sábado, 26 de março de 2011

DÁ PARA EXPLICAR?


1996. Eu estava em Salvador, num congresso sobre HIV/AIDS, organizado pelo Ministério da Saúde. Naquela época eu era coordenadora de um dos meus projetos favoritos: atendimento preventivo e de acompanhamento a portadores de HIV e doenças sexualmente transmissíveis para a comunidade de surdos. Como me meti nisso? Ora, porque os surdos não tinham acesso à divulgação comum, sempre auditiva e sempre em Língua Portuguesa. Como eu tinha um projetão voltado para a comunidade de surdos e tudo que pudesse envolver processos de comunicação em Língua de Sinais, acabei me envolvendo com isso também.

O congresso estava sendo um sucesso e nosso trabalho foi brindado com um prêmio especial, dada a especificidade do trabalho: tudo era feito em Língua Brasileira de Sinais, desde a divulgação e propaganda, até o atendimento no hospital universitário. Dava um trabalhão. Mas era simplesmente magnífico ver como as coisas andam, nesse país, quando a gente quer. O povo brasileiro é pródigo, generoso, cuidadoso. O projeto conseguiu espalhar-se por quase todo o Brasil, diga-se, por quase todas as comunidades de surdos do país, com ajuda de custo que aparecia de até onde os deuses duvidam. E o Ministério da Saúde, nesse item, foi simplesmente exemplar. Aliás, o combate ao HIV/AIDS, no Brasil, naquela época, foi tão exemplar que chegou a ser reconhecido mundialmente como um dos principais países de excelência na prevenção e no combate ao HIV. Poucos sabem disso. O brasileiro não costuma ver as suas qualidades, infelizmente.

Bom, eu estava lá, no congresso, em plena capital baiana, já tendo apresentado o projeto, às vésperas de vir embora. Mas estava incluído no pacote o direito à diária do hotel até o dia seguinte, sábado, final da tarde. Estava exausta do trabalho e também da noitada que tinha tido com Silvio, o tal que se transformou em cunhado-irmão, o querido marido de Patrícia, que você conheceu no conto “Silvio”. Acabada a labuta e a festa, em vez de ir embora correndo, como quase sempre fazia por conta de compromissos profissionais, marquei meu vôo para o início da noite e resolvi dormir até mais tarde e dar um pulinho à piscina de manhã para relaxar. Na segunda, muito trabalho me esperava por aqui, mas ainda teria o domingo inteiro para me refazer.

Fui à piscina e fiquei pensando em toda a semana. Meu olhar se espalhava pelo mar cujo azul se via do terração e também pelo jovem casal que se encarregava de fazer a alegria dos turistas no espaço da piscina. Os dois jovens, iam e vinham, com seu jeitinho baiano irresistível, nos fazendo sorrir dessa sedução e graça que só encontramos na Bahia.

No final da manhã, fomos brindados com a possibilidade de uma lembrança. Quem quisesse, levaria um colar de flores, desses que se dá os turistas, mas que não são de flores naturais. Havia de várias cores. Claro, eu quis um. Me aproximei e a moça pegou um, aleatoriamente, para me dar. Mas o moço se adiantou, tirou o colar de suas mãos gentilmente e disse:

- Um colar amarelo, para uma filha de Oxum.

Olhei-o espantada:

- Ué, como você sabe?

Sorridente, colocou o colar em meu pescoço e disse:

- Precisa perguntar?

Eu não sabia quem era Oxum. Sequer sabia por que não precisava perguntar. Para ele, deveria estar na “cara”, se é que é pela cara que se vê essas coisas. Mas agradeci pela gentileza e trouxe meu colar com carinho. Ao chegar em casa, no Rio, fui correndo pesquisar: senhora dos rios, cachoeiras, lagos... a mãe da água doce. Sorri da idéia. Filha de Oxum. Bonito, romântico... mas não me satisfiz.

Na segunda, procurei um querido amigo, no setor dos funcionários de áudio-visual da Universidade. Anos atrás, ele tinha me olhado longamente e me cumprimentado com uma pequena reverência. Perguntei por quê. Olhando para minha mão direita que eu quase perdi numa queimadura terrível da qual prefiro não contar a história e de cujas marcas tenho até hoje, ele disse:

- Meu pai já te marcou, ora vejam só!... Um dia, você também vai trabalhar com cura.

Estávamos em 1992 e eu nem sabia o que era Reiki ou terapias orientais. A última coisa do mundo que me passaria pela cabeça, seria me aposentar antes dos setenta anos, com a compulsória do funcionalismo público. Disse, gentilmente, que amava o que fazia e outra coisa não estava em meus planos. Ele apenas sorriu, repetiu a reverência e ficou por isso mesmo.

Pois é... em 1996 eu estava sendo apresentada ao Reiki, primeiro como cliente, depois como aluna dos cursos e, em 1998, já estava aplicando Reiki em amigos. Em 2003, me aposentei para me dedicar exclusivamente a isso. Inexplicável aos olhos da razão.

Mas voltemos a 1996. Me lembrei das observações antigas desse amigo e foi a ele que recorri, desta vez, mais crente e convicta de que existem essas coisas que não sabemos explicar. Na verdade, esse amigo já vinha se tornando, com o correr dos anos, um grande interlocutor de muitas coisas acadêmicas e da vida. Se ele predissera algo que já estava se delineando, saberia me dizer o que significava o que o jovem baiano me havia revelado.

Ele sorriu quando lhe mostrei o colar e me disse:

- Eu sabia que, um dia, voltaríamos ao assunto.

E me deu uma aula completa sobre quem seria essa entidade que se apresentava como sendo a minha maior proteção. Não havia dúvidas, segundo ele, que tudo em mim transpirava Oxum e nunca tinha se aprofundado na questão por conta de minha resposta pouco receptiva.

Pirei. Ele não tinha dito, em 1992, que eu tinha sido marcada pelo “pai” dele? Que história maluca era essa? Outra aula para leigos sobre quem é quem e quantos podem ser... e, o mais estranho, mas muito convincente, era que tudo que ele descrevia combinava comigo: comida que me fazia mal, gostos, etc.

Que mundo encantado... mas me mantive paralela a ele, pois logo antevi que a coisa era mesmo muito complicada e fiquei muito feliz ao saber que eu poderia ser filha, só filha, sem maiores problemas, rituais ou obrigações.

Uns anos depois, indo à casa de minha faxineira – a mesma do conto do “galo” – para levar mantimentos, fui surpreendida, de novo, com o mesmo cumprimento.

Estava na varanda, tomando um refrigerante, quando se aproximou um amigo dela, me olhou e me cumprimentou:

- Salve, filha de Oxum!

Como é que pode?

Eu nunca tinha comentado nadica de nada com ela, não conhecia o tal moço e, portanto, não teria como ele saber da informação. Fiquei olhando meio surpresa, meio estarrecida para essa sabedoria popular sem tamanho, que só poderia nascer, viver e frutificar aqui, nesse país abençoado em sua cultura miscigenada e pródiga.

Quem dá conta desse misticismo?

sábado, 19 de março de 2011

DIGA-ME COM QUEM ANDAS


Na verdade, não sei com quem ando. Sei que ando. Comecei a andar muito cedo, por volta dos 11 meses, segundo dizia a minha mãe, e acho que não parei até hoje.

Com quem ando... com quem andei... nossa... já andei com tanta gente, dos mais variados tipos e jeitos...

Às vezes, paro para pensar nessas coisas...

Já andei com o Reginaldo, aquele aluno “marginal” da escola na zona rural do Município do Rio, onde comecei a dar aulas, assim que me formei. Não sei se você se lembra... o do conto “Reginaldo” . Um “marginal” que me ensinou que confiança está nos olhos e no coração, longe do preconceito.

Andei por favelas (hoje chamadas comunidades) em minhas pesquisas sobre desenvolvimento cognitivo em crianças carentes... lá fiz amizade sincera com pessoas que nem sabiam escrever, que punham seus filhos no cercado junto aos porcos quando saíam para trabalhar porque não tinham com quem deixar... que comiam com as mãos, pois não tinham talheres. Eu PHD e eles analfabetos, me ensinando tanta coisa sobre a cartilha da vida... entrava e saía com passaporte livre, pois “a professora veio pesquisar” . Eles sequer sabiam o que era “pesquisar”, mas a confiança do olhar e o passaporte da amizade diziam tudo e ninguém mexia comigo...

Andei às avessas, com gente do escalão universitário, muitas vezes lutando por direitos humanos até descobrir que para eles isso era só uma fachada a que pouco davam importância... alguns deles apenas se aproveitando da situação para engendrarem lutas políticas para engrandecimento pessoal...

Andei com cocotas em festas socialite me perguntando “o que eu estou fazendo aqui?”.

Andei por aí, meio sem rumo, com pessoas que pouco conheci... tantas vezes buscando os significados da vida...

Andei com místicos para descobrir que não eram tão místicos...

Andei com céticos para descobrir que não eram tão céticos...

Andei só... andei acompanhada...

Como você definiria o que sou? Com quem será que andei, senão comigo mesma durante todo esse tempo, que possa definir o que sou, sozinha ou acompanhada?...

Engraçado... isso era para ser um conto...

terça-feira, 15 de março de 2011

JÁ!


Pois é... já! Um ano de blog. Nem vi passar. Fui escrevendo aqui e ali e, quando vi, tinha postado 52 contos. Eu que pensei que fecharia o blog lá pelos 20... não teria mais contos a escrever...

Vejo que a vida, no entanto, guarda mais recordações do que imaginamos e a memória vai puxando uma aqui, outra ali e você acaba percebendo que viveu muito, não só em anos, mas em conteúdo. Para o bem e para o mal, fico feliz com isso. É como sentir que posso ter passado por tudo, mas... que não caiu no vazio, pelo contrário.

E descobri que ainda tenho muito a contar. Cada vez que me sento olhando para a telinha, me lembro disso ou daquilo e, algumas vezes, fico na dúvida do que escolher.

Então, enquanto os dedos acharem o que teclar, vou escrevendo. Por mais umas semanas? Uns meses? Não sei. A memória dirá.

Espero que possa divertir os seus olhos como me divirto nessas recordações.

E obrigada pelo estímulo... sem você, eu não estaria tão motivada a reviver, reativar e alimentar raízes que, indubitavelmente, não se perdem apenas nas raízes, mas motivam reconstrução...

Tim-tim!

sábado, 12 de março de 2011

O NOIVO (2)


Como prometi na semana passada, o resto do conto sobre meu amor de infância - a bifurcação do caminho:

Num belo (belo???) dia, soube que iríamos nos mudar da Tijuca para o Méier. Eu não sabia onde era, mas qualquer lugar que fosse maior do que a distância de um muro representava o outro lado de um mundo longínquo e desconhecido. Corri em prantos para ele. Eu seria levada embora! O que iríamos fazer? A dor era intensa; o susto, tamanho; a angústia, fatal. Pensei que não agüentaria a força do medo pulsando dentro de mim. O coração explodia, quase não conseguia respirar. Choramos os dois. Muito. Minhas mãos, coladas às dele, suavam. As dele também. Eu não via saída, só via o fim. E o silêncio dele, vê-lo pela primeira vez sem resposta, inaugurou em mim, o conhecimento das forças irrefutáveis dos rios da vida. Primeira sensação de morte. Eu não estava indo embora, estava sendo arrancada da felicidade.

Seus olhos azuis encontraram os meus, avermelhados pelo baque do abismo que a vida urdia contra nós. Sabia o que se passava em sua cabecinha masculina, impotente para me salvar. Sabia, sabia de cor e salteado, como sempre. Sabia de sua dor, no momento, tão profunda como a minha. Não se tratava de um dentinho a ser retirado. Que tipo de carinho poderia ser mantido, acolhido, que amor protegido e resguardado, diante do sacrilégio daquele momento?

Esta é a última lembrança nítida que tenho das palavras de meu doce companheiro:

- Não chore, não vamos chorar. Estamos com seis anos, um dia, vamos ter dezesseis. E quando tivermos dezesseis, vou achar você e já seremos grandes e vamos nos casar.

Não casamos, não nos encontramos. Mas não namorei ninguém, até os dezesseis anos de idade. Paquerei muito, brinquei muito, mas meu primeiro beijo só foi dado, quando, aos dezesseis, finalmente, consegui perceber que o verdadeiro significado de meu noivado era com esse perfil lindo de figura masculina, preservado, para sempre, graças ao convívio com aquele pequeno e doce príncipe de infância.

Vivi a vida, me casei, me separei, namorei muito. A imagem do masculino que ele perfilou, para mim, buscou moldar a visão de um homem companheiro e um parceiro de caminhada, o perfil que você, neste pequeno relato, pode vislumbrar.

Mas a história não acaba aí. Aos dezoito, a vida me fez encontrar a irmã mais velha dele. Coisas que não dá para explicar. Durante a conversa, nos reconhecemos, não me lembro como. Ela me deu o número do telefone deles. Eu não tinha um. O contato estaria, portanto, em minhas mãos, a não ser que a ele interessasse se mover, através da irmã, que sabia onde me achar, pelo endereço que lhe dei, um papel qualquer, talvez perdido em sua bolsa para sempre. Eu estava namorando. Ele, não sei. Não nos encontramos, não nos falamos. Cheguei a ligar uma vez, ninguém atendeu. Não liguei mais. Anos depois, talvez uns dez ou quinze, já casada, buscamos um dermatologista para resolver um problema de pele de meu ex-marido. Por coincidência da vida, era seu tio! Foi ele quem me reconheceu, perguntou se eu não era a menininha, filha do Sr. Joaquim, que havia morado na Rua Marechal Trompovsky, na Tijuca. Eu mesma. Me deu notícias de meu amiguinho, casado e com dois filhos. Perguntei se estava feliz. Ele disse que sim. Perguntei se era ortodontista, como o avô. Ele disse que sim, e dos bons. Sorri. Pedi que lhe dissesse que mandava um beijo e recomendações a toda a família. O avô tinha falecido, ele e o pai (também dentista) trabalhavam juntos no consultório que fora do avô. Era o fio de informação que seria vital para mim, muitos e muitos anos depois.

A vida passou. Me separei, tive outros relacionamentos. Fiz 50 anos. Me lembrei dele, no dia do meu aniversário. Bodas de ouro. Ele também fizera. Uma imensa gratidão brindou meu coração. Imensa. Imensa. Quis mandar um cartão de aniversário, acompanhado da manifestação dessa gratidão que transbordava pelos meus poros.

Busquei o catálogo telefônico. Achei o sobrenome do avô e o endereço do consultório (o tal fio de informação, dado pelo dermatologista, há mais de vinte anos atrás). Daí a achar o número de telefone atual foi um pulo, pois sabia o nome do novo dentista de cor, claro. Liguei. Ele não estava. Tinha outra clínica, também, em outro lugar. Mas eu só queria conferir o endereço. Não queria entrar em sua vida e, sinceramente, não estava pensando nele entrando na minha. Mas havia uma profunda paz, uma imensa gratidão que urgia em se manifestar. De repente, também quis conferir a sua voz. Liguei para a tal outra clínica. Chamei pelo nome:

- Dr. (...), está?

Mas eu já havia reconhecido a mesma voz pelo alô, só que adulta. Ele confirmou:

- Ele mesmo.

Inventei um nome: Maria de Fátima. Perguntei se atenderia o meu filho. Só queria encompridar o papo, conferir o som, no meu coração. A gentileza era a mesma. No fundo, era ele. Poderia mandar o meu cartão, sem problemas. Disse que ligaria para o outro consultório, pois seria mais perto para mim. Motivo encontrado para não marcar nada, para desligar, para não ter de dar um nome de um filho que eu não tinha.

Fiz o que havia me proposto: um agradecimento pela figura tão linda que tinha povoado a minha infância. Não havia mesmo outra intenção. Aos cinqüenta anos, revivendo os caminhos de minha vida, reconhecia nele, muitas de minhas escolhas. Não disse, mas sabia. Mandei o cartão e fiquei em paz. Não dei pistas, não deixei meu número de telefone, apenas o meu endereço de remetente. Lingüista, escrevi de tal forma que ele se sentisse apenas contemplado pela gratidão, carinhosa e delicadamente. Segui em paz. Para mim, havia completado o ciclo, fechado com chave de ouro, não deixando em aberto uma vivência tão linda e tão importante em minha vida. O personagem coadjuvante tinha o direito de saber o quanto fora importante para a formação do meu feminino. Os dias se passaram. Esqueci o fato.

Sinceramente, não pensei que os homens fossem tão curiosos quanto as mulheres ou, talvez, também tão preciosos em suas memórias. Não sei quanto tempo depois, talvez um mês, recebi um telefonema. Uma secretária:

- Um momento, Dr. (...) vai falar.

Dr. (...)? Eu não fui a médico algum... do outro lado da linha, a minha infância se manifesta:

- Você não tem idéia do trabalho que me deu achar você!

Eu ri, com a mesma cumplicidade de quarenta e cinco anos atrás.

- Foi mesmo?

O riso dele também era o mesmo:

- Claro, não sei nada de você, não sei se está casada, se podia ligar sem problemas, passei pela porta de seu prédio um monte de vezes, seu número não está na lista telefônica, consegui um telefone de um vizinho seu que me deu seu número (coincidência da vida mesmo, pois era o único vizinho, no prédio inteiro, que tinha o meu número de telefone...) e coloquei minha secretária para ligar para você direto, mas só caía na sua secretária eletrônica. Quero te ver.

Tudo isso assim, num fôlego só.

Nos vimos, ainda cheguei a ver seu pai vivo, numa das salas de seu imenso consultório. Velhinho, morreu pouco depois de minha visita, mas me reconheceu:

- Ah, sei, você era aquela amiguinha, vizinha da casa da minha mãe...

Sorriu para mim, me abraçou tão carinhosamente que me surpreendi com a emoção que senti. Naquele momento, me senti abraçando as emoções fiéis do passado, vendo nele, o que se tinha conservado de traços imutáveis. D. Mariazinha, a avó, estava viva, com perto de cem anos! Segundo ele, continuava a mesma... como eu gostaria de tê-la reencontrado!... Mas não cheguei a vê-la, morando fora do Rio. Meu amiguinho teve mais irmãos, depois que nos separamos. São cinco filhos, ao todo, quando eram apenas três naquela época. Cheguei a conhecer sua irmã mais nova. Uma gracinha! Também conheci seu filho mais velho. Um belo rapaz, seguindo os passos do pai.

Meu amigo mudou muito, é um homem de negócios, de vida particular muito conturbada, tem lá os seus problemas. Pelos meandros de nossos caminhos, seus princípios de vida se diferenciaram muito dos meus. Traçamos percursos tão diferentes que não consigo reconhecê-lo com os traços de infância. Tantas coisas devem ter acontecido...

Nos falamos por telefone vez por outra. Talvez tenha ido uma ou duas vezes a seu consultório, atualmente tão perto do meu, para um brevíssimo café. Ele também me visitou algumas vezes. Consigo ou tento reconhecer alguns traços, tão poucos, do que restou de meu querido amiguinho... prefiro imaginar que seja feliz, muito feliz, pois era assim que meu coração gostaria de encontrar quem me fez tanto bem.

Brinco ao dizer-lhe que nem ele mesmo conseguiria tirar de mim o que guardo de nossa infância. Mas a gratidão continua a mesma, tatuada em meu coração.

sábado, 5 de março de 2011

O NOIVO


Poucas mulheres puderam, como eu, ter tido um príncipe ao vivo e a cores, sondando seus passos de infância.

E esse não era um príncipe encantado. Era humano. Não saíra dos contos de fadas. Podia tocá-lo a qualquer instante. Talvez por isso, na minha adolescência, enquanto minhas colegas colecionavam retratos dos Beatles e respondiam àqueles questionários com nomes de artistas de filmes, cantores ou outros ídolos, nas questões que investigavam quem indicar como modelo de homem para elas, eu colecionava paisagens, escrevia poesias para um alguém indeterminado, mas bem delineado em meu coração e respondia àquela pergunta “quem você escolheria para se casar”, apenas dizendo: um homem que possa guardar com carinho meu rosto em suas mãos. Eu havia vivido isso... e com intensidade. Estava marcada, tatuada por uma vivência inesquecível.

Apenas um muro me separava da realidade desse encantamento. Sua avó morava ao lado e, já aos cinco anos, ele sabia muito bem com quem iria se casar quando crescesse. Descobri isso numa tarde despregada de domingo. Aos cinco anos, eu só conseguia identificar os domingos, por ver toda a família dele almoçando na casa da avó. Ah... o feijão de D. Mariazinha, de gosto e leveza inesquecíveis...

