sábado, 28 de agosto de 2010

O GALO



Você já foi à Bahia? Não? Então vá.

De preferência, buscando ajuda no Senhor do Bonfim. Guardo a experiência como se tivesse acontecido hoje. Foram quinze dias particularmente interessantes em minha vida, no que se refere ao contato com energias desconhecidas.

Tudo porque eu precisava vender uma casa que havia comprado, no Humaitá, por sonho de meu ex-marido, em conseqüência de uma herança do meu pai. Uma casa em condomínio, na qual vivi por um ano, dez meses, vinte e um dias e nove horas. Pelo contar do tempo, você pode imaginar a alegria intensa que senti ao voltar para meu querido apartamento de Copacabana. É que o condomínio era do tipo “ame-o ou deixe-o”. E eu deixaria meu ex-marido na época, se dependesse disso para sair de lá. Sério.

Para quem conhece o IBAM, no Humaitá, o condomínio fica por trás, trepado morro acima, cinco casas por andar, umas grudadas nas outras. Sem nenhuma privacidade. Nenhuma!!! Eu ouvia tocar a campainha do telefone do meu vizinho e, naturalmente, todo o barulho e o som escandalosamente alto dos aparelhos de som de seus filhos adolescentes, mesmo no decorrer da noite. É preciso acrescentar que tinha de dar exatamente para o meu quarto de dormir. A varanda deles dava para este mesmo quarto, suportando as festas de todos os sábados, até as altas da madrugada, ou melhor, por que não dizer... manhã? E reclamar era completamente inócuo. Não fazia efeito algum. O jeito seria esperar que crescessem, mas pela idade deles, na época, levaria séculos de minha felicidade e ânsia por sossego. Não tinha como me concentrar para estudar, base de minha vida acadêmica. Mas isso nem era o pior! Tinha aquele cheiro de churrasco e cerveja invadindo minhas narinas todos os domingos... e um elevador, em plano inclinado, que funcionava vez por outra. E eu morava no último andar e como as casas tinham dois andares, décimo primeiro andar significava o dobro para quem sobe pelas escadas. Havia quem adorasse. Não eu, com certeza, pois não tinha a opção de ficar em casa: eu trabalhava e tinha de enfrentar as escadas, quer chovesse, quer fizesse sol...

Também não havia muita intimidade. Os vizinhos me visitavam, melhor, me invadiam, por mais reservada que eu “tentasse” ser - lá isso não funcionava, a não ser que eu resolvesse ser, literalmente, grosseira, o que não faz parte do meu temperamