sábado, 25 de setembro de 2010

LEGADO


Há muitos anos atrás (1986), uma amiga me pediu que eu escrevesse algo sobre a Grécia, pois ela desempenhava, naquela época, uma função importante em um dos grupos do Rotary. Não me lembro bem, mas parece que iriam receber em uma das reuniões alguém importante do país, provavelmente o cônsul ou algo assim.

Escrever alguma coisa sobre a Grécia... minha cabeça pirou. Não sabia nem como começar! Andei cozinhando a idéia por uns dias. Sentava, puxava um papel, rabiscava algo que eu pudesse achar que interessaria a um cônsul... mas... falar da Grécia a um grego! Ai, meus deuses... nem sob a proteção de Hermes eu conseguia achar algo que prestasse!

Qualquer coisa que eu escrevesse sobre história, mitos, literatura estaria fora de cogitação... me sentiria como ensinando o padre nosso ao vigário!

Elogiar? Como? Dizendo o quê? Eu não desempacava do lugar... estive prestes a telefonar a minha gentil amiga e dizer que sentia muito, mas o texto não saía!

Um dia, voltando do trabalho, tendo dado aula o dia todo e, naturalmente, me esquecido por completo, pelo menos por algumas horas, da questão, acho que fui atingida por uma seta enviada por Eros a mando de Afrodite, naturalmente. E fui capturada, ou melhor, lembrada do que, na verdade, mais representava minha ligação com a Grécia: meu amor por ela.

Então, que se danasse o cônsul (me desculpe, hoje, minha amiga)... eu iria escrever sobre o meu amor pela Grécia! Se ela não gostasse que jogasse fora... eu jamais saberia mesmo!

Cheguei em casa ávida por um papel e o texto saiu assim, de pronto, sem pestanejar, como se já estivesse impresso em meu coração.

E foi justamente esse o texto que eu achei, semanas atrás, numa daquelas arrumações malucas que resolvemos fazer em papéis antigos. Estava lá, amarelado pelo tempo. O texto, no original e, também, o folder representativo da tal reunião, onde ele foi generosamente impresso pelos organizadores do evento. E foi por causa do achado desse texto que acabei escrevendo os meus dois contos das duas semanas passadas.

Uma vez motivador de minhas lembranças, aí vai ele, confirmando o meu amor e, principalmente, minha admiração por este país, berço da civilização ocidental. Imagino que seria assim que a Grécia nos falaria hoje, como uma mãe, deixando o seu legado a seus descendentes:

LEGADO

Minhas pedras publicam
a silenciosa angústia
da poluição que as corrói,
mas sobre essas pedras,
teus primeiros passos de terra ocidental:

de Atenas te dei
a Arte Maior,
remodelada por ti,
e o eco das vozes
de Ésquilo, Sófocles
e Eurípides;

de Creta te dei
um exemplo de paz,
de sabedoria e de silêncio:
a gloriosa paz minóica
de um povo misterioso e são;

da Jônia te dei
as ciências primeiras
do mundo ocidental,
suportes de ouro,
o teu pedestal;

de Epidauro te dei
meu teatro ilustre
de arquitetura sem deslizes
e o templo-hospital
da avançada técnica ancestral;

de Delfos te dei
o coração do mundo
no templo de Apolo:
oráculo da Antiguidade,
exemplo de fé;

de Elêusis, de Micenas,
de Corinto e de Esparta,
de Tirinto, de ítaca
e de cada ilha,
das três mil, eu te dei
o meu espírito,
os meus princípios,
a minha fé em ti.

Minhas pedras publicam
a silenciosa angústia
da poluição que as corrói.

Mas sobre elas deixei os frutos
de filosofia, arte e ciência,
berço que te dei,
legado de mãe
para o teu mundo
de modernidade e técnica.

sábado, 18 de setembro de 2010

COMO O FUTEBOL ME SALVOU


A Grécia é, sem dúvida, a cada passo, um poço de surpresas, as mais diversas. Se você não foi, não deixe de ir. De preferência, conhecendo um pouco de sua cultura ancestral, suas lendas, referências sobre os lugares. Sentirá suas raízes, com certeza e, por que não, sentirá detalhes desse povo que jamais esquecerá. O povo grego é surpreendente. Em todos os sentidos. Um deles, o de saber ser bom anfitrião, como constatei em Creta, ilha do Palácio de Knossos que fiz questão absoluta de conhecer.

Tudo começou com o único voo diário para a ilha, às cinco da madrugada. Os planos eram de visitarmos as ruínas de manhã e o museu à tarde. Como só haveria um voo de volta à noite, poderíamos fazer tudo com muita calma, já que não teria mais nada a fazer por ali.

Os sítios arqueológicos só abrem às sete horas. Chegamos a Heraclion, centro da cidade, perto das seis horas e aí foi a nossa primeira surpresa. Ninguém por ali falava língua alguma que não fosse grego. Ninguém, portanto, para dar informações. Estávamos em 1977 e logo descobri que ninguém provavelmente se arriscava a ir a Knossos sem ser em excursão. Felizmente, no entanto, a cidade era mínima e, embora eu não falasse uma palavra de grego moderno, pelo menos, sabia ler placas, entender, e escrever nomes. Isso foi o suficiente para eu escrever o nome Knossos em alfabeto grego num papel, mostrar a um transeunte e ele me apontar um ponto de ônibus que descobrimos ser um ponto de ônibus só porque ele apontou. O ônibus, de fato, chegou logo e fomos sacolejantes, mas felizes, rumo às ruínas de meus sonhos. Era um dos pontos altos da ida a Grécia para mim, já que a civilização de Knossos é considerada como uma das mais importantes civilizações da antiguidade.

A chegada ao palácio deu-se logo. Não haviam chegado outros visitantes. Provavelmente, viriam em excursões, a partir das nove horas. Ótimo, teria o palácio só para mim. Meu ex, como bom engenheiro, sentou-se para abrir o mapa e entender a lógica das ruínas. Eu já estava dentro delas, dizendo a ele que sabia perfeitamente onde era cada lugar, cada cômodo, cada escada, cada detalhe. E, enquanto ele, titubeante, se aprontava para me seguir, eu já estava escadas acima e abaixo apontando em êxtase a sala do trono, o que restou da cozinha, os aposentos reais, contando as lendas, mostrando os labirintos que inspiraram a lenda do minotauro. Eu estava radiante como um pintinho no lixo, andando para lá e para cá com a intimidade de quem morara ali por muitas e muitas vidas, cidadã livre e feliz. Mostrei-lhe o teatro, os caminhos, o trono, os corredores, a sala dos escudos, os aposentos da rainha, os banheiros, os resquícios dos encanamentos de água, fazendo questão de lembrar a ele que ali havia banheiros, em pleno século XV antes de Cristo, enquanto que, em Versailles, século XVII depois de Cristo, os reis faziam suas necessidades em pinicos e nem pensavam em ter água corrente, apesar de todo luxo francês.

Inebriei-me fitando a sala do trono, singela e simbólica, com um mural de afrescos que lembram algo entre a matéria e o espírito. Contei-lhe a lenda do minotauro e logo depois a versão histórica. Descrevi, enfim, a ascensão e queda da dinastia da chamada paz minóica e dos dias gloriosos que a Grécia vivera por conta do domínio dessa paz por toda a extensão do Mediterrâneo.

Depois dessa manhã de luzes, é claro, urgia almoçar. Caminhadas em pleno sol, idas e vindas, exigiam a volta ao centro da cidade, um almoço, um bom descanso, para enfrentarmos um museu com novas surpresas. Meu ex não é lá chegado a museus, mas diante daquela civilização tão cheia de luzes, estava curioso por conhecer os artefatos e tudo mais que envolvia essa civilização de sonhos.

Hora do almoço, centro da cidade. O que escolher? Tudo parecia muito singelo e o lugar mais aprazível passava por pouco da estrutura de um bar, com cadeirinhas e mesas do lado de fora. Parecia limpo, resolvemos tentar. Foi aí que começou o problema para mim. O cardápio veio, mas... para minha surpresa: em grego de um lado e... em alemão de outro! Claro! Quem se despencaria para uma ilha dessas que não tinha nada na época, sem ser em excursão, com o intuito de visitar ruínas? Só mesmo uma professora de cultura clássica, logo se vê... e, pelas características do cardápio, arqueólogos alemães...

Meu ex, que não deixava passar nada, apenas comentou:

- Ué, você não é professora de greto? Me traduz, aqui, o que está escrito.

Saber ler eu sabia, pois basta conhecer as letras do alfabeto grego que qualquer analfabeto sai lendo grego sem pestanejar. Mas dizer o que significava eram outros quinhentos! O grego moderno é mesmo uma língua tão diferente do grego clássico como o latim é do português! Ademais, meu vocabulário de grego, mesmo o clássico, não se especializara em cardápios e comidas e, sim, em artes literárias e clássicas.

Meu ex, no entanto, não se apertou. Apontou um prato qualquer. Para quem come pedra sem passar mal, como era o caso dele, qualquer prato seria uma aventura. Eu, no entanto, de estômago tão delicado, estava mesmo em apuros.

O garçon, solícito, tentava ajudar sem sucesso. Pedi com gestos, que ele tentasse falar bem devagar. Quem sabe, atentando para a raiz das palavras, eu conseguisse adivinhar alguma coisa. Felizmente, achei que tinha entendido que ele estava perguntando de onde éramos.

- Brasil, arrisquei, achando que seria a resposta.

Era. Seu rosto iluminou-se:

- Pilí, Jirzin, Tuston.

Traduzi para meu ex, imediatamente:

- Pelé, Jairzinho, Tostão.

O homem, iluminado, me puxou da cadeira, me abraçou efusivamente. Pelo que entendi, eu acho que ele pensou que o Brasil deveria ser do tamanho da ilha de Creta e, provavelmente, eu deveria topar com Pelé, Jairzinho e Tostão a cada esquina, tomar cafezinho com eles ou coisa assim. O fato é que o futebol nos salvou, além, é claro de sermos brasileiros. Ele me levou pela mão para a cozinha, gesticulando e falando alto com todos, todo alegre e feliz. Sorrisos por todos os lados, meu ex-marido atrás de mim, sem entender muito o que estava acontecendo.

Oportunidade de vermos a cozinha por dentro, com tudo limpinho e organizado. Pelo menos, estávamos em boas mãos. As bandejas com os pratos de todo o cardápio, já cozidos e prontos, em prateleiras refrigeradas, a nossa disposição. Foi então que entendi: era para eu apontar o que queria comer!

Vi uma espécie de lasanha e apontei interrogativa. Ele logo respondeu:

- Moussaka.

Ok, prato típico, instruí meu ex, dizendo que era uma espécie de lasanha que levava carne moída.

- Se é prato típico quero provar, adiantou-se ele. Como se eu não soubesse a resposta de antemão...

Para mim, era mais complicado. Além da carne, eu não sabia o que teria e me parecia um pouco gordurosa. Vi, então, uma espécie de carne cozida. Mas... do que seria? Eu queria me arriscar a pedir, mas não tinha como perguntar de que tipo de animal se tratava. Foi então que tive a idéia de perguntar:

- Múúúúúúú´???

E o garçon acenando "não" com a cabeça, respondeu:

- Mééééééé!!!

Rimos muito! Mas estávamos nos entendendo. Pedimos, então, uma moussaka, um "méééé" e apontamos para as bebidas. Fomos servidos como reis, com todas as gentilezas e aparatos de parentes próximos de astros do futebol brasileiro.

Dali para o museu, tão espetacular que qualquer descrição deixaria a desejar. Até meu ex ficou deslumbrado com os apetrechos usados por uma civilização de XV séculos antes de Cristo, apontando alfinetes de fralda, utensílios domésticos que usamos hoje em dia, carimbos os mais diversos, jóias bordadas por ourives do mais alto gabarito.

Quase ao anoitecer, de volta ao mesmo restaurante, fomos imediatamente reconhecidos e o mesmo garçon veio lá de dentro perguntando sorridente:

- Moussaka kai mé?

Pedi duas moussakas, pois já tinha experimentado a do almoço e achei adequada. Nem precisei pedir ou apontar para os refrigerantes. Ele tinha guardado nossas preferências.

Ficamos por alí até próximo a hora do voo. Encostei-me, quieta, em uma das amuradas da praça, enquanto meu ex cochilava. Fiquei pensando como podem os povos unir-se em linguagens de amizade, amor e boa vontade. Perdi-me em pensamentos, olhos nas embarcações do Mediterrâneo, enquanto os últimos raios de sol iluminavam aquele mar translúcido e puro.

Pensei nas guerras de todos os tempos, pensei na paz. Pensei nos diversos períodos e civilizações que povoaram este país de tantas histórias e tantos ancestrais. Encostada ali, naquele entardecer, no último dia de uma visita de sonhos, buscava o resumo de anos de estudo nas emoções vividas em apenas dez dias, sobre esse povo cuja cultura enfeitiçou meu coração.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O DRACMA


Ter sido professora de Cultura Clássica, de Grego e não ter pisado na Grécia, teria sido como ser carioca e nunca ter ido à praia.

Meus olhos pareciam duas câmeras que filmavam sem parar ou duas contas de luz iluminadas pelo êxtase do encontro com o divino. É a forma mais próxima do que consigo conceber para descrever o que foram aqueles dez dias em contato com a terra dos deuses, arquétipos fundadores de nossa cultura ocidental.

Calor de 45 graus, mas quem se importa? Subi sedenta ao Parthenon, tão logo cheguei, tendo tido apenas tempo de trocar a roupa de viagem por sandálias e bermudas. Respirava cada pedra, cada som, cada vestígio do que fora e é a base de tantos fundamentos de meu conhecimento.

Eu não entendia nada do que diziam, pois o grego moderno é incompreensível aos meus ouvidos, mas estar ali, ouvir, ver, respirar e sentir aquela terra que povoara os meus sonhos, me fazia sadia e feliz de corpo e de espírito.

Minha alma voou pela Agora (Praça Central da antiga Atenas), buscando as pegadas de Sócrates com seus discípulos. Por ali teriam passado, também, não sei quantas vezes, Aristóteles, Platão, Heráclito, Pitágoras, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Péricles, tantos, tantos!... Eu conhecia cada história, cada detalhe dos montes de livros que havia lido e buscava, in loco, a constatação de minhas leituras. Tudo ali, ao meu sonhado alcance.
Mas não é objetivo deste conto, um passeio puro e simples ao eruditismo. Longe disso. Busco a recordação do carimbo humano, em duas dentre as várias passagens interessantes e inesquecíveis para mim. Uma delas foi marcada pela visita à única ilha que visitei, com tão poucos dias a minha disposição: Creta - o berço do Palácio de Cnossos, da indescritível civilização minóica, aquela do mito do Minotauro; a outra foi marcada pela visita ao teatro de Epidauro para a qual eu guardava um dracma, moeda grega, para um teste inesquecível. Vamos a elas.

Em 1977, saindo de Atenas, a única língua que você encontrava disponível para contato era mesmo só o grego. Eu não entendia nada, como lhe disse, mas, felizmente, conseguia ler. E, ao ler alto o nome dos lugares, os reconhecia nos mapas. Acresce que os lugares mais conhecidos tinham placas em grego e em inglês, o que facilitava um pouco. Eu não queria excursões. Seria quase um sacrilégio render-me a elas, com guias turísticos tocando as pessoas como gado, rapidamente em busca da hora do almoço e das compras. Eu tivera uma amostra, logo no segundo dia, único em que pegamos, meu ex-marido e eu, uma excursão a Delfos, o oráculo sagrado da antiguidade, sob a proteção de Apolo. Queríamos ver a qualidade das estradas para nos decidirmos pelo aluguel de um carro. A viagem de ônibus foi ótima, estando Delfos a 150 quilômetros de Atenas. Mas mal chegamos lá, atestamos que a visita se resumiria a meia hora para vermos o templo e as ruínas, mais meia hora para o museu. Depois disso, seríamos deslocados para outra cidadezinha para o almoço e compras, sendo destinadas a isso, três horas. Ora, eu teria atravessado 150 quilômetros para comer e fazer compras, tendo como brinde uma olhada nas ruínas... e não o contrário!

Desisti imediatamente do almoço e acompanhamentos e desfrutei cinco horas inteiras, desde o banho na fonte Castália, a quinhentos metros dali, até a passagem pela via sagrada, por onde o mito de Édipo atesta sua viagem sagrada. Seguimos então à visita ao templo. Merecia uma parada para um sanduíche e ida ao museu. Mesmo assim, o tempo passou voando, comigo contando a cada passo, ao meu ex, as lendas, mitos e histórias que enfeitam esses lugares sagrados. Foi o suficiente para eu ver como eram os caminhos e me sentir segura para ser a guia turística do casal, nas próximas aventuras. As estradas são belíssimas e, com minha leitura correta das placas, o aluguel de um carro foi totalmente suficiente para todas as outras aventuras que, na verdade, foram muitas. Destaco, no entanto, duas. Vamos a elas:

A volta ao Peloponeso deu-se no dia seguinte à ida a Delfos, com um fusca alugado para visitar os sítios arqueológicos: Corinto, Micenas, Tirinto, parada para o almoço em Daphni com direito a uma ida a Tolon para ver o mar de pertinho e, finalmente, Epidauro - para visitar o imenso teatro e o templo de Esculápio - pai da medicina - e o museu de mil apetrechos que deixaria de queixo caído os mais modernos cirurgiões: agulhas e pinças cirúrgicas em pleno século IV antes de Cristo. Mas o ponto alto foi mesmo o teatro de Epidauro, onde eu testaria o meu dracma.

Eu tinha lido em livros e dito em minhas aulas que o tal teatro era imenso, com capacidade para 15 mil pessoas e de uma acústica perfeita. Tão perfeita que, sem nenhum aparelho amplificador ou qualquer outro recurso, era possível ouvir o farfalhar de um papel celofane ou o tilintar de uma moeda caindo no meio da arena, mesmo que a pessoa estivesse no lugar mais alto e mais distante do centro. Eu dizia isso, é claro, com a maior convicção de mestre, mas sempre tomando o cuidado de citar que tinha lido em livros. Estando lá, minha ansiedade era poder dizer que acreditava piamente nisso, como na lenda de Juca Pirama, quando falava aos seus curumins:

- Meninos, eu vi!

Pois é... chegando a Epidauro e vendo aquele monumento de teatro, imenso, alto, encravado na montanha, senti minha respiração mudar. O teatro, por si só, fora os comentários, já seria o suficiente para sentir todo o encanto. E funciona até hoje, no verão, reproduzindo peças gregas dos tempos de então. Infelizmente, não assisti a nenhuma, mas, naquele momento, só queria conferir. Tirei da bolsa o meu dracma, que desde o Brasil estava reservado para este fim. Coloquei-o na mão de meu ex-marido e saí desabalada arquibancada acima. Queria que ele fizesse o teste comigo. Havia muitos visitantes andando para lá e para cá, em diversas línguas, uns falando mais alto que os outros. Conforme eu subia, sentia que podia separar cada voz, inclusive a de meu ex, preocupado com meu atropelo. Ele ficara no centro da arena, esperando que eu subisse e, a cada passo, ouvia sua voz com nitidez:

- Devagar, não tem pressa, calma.