Meu príncipe estava encarregado de levar, lá de casa, o famoso pão-de-ló, obra prima de minha mãe, para a sobremesa da família. Unha e carne, como diziam, estávamos colados um ao outro quando ouvi sua voz límpida e firme entregando o doce a avó, na frente de todos que estavam sentados em torno da mesa:

- Aqui, vó, o bolo da sogra.

Estava firmado o noivado, com os pais, irmãos, tios e avós presentes.

Engraçado, num gesto espontâneo, não premeditado, por coincidência (?), ninguém da minha família. Desde cedo, refletiam-se os caminhos de minha identidade com o mundo. Mas isso é outra história... Voltemos aos fatos.

Senti o coração bater com força. Eu não sabia bem o que significava, mas sabia que, naquele momento, era para sempre. Minha alegria interior era tamanha que colei os pés no chão para não cair, sorriso por dentro, encabulamento por fora, diante do riso solto e descontraído que esta frase simples e ingênua roubou de todos, acompanhado da observação do avô:

- Ora veja só... escolheu a moça de olhos mais lindos que já vi e de alma irmã a sua, meu neto.

Ele era apaixonado pelo avô, então, qualquer coisa que dissesse, era lei. Estava, pois, firmado e confirmado o compromisso, perante o avô e o mundo. Mas ele era assim, ouvia as coisas com a maior simplicidade do mundo e, pelo menos por fora, agia como um homenzinho miniatura, gigante aos meus olhos, senhor das situações, sabendo muito bem o que fazia. O encantamento estava sempre espalhado por toda a parte, permeando a naturalidade com que ele encarava todos os nossos interesses comuns. O encabulamento ficou apenas por minha conta...

Não havia segredos entre nós, pois líamos os pensamentos um do outro, num relance de olhar. Às vezes, nem isso. Os adultos diziam que nossos corações deveriam bater no mesmo ritmo, tão evidente tudo se fazia.

Lembro-me que ele era ligeiramente mais baixo do que eu, mas o suficiente para incomodá-lo. E na única foto que guardei de nós dois, lembro-me que, sem combinarmos, ele levantou um tiquinho os calcanhares exatamente no mesmo momento em que me encolhi toda, o mesmo tiquinho... o suficiente para que a diferença não aparecesse tanto. Essa era a sincronia de nossas atitudes. Eu não me incomodava por ser mais alta, ele já era grande aos olhos da minha alma, mas não queria que ele se visse mais baixo na foto...

Ele não sabia andar até a pracinha sem ser de mãos dadas comigo. Se algum garoto tivesse a gracinha de me chamar de vesga (eu era estrábica), não importava a altura ou a idade do tipo, ele avançava, leão em sua pequenez, pronto mesmo para bater, dizendo:

- São os olhos mais lindos mundo e ela é muito bonita também!

Um pouco possessivo, confesso, pois eu só podia brincar com ele. Mas, àquela altura, estava ótimo para mim. Era o melhor amigo de folguedos que eu conhecia e ele cuidava para que tudo fosse seguro e confortável. Eu me sentia mesmo uma princesa, sem o saber.

Lembro-me de nossa inocência, de nossa naturalidade, de nossa cumplicidade. Foi com ele que me deparei, pela primeira vez, com a aparência do sexo oposto, no sentido literal da palavra. Apertado, num dia qualquer, ele encostou-se numa arvore e fez ali mesmo o que mais precisava fazer. Olhei encantada para o que jamais vira e apenas disse:

- Que aparelhinho prático! Quero ter um também!

Ele voltou-se sério:

- Você não pode ter um!

Perguntei por que, como se fosse o maior e mais burro impedimento do mundo. Lembro-me de sua solenidade:

- Se você tivesse um, seria um menino e não poderia se casar comigo, quando crescesse.

Pronto, ali mesmo, fazendo xixi, ele conseguiu, num só ato, resolver suas necessidades práticas e momentâneas, desfazer os complexos que algum adepto de Freud levaria anos para tirar de mim quando eu crescesse, me conceder o conhecimento saudável das diferenças e me dar a alegria inenarrável de tê-lo como parceiro. Ficou tudo certo, no mesmo segundo, e eu jamais iria querer ter aparelhinho prático algum.

Chegamos em casa (a casa da avó) e a primeira coisa que ele fez foi contar a aventura à velha senhora (adultos grisalhos são velhos para crianças de cinco anos ainda mais quando já são avós...), brincando ingenuamente com a minha ignorância. Ela sorriu e, sábia, confirmou as informações daquele menino tão esperto...

Não sei exatamente como aconteceu, mas deve ter sido no mesmo dia: tomamos banho juntos, em sua casa, dentro de uma banheira daquelas antigas, colocadas naqueles banheiros brancos e monstruosos, típicos das casas tijucanas da década de cinqüenta. A água era fria, embora a chuveirada fosse das boas. Mas ele parecia intuir minhas necessidades tão logo surgissem e mal nos ensaboamos e saímos da última chuveirada, a primeira coisa que fez foi saltar da banheira, molhando todo o chão para pegar uma toalha, me enrolar e me esfregar bastante as costas, dizendo a avó:

- Ela tá com frio, vó, arrepiada, vamos secar depressa.

Não me lembro de outro banho, mas a gentileza deste foi suficiente para guardar mais esta pérola em meu coração. Para a sábia e esperta avó, talvez para tirarmos qualquer dúvida sobre a sexualidade infantil; para nós dois, apenas mais uma oportunidade de estarmos juntos e felizes. Tal era a nossa inocência e, talvez, tal a certeza, entre nós, de que, provavelmente, tudo teria o seu tempo.

Eu ficava de castigo com freqüência. Meus crimes se resumiam a apenas um: não queria comer. Ficava, por conta disso, horas a fio (para mim, horas... e... infindáveis), num canto da sala de visitas, de cara para a parede. Mas de nada adiantava. Depois disso, a comida, com mais razão ainda, simplesmente não descia. Nos dias de castigo, meu pequeno amigo se negava a ir brincar na pracinha ou ia apenas para catar umas sementinhas dessas de estalinho que as crianças gostam de pisar (ou gostavam, quando infância nas praças ainda existia). Colocava tudo numa caixinha de fósforos e me esperava sair do castigo. Então, pulava o muro e espalhava pelo chão do meu quintal aquele tapete de sementes para que pudéssemos nos divertir juntos, pisando uma a uma...

Meu estômago era travado por razões advindas da família complicada que povoou a minha infância. Coisas já analisadas, que não puderam ser resolvidas com a mesma simplicidade de quando quis ter um pênis ao ver o de meu noivo, pela primeira vez. Afinal, os terapeutas precisam de nós para consumarem sua vocação... e nós, muitas vezes, precisamos deles para nos olharmos melhor no espelho. Agradeço sinceramente ao meu por isso.

Mas voltemos ao caso: meu estômago era travado. Não era birra nem teimosia. Era travado mesmo, fechado a sete chaves e eu, literalmente, diante de um irmão muito mais velho e prepotente olhando sério para mim dizendo que, naquele dia eu ia comer de qualquer jeito, ficava pensando por que não poderíamos nos alimentar de ar e brisa e não de comida. Minha teimosia era essa... e castigo sempre, o que não adiantava muito, pelo contrário.

Meu noivo, no entanto, era paciente e sempre me esperava sair do suplício. Estava a postos, do outro lado do muro, esperando para me ver. Quantas vezes (inumeráveis!), ao pular o muro e perguntar se já tinha almoçado, diante da minha negativa, dizia que não tinha almoçado também e que estava me esperando. Eu lhe dizia que não iria comer de jeito nenhum, mas, jeitosinho, ele me convidava apenas a ficar olhando, enquanto ele comia. Foi assim que conheci o gosto inesquecível do feijão de D. Mariazinha. Uma garfada para ele e, talvez, dez para mim, tiradas do mesmo prato. Hoje, penso que, talvez, ele já tivesse almoçado todas aquelas vezes e usava esse ardil para me fazer comer... e eu comia tudinho. É bem provável que fosse lá idéia da D. Mariazinha, experiente da vida e das crianças. Fosse o que fosse, ele cumpria seu papel, com a leveza de um pequeno anjo.

Conversávamos sobre tudo... eu não me lembro que tudo era esse, mas ouvia os adultos dizerem que esses dois vivem conversando o dia todo, não sei o que tanto eles têm para assuntar... Tínhamos nosso canto para conversar. Sempre o mesmo na casa da avó e também sempre o mesmo, quando era no meu quintal. Lembro-me, como se fosse em um filme, da avó que olhava da janela da cozinha e, de vez em quando, sorria para nós. Ninguém se aproximava, nossas conversas eram íntimas, por certo, e muito longas e respeitadas por todos. Afinal, éramos noivos. Como eu gostaria de saber, hoje, o que tanto tínhamos para falar, aos cinco ou seis anos de idade...

Aliás, o aniversário de seis anos dele foi inesquecível. Tantas e tantas crianças, correndo de um lado para outro... e, por incrível que pareça, só me lembro de um único e contundente detalhe: meu amigo, perdão, meu noivo, com aquela cara que eu bem conhecia nele, de quem vai aprontar alguma, se aproximou de mim, com dois alfinetes na mão:

- Vamos sair furando as bolas de todo mundo?

Coisas de menino... mas essa menina, aqui, muito séria redargüiu:

- Isso não se faz, é maldade, eles vão ficar tristes e chorar.

Ele não era menino de abrir mão de seus caprichos... mas também não era príncipe de desonrar os desejos de sua princesa. Eu acho mesmo que eu sempre o colocava em maus lençóis consigo mesmo por causa disso, mas só me lembro desse fato, em particular. Sumiu. Mais um pouco, ele voltou, com os dois alfinetes: estava resolvida a história: ele tinha falado com a mãe e conseguido tirar mais um bando de bolas de gás dos enfeites da festa e estava tudo certo: nós furávamos e, logo depois, oferecíamos outra. E assim foi feito para a alegria dele e minha. Danadinho...

No cotidiano, brincávamos de casinha e ele sempre ia fazer as compras, trazendo pedacinhos de folhas e flores para minhas panelinhas de brinquedo. Também nos divertíamos com corridas de carrinho e outras coisas de menino, dos brinquedos fantásticos que ele trazia da casa de sua mãe para nosso devaneio.

Meu homem já sabia o que seria quando crescesse: ortodontista, tão bom quanto o avô. Vivia namorando o boticão, as pinças, a maleta, o jaleco e tudo mais que faz do dentista um médico de grande parte de nossas amarguras da infância e da adultícia. Eu não tinha nenhuma dúvida de que ele seria o melhor dentista do mundo. E foi por isso que, quando meu primeiro dentinho amoleceu, foi para ele que corri. Este foi o único momento, em toda a nossa infância, que me lembro de nos termos enfiado atrás da porta, às escondidas. Ele, com as mãos impecavelmente lavadas, eu e o boticão do avô.

Para mim, foi o único momento em que me senti em risco, mas minha confiança nele era mesmo inabalável. E foi tecnicamente, com perícia inusitada que meu primeiro dente foi arrancado num desses domingos familiares, por esse profissional precoce. Só então - terminada a operação que, diga-se de passagem, não doeu nem um pingo - ele se aproximou do avô, sussurrou-lhe ao ouvido e o trouxe puxado pela mão para a saleta de visitas onde havia me deixado, olhando de longe, mão na boca, pressionando um algodão contra o orifício deixado pelo dente extraído. Mostrou o feito e perguntou se estava tudo bem, apresentando o dente retirado e pedindo que o avô fizesse o exame de minha boca. Extração perfeita, diploma-mirim concedido, diante de toda a família, sob a voz de comando do avô, orgulhoso da traquinagem perfeita de seu neto, incluindo o cuidado profissional da consultoria posterior. Perdi meu primeiro dentinho, mas não perdi a ventura do amor, da dedicação, do cuidado.

As aventuras se perderiam, em linhas incontáveis, mas o que foi posto é mais do que suficiente para mostrar o quanto esse pequeno menino, de grande estatura para mim, contribuiu para a imagem do masculino que trago em meu perfil psicológico. É suficiente, também, para que entenda o que foi nossa despedida, comandada pela tranqüilidade desse meu pequeno grande herói.

Mas está ficando muito longo e o melhor está por vir. Conto o restinho na semana que vem.