européia.

Com tantas e variadas viagens, no entanto, acho que posso entender: na verdade, Portugal (não conheço a Espanha para falar sobre ela) não conseguia se encaixar no, digamos, espírito europeu propriamente dito. Algo diferencia (ou diferenciava) este povo que eu amo tanto, do resto do povo europeu, que também mora no meu coração.

Como meu pai era português, tive oportunidade de ir algumas vezes a Portugal de uma forma bem “caseira”: saídas de carro, depois do almoço, voltando à noite, para conhecer, a cada dia, uma cidade do norte do país. Meu pai, como bom minhoto (cidadão da região do Minho), bairrista que só ele, me dizia que, abaixo do Porto, não havia Portugal a ver. Assim, só fui conhecer o que havia ao sul, muito depois, em minhas viagens acadêmicas a congressos.

De qualquer forma, sempre senti muita diferença entre o que eu vivia em Portugal e o resto da Europa. Visitei algumas vezes a história do país, por pura curiosidade, tentando, vez por outra, identificar as raízes dessas disparidades. Na verdade, por ignorância de minha parte, com certeza, não sei se encontrei.

Não vou a Portugal desde 2001, quando estive em Lisboa para um congresso. Aliás, visitei a EXPO e a achei incrível. Isso foi um evento à parte, que não me fez, no entanto, pensar muito diferente de 1998, quando estive no Porto por conta de um outro congresso, o tal que me fez encontrar aquele gabonês de sonhos...

Pois foi justamente passeando descontraidamente de mãos dadas com ele pela cidade que me deparei com o outdoor da foto. Mostrei-a ao meu companheiro traduzindo-a, já que ele não entendia português. Ele contraiu o cenho e disse pensativo:

- Como eles mesmos podem se encarar dessa forma? Será que querem ser um continente à parte?

Naquela época, se os próprios portugueses admitiam uma propaganda que, mesmo de uma companhia aérea não portuguesa, os ostentava como a porta da Europa (e não parte da própria Europa), entendo melhor o que quis dizer José Saramago em sua obra, “Jangada de Pedra”...

Se a alma não fala, imagino, então, que esforço extraordinário foi preciso empreender para conseguir fazer a política falar, quando foi fundamentalmente necessário!

Bem, os tempos passaram... mais de uma década. Com a União Européia, mesmo em crise, espero que as coisas tenham mudado bastante... aliás, preciso voltar lá para conferir.

sábado, 9 de abril de 2011

O GABONÊS



Cidade do Porto, norte de Portugal, junho, final da década de 90. A fila para pegar o material do Congresso e o crachá estava bem organizada e eu tinha chegado cedo, como sempre. Chegar antes para pegar as coisas com calma faz parte de mim. Atropelos de última hora são dispensáveis a não ser que tragam boas surpresas. Para um congresso, no entanto, ainda mais sendo meu dia de apresentação, imprevistos seriam dispensáveis.

Sentia-me ligeiramente desconfortável em meu vestido sem cinto. Só notei na hora de usá-lo e resolvi ir assim mesmo. Ficava bonito, mas a delicadeza do acessório me fazia falta. Mal sabia que isso seria um detalhe essencial a essa história...

Material nas mãos, crachá no peito, dei umas voltas pelas salas de exposição e voltei para o hotel. Minha apresentação seria à tarde. É ótimo apresentar o trabalho no primeiro dia. Tirada a tensão natural, fico mais livre para curtir melhor o resto da festa. E sendo um congresso internacional de Psicolinguistica, tudo prometia ser muito bom.

Troquei de roupa disposta a não usar mais aquele vestido. O cinto fazia falta. Voltei ao congresso.

Fiz minha apresentação e logo após me dirigi para a sala de trabalhos que apresentava estudos sobre desenvolvimento de processos cognitivos. E foi aí que tudo começou.

Sentei-me na primeira fila, atenta especialmente a uma das comunicações que prometia ser das melhores. E seria a primeira. Foi quando ele entrou, acompanhado de sua orientadora. Um gabonês de alto porte, com um sotaque francês lindo que só um africano em sua origem consegue ter: manso e baixo, de ritmo pausado e doce. Mas me concentrei no perfil acadêmico. De saída, no entanto, nosso palestrante cometeu o crime de desculpar-se por falar em francês e não em inglês. Não entendi. As duas línguas eram oficiais no congresso, além do português. No intervalo, quem sabe, seria uma boa deixa para iniciar uma aproximação amistosa e brincalhona, se seu trabalho me interessasse. Interessou. E muito. O que ele tinha a apresentar era mesmo algo de grande valor. Fiquei embevecida com os argumentos, com a segurança, com a singeleza, com a agudeza dos detalhes, com a inteligência, com as idéias apresentadas. Altíssimo nível. Eu precisava ver isso mais de perto. Assisti aos outros trabalhos da sessão e ele também. Sem dúvida a dele se destacou.