Nítida e alta, clara e límpida, separada das outras, sem confundir-se com as dos outros visitantes, sem ecos, sua voz acompanhou a minha subida. Quando cheguei ao último piso da arquibancada, virei-me. Vi-o lá embaixo. Estava tão alto que apenas o distinguia como uma miniatura no centro da arena.


Fiquei emocionada, imaginando os atores da peças gregas em seus coturnos para ficarem mais altos, com máscaras, encenando as peças de Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes... mas a curiosidade sobrepujou o sonho e logo falei, sem gritar:

- Deixa o dracma cair!

O gesto da mão obedeceu, mas eu nada ouvi. Embora achasse a afirmação meio lendária, confesso que fiquei um pouco decepcionada. E minha voz, mais tímida, reclamou lá de cima:

- Que pena, eu não ouvi.

Mas meu ex (como se eu não o conhecesse!), respondeu:

- Não joguei.

Na verdade, ele estava testando o meu ouvido, mas juro que tive ímpetos de esganá-lo!

- Joga então, ora essa !

Foi então que ele soltou a moeda. Eu não podia vê-la a tal distância, mas ouvi, sim, seu tilintar. Para ser mais precisa, caiu e quicou.

- Caiu e quicou, falei eufórica lá de cima.

Ele abaixou-se, pegou a moeda, olhou para mim e, engenheiro como era, gritou estupefato:

- Essa não! Essa eu quero ouvir...

E se destrambelhou numa corrida lá para cima, mandando que eu descesse e fizesse o mesmo.

Dali, ficamos de camarote para observar os guias turísticos que começaram a chegar, amassando pedaços de papel celofane e fazendo gracinhas as mais diversas para provar o milagre da acústica construída por esse majestoso povo grego, pai da cultura ocidental. Quem olha por qualquer ângulo, fica mesmo perplexo com tal perfeição.

Mas estou me estendendo demais. Conto a história de Creta na próxima semana.

sábado, 4 de setembro de 2010

MENINICE


Aquela rampa era um desafio a minha meninice. Nunca me neguei ser criança, mas vamos combinar que uma doutora em lingüística, pós-doutora em educação, coordenadora de pós e com mais de quarenta anos de idade não iria combinar muito com estripulias infantis no meio do ambiente acadêmico.

Proibido não seria, mas faltaria nadica para me considerarem uma biruta, em pleno ambiente universitário. Mas aquela rampa era mesmo um desafio a minha meninice...

Cada vez que passava por ela, e eram muitas vezes por dia, não conseguia deixar de me lembrar de minha infância, no colégio. Infância nada... fiz isso até sair de lá, aos dezoito anos... tomando impulso, dando uma corrida e me deixando escorregar pelo piso daqueles corredores compridos, lisos e brilhantes. A sola dos sapatos escolares era de borracha, mas usávamos os chinelões de flanela para fazermos isso. Que delícia! E aquela rampa roia minhas entranhas desafiando meus sapatos de sola de couro, subindo e descendo por elas, sentindo seu chão liso e tentador. Ah, um dia, jurava que sim, iria tomar um bom impulso e me deixar levar por ela, escorregando rampa abaixo como uma surfista de solo.

Mas mantinha a linha, diante de alunos e colegas, sustentando a chamada “postura acadêmica”.

Um dia, fiquei até mais tarde, por conta de umas notas que queria passar para o diário de classe e já deixar na secretaria. Eu estava na sala do departamento e não vi a hora passar. Quando percebi, já eram 22.30, as aulas tinham terminado e a secretaria estava fechada. Não era muito seguro andar sozinha por aqueles corredores imensos e escuros da universidade, mas eu tinha mesmo me distraído. A melhor parte da história é que tinha conseguido terminar o trabalho e não precisaria voltar no dia seguinte só para entregar as notas.

Passei os diários de classe por baixo da porta da secretaria e me apressei, rumo aos elevadores, para sair rapidamente do prédio, evitando demorar-me mais do que o estritamente necessário. Poucas luzes, silêncio, mas, sobretudo falta de transeuntes aconselhavam cuidados com a minha segurança.

Foi, então, que passei pelas rampas. Estavam ali, tentadoras. E a criança não resistiu. Eu estava no décimo primeiro andar e se não aproveitasse a oportunidade, quem sabe, única, não poderia fazer isso de novo. Minha meninice sorriu e me imaginou escorregando por elas por onze andares, um atrás do outro... que festa!

Não resisti. Tomei impulso e não pensei duas vezes: surfei do décimo primeiro para o décimo e meio, já que as rampas são dispostas de meio piso a meio piso. Que delícia! É claro que já tinha decidido, por dentro, repetir a dose... e... se fosse até o primeiro andar assim, seriam 22 rampas! E num dia só!

Depois de esperar por tantos anos, nenhum premio me pareceria mais adequado. E lá fui eu, rampa por rampa, sentindo meus sapatos deslizarem, com aquele barulhinho característico de se arrastarem pelo solo liso. Estava radiante, feliz, solta, finalmente. Como diz o dito popular, tirando a barriga da miséria e tendo a minha infância como única platéia!

Entre o primeiro e o térreo, no entanto, ao me deparar com a rampa, antevi um vulto meio na sombra, meio na luz. Passava, mas ao me perceber, parou para ver quem era. Estava no térreo e eu me dirigiria a ele, se descesse.

Minha alegria interior era tanta que nem liguei. Não pensei em perigo. Como ele estava no térreo não me inspirava cuidados. Era o andar onde ficava a central dos seguranças noturnos, bem ali, à beira da rampa. Talvez até fosse um deles e nem saberia quem eu era e... se soubesse, bem... que se danasse... não iria deixar de aproveitar a raspinha do tacho. Tomei impulso e desci, surfando minha última rampa, radiante por dentro, compenetrada por fora. O vulto, parado, me aguardava. Se ele não saísse dali, minha escorregada iria acabar bem a sua frente. Foi o que aconteceu e eu me deparei nem mais nem menos com... um dos sub-reitores bem meu conhecido, o de pós-graduação. Logo comigo, uma das professoras-membro de seu seriíssimo Conselho, que se reunia mensalmente para analisar projetos de pesquisa. Ai meus deuses...

Mas minha meninice sorriu. Na verdade, tão forte quanto as evidências, minha alma ainda transpirava as alegrias da festa. E o homem também sorriu, sabendo que me pegava “no pulo”.

- Boa noite, professora.

Eu, por minha vez, não tive saída. Respondi, como se nada tivesse acontecido:

- Boa noite, professor.

Desejei-lhe um bom descanso e saí.

Para quem não queria ser vista pelos alunos, até que me saí muito bem e, no fundo, diante da falta de cerimônia da situação, quem sabe, não tenha despertado, nele também, um pouco de infância perdida. Espero que sim...

O fato é que a traquinagem me fez muito bem e, uma vez inaugurada a travessura e logo com o testemunho de “quem”, perdi a cerimônia. Não sei se foi por isso ou pela aventura em si mesma. A verdade é que, a partir daí, vez por outra, quando a rampa estava desocupada de transeuntes e, mesmo diante da possível presença de alunos, passei a dar minhas escorregadinhas sem compromisso, feliz da vida e mais despreocupada com a tal “postura acadêmica”. O máximo que consegui foi despertar um certo ar de riso de uns ou de outros, se me viam. Mas diante da “seriedade” com que saía da empreitada, nunca ouvi piadinha alguma.

Apenas num dia ouvi um aluno me dizer:

- Cuidado professora, a senhora pode cair.

- Tem perigo não, faço isso sempre. É meu surfe em terra firme.

- Ah, professora, só a senhora mesmo.


E ficou por isso mesmo. Se me consideraram doida, nunca soube. Mas que soltei os laços da alegria contida, soltei, sim, para o meu bem, para o bem de minhas aulas e para as lembranças que me fizeram escrever este conto hoje. Um brinde a isso!