No intervalo, ele saiu às pressas, com sua orientadora, talvez, ambos, em busca de outros trabalhos. Eu me mantive na sala, acompanhando as outras apresentações, atenta aos meus interesses profissionais.

Terminada a sessão, saí em busca de um lanche. No fundo do corredor a porta do elevador aberta, ameaçava fechar-se. Corri e seus ocupantes, apenas dois passageiros, fizeram a gentileza de segurar a porta para mim. Entrei e agradeci. Fui surpreendida pela sorte: eram, justamente, ele e sua orientadora. Muita coincidência. Não sei por que, num impulso, sorri, talvez mais para mim mesma. Mas ele sorriu em troca. Não resisti. Soltei o chiste, no melhor francês que pude arranjar. Mesmo sendo minha segunda língua...

- Gostei muito de sua apresentação, mas teria uma crítica a fazer.

Senti que, imediatamente, seu olhar negro e profundo se embaçou. Por sentir-se desmerecido ou por estar ao lado de sua orientadora? Nunca saberei. Mas ele agüentou firme:

- Sim?

Sorri novamente:

- Como você pode pedir desculpas por falar a segunda língua mais linda do mundo? A minha é a primeira naturalmente...

O sorriso de ambos me acolheu. Aproveitei a deixa e perguntei se ele se incomodaria de tirar algumas dúvidas ou acrescentar algumas informações sobre sua pesquisa, em algum momento do congresso. Sua orientadora adiantou-se e disse que teriam imenso prazer e, se eu quisesse, poderia ser naquele momento mesmo. Descemos os três e procuramos uma sala. Desfiei meu rosário de questões, feliz da vida, por poder entrar num mundo de interesses comuns. Pouco depois, sua orientadora pediu para retirar-se pois estava atrasada para um compromisso. Ficamos sós e muito mais que apenas amigos ali mesmo. Durante todo o resto do congresso ficamos juntos, curtindo todos os sabores que um congresso e uma cidade pequena como o Porto pode oferecer, isto é, até as 22 horas da noite, pois, depois disso, tudo fechava. Então, nos escondíamos no único bar-restaurante numa ruela do centro da cidade, que nos garantia um jantar à portuguesa e um bom papo até a meia-noite, prazo em que a cidade, literalmente, virava abóbora.

Estávamos enlevados, sem dúvida, e só notei que ele também se sentia completamente envolvido, na despedida, no último dia. Estávamos abraçados, quietinhos, aconchegados e, naturalmente, já saudosos. Vi suas lágrimas escorrerem por sua face negra. E me lembro que muitas poucas vezes me senti tão enternecida por alguém quanto naquele momento. Foi quando ele se levantou e tirou, de uma pequena bolsa que costumava carregar, um embrulho com papel de presente. Uma lembrança para que eu não o esquecesse. Abri. Era um lindo, delicado e precioso cinto dourado. Ele me olhou e disse:

- Para combinar com aquele vestido que você usou no primeiro dia, na fila de inscrição.

Foi com essas palavras que ele revelou seu interesse por mim, muito antes de eu ter notado sua presença no congresso. Detalhes sutis e inesquecíveis nos passos de minha vida.

Eu não iria morar no Gabão e ele, tampouco, viveria no Brasil, mas foi com essa singela e delicada percepção que ele marcou sua presença em meu coração.

sábado, 2 de abril de 2011

A CORTINA


Considero-me privilegiada, morando em um canto tranquilo de Copacabana, a uma quadra de todo o bulício, sem que ele me perturbe. Mas quando me mudei para esta rua, em 1973, não foi direto para o apto que moro hoje. Foi, justamente, para o prédio em frente, sala e quarto, digamos, um “apertamento” ajeitadinho, bem ao estilo dos antigos apartamentos de Copa.

Minhas janelas davam para outro prédio, cheinho de janelas e, por trás, o morro da ladeira do Leme, do qual só via o topo, mesmo morando no décimo primeiro andar. De minha janela, no entanto, dava para ver um lindo e distante coqueiro, que namorava todos os dias, sem exceção, dando-lhe bom dia, boa tarde e boa noite, como acontece com os enamorados. Um coqueiro solitário, lá no alto que, não sei por que me hipnotizava e me encantava. Soberbo e humilde, altivo e flutuante, cheio de promessas benfazejas, símbolo misto de companheirismo e abandono. Refletia minha alma em seus dias ensolarados ou chuvosos, deixando-se levar pelos ventos e tempestades e brilhando aos raios do sol. De onde moro, agora, consigo ver a mesma montanha, mas em outro ângulo da rua e não vislumbro o meu coqueiro. Será que ainda existe? O fato é que, enamorada e jovem, muitas vezes me punha à janela do quarto para pensar com ele sobre tantas coisas que nem sei.

Um dia, ao me postar à janela do quarto, no entanto, meus olhos distraídos pousaram sem querer numa das janelas do outro lado da rua. Acho que o fiz por causa do movimento e do chamado constante, gritado, que vinha de lá. Era uma menina, bem pequena, que acenava para mim. Uns quatro anos, no máximo. Gritava por “tia” e me dava adeus. Por delicadeza, correspondi à pequena princesinha, achando a idéia generosa e gentil. Mal sabia eu o que isso poderia ter de significado para ela. No começo, na verdade, não dei muita atenção. Depois, no entanto, passei a perceber que a jovenzinha ficava esperando que eu aparecesse à janela, apenas para acenar para mim. No início, senti-me um pouco invadida em minha privacidade, na verdade, na privacidade que eu buscava com o meu coqueiro. Depois, por gentileza, passei a acenar para ela e percebia que era como se ela tivesse, enfim, encontrado alguém com quem brincar.

Lembrei-me de minha infância, no colégio, com tanto espaço para os recreios e jogos e passei a me simpatizar com a pequena jovem do outro lado da rua, talvez sempre presa em casa, não tendo distrações e esperando pela “tia”, apenas para dar-lhe um adeuzinho, de vez em quando. Meu coração passou a sentir uma grande empatia com a nova geração e, talvez, hoje eu entenda melhor a solidão dos pequenos jovens, frente à internet, buscando seus companheiros virtuais desde cedo. Há os saudáveis avanços da tecnologia, é claro, mas também há pais que trabalham o dia todo, muitas vezes deixando essas crianças órfãs de folguedos.

Quantas delas, hoje, saberão jogar queimado, pular amarelinha, brincar de roda, de pique-cola, pique-alto, pique-baixo, pique-esconde, bandeirinha, ping-pong e tantos outros jogos que nos davam um cotidiano onde podíamos nos tocar de verdade, com companheiros de carne e osso, com reações imprevisíveis, não mecanizadas, com as quais o cotidiano nos preparava para o convívio real? Sem contar que nos faziam acabar os recreios suadas e cheias de vida, neurônios em festa, num corpo cheio de boa circulação sanguínea...

Mas deixemos de saudosismos. Voltemos às recordações e a uma princesinha solitária.

O fato é que, na década de 70, os computadores não existiam e, em sua solidão, talvez eu fosse sua esperança de festa. Talvez, quem sabe, eu representasse para esta pequena flor da infância, o que o coqueiro representava para mim. Não me dava conta, no entanto, dessa possibilidade. Só descobri alguns anos depois.

Morei naquele prédio de 1973 a 1978. Digamos que minha princesa deve ter-me descoberto em torno de 1976 e daí por diante, ainda que minha vontade me levasse à janela em busca de encontrar-me a sós com meu coqueiro, dava vazão à alegria daquela pequena jovenzinha. Nunca deixei de acenar-lhe, vez por outra, todos os dias em que ela me buscava com seus bracinhos gentis e seu sorriso sedutor. Para mim, no entanto, não passava de uma gentileza.

Os anos passaram, mas isso sempre persistiu. Nunca tive vontade, no entanto, de conhecê-la de perto. Os acenos de boa vizinhança eram suficientes.

Em 1978, depois de muito procurar, achei o apartamento dos meus sonhos. Digamos que o apartamento me fisgou, pois foi justamente o que aconteceu: o porteiro do prédio em questão, sabendo de minha busca através da cunhada que era minha faxineira, fez a gentileza de tocar a minha campainha e dizer que havia um apartamento à venda no prédio que moro hoje. Apenas me custaria atravessar a rua e já estaria na portaria do tal prédio. Mas a fachada nunca me seduziu e, embora pudesse ver a parte do apto por dentro da janela do meu quarto, nunca me chamou a atenção. A felicidade precisou bater deliberadamente a minha porta, puxar-me pela mão para eu poder enxergá-la.

A compra do apto não foi fácil, visto que o dono era uma dessas pessoas que buscam tirar vantagem até do que não existe. Mas pulemos este pedaço. O bom da história é que vendemos o apartamento onde morávamos felizmente com a rapidez necessária para darmos entrada neste outro, fizemos o famoso financiamento e, seis meses depois, era apenas uma questão de atravessar a rua para transferir a mudança.

É preciso esclarecer que eu não estava indo morar no mesmo prédio da princesinha. O meu prédio era de esquina, o dela ficava em frente e eu estava atravessando a outra rua, para o outro lado.

Confesso que não estava dando importância para a mudança, em termos do que poderia significar para ela. Assim, ao tirar a cortina, apenas acenei gentilmente, numa despedida carinhosa. Não notei sua tristeza, sua angústia, seu desespero.

Esqueci, na verdade, bem rápido da pequena jovem e da mudança. O que mais se destacava eram as saudades do meu coqueiro. Eu realmente não sabia o que poderia estar significando minha mudança para ela.

Um mês depois, no entanto, ao sair do meu prédio, me deparei com um pai e sua filha de mãos dadas. Ao me ver, ele se dirigiu diretamente a mim, dizendo:

- Puxa vida, você nem imagina quem você é para a minha filha!

Olhei a menina, sem reconhecê-la. Encostava-se ao pai, envergonhada, como acontece frequentemente com crianças perto de adultos. Mas não tirava os olhos de mim. Ele continuou:

- Ela é a menina a quem você dava adeus da janela, no outro prédio. Quando ela viu que você estava se mudando, chegou a ficar com febre, ansiosa, pensando ter perdido você para sempre. Mas no dia seguinte, você colocou a cortina em sua nova casa e você precisava ver o escândalo que ela fez, quando reconheceu a cortina, dizendo que você tinha apenas mudado de prédio e não de rua e que não havia perdido a tia. Só que, lá, você não fica na janela e ela fica esperando à toa.

De fato, pela composição do minúsculo apartamento, volta e meia, eu estava a um passo da janela. Neste novo, não só pelo espaço, mas pela disposição do mesmo, raramente eu passava perto da janela da sala. E havia mais uma razão: no apartamento antigo, eu gostava de ir à janela para pensar olhando para o meu coqueiro e, não podendo mais vê-lo, a janela, dando apenas para uma rua tranqüila, perdeu o significado para mim. O prédio da menina passou a ficar num ângulo à esquerda, para mim despercebido.

Eu não podia imaginar o valor que teria o meu adeus para a pequena e solitária menina!!! Fosse hoje, mais madura, eu teria dado muito mais importância ao caso. A menina estava ali, olhando para a sua “tia fada” e eu apenas (apenas!) sorria para ela, sem mais festa do que a de um encontro de vida, uma gracinha, uma coincidência. Nunca tínhamos nos encontrado na rua e eu apenas conversando com o pai, enquanto, na verdade, eu deveria estar dando total atenção à jovenzinha. Só me dei conta disso depois! Posso imaginar a decepção que ela deve ter tido, mas, aí, talvez, já tivesse sido tarde demais. O fato é que, vez por outra, dirigia meu olhar em direção às inúmeras janelas do grande e suntuoso prédio da menininha. Mas, na verdade, não sabia exatamente qual dessas janelas lhe pertencia. E não a vi mais. Talvez a tivesse decepcionado cruelmente. O encontro não lhe deu a dimensão esperada da mesma carinhosa acolhida... ou, talvez, a "estrela", uma vez na terra, tenha perdido o seu brilho. É bem provável que tenha sido isso. Ou os dois.

Nunca mais a vi. Mas quando me lembro, sinto uma dor indecifrável por dentro. A dor de não ter correspondido aos seus sonhos, aos seus anseios, a sua dedicação. Há coisas que fazemos que não tem conserto. Espero que não tenha sido tão triste para ela quanto imagino. Gostaria de vê-la para saber. E dizer o quanto sinto não ter sido uma fada de verdade, uma tia digna de suas expectativas.

Não posso imaginar se ela ainda mora lá ou não. Não sei em qual janela seria, no meio de tantas que compõem o prédio que faz quina com o meu... e também há muito não ostento minha cortina azul. Mas gostaria de saber sobre seu paradeiro, se é feliz, que caminhos trilhou. Pelo tempo transcorrido, deve estar com mais de 30 anos...

Quem sabe, um dia, por acaso, ela me leia e queira acenar, uma vez mais da janela, para mim, ou colocar algum comentário, aqui mesmo. Será muito bem-vinda.

Mas se ela ler e preferir o silêncio, gostaria, apenas, que ela soubesse que, se fui o seu “coqueiro”, por algum tempo, quem sabe seja bom para ela também saber que não a esqueci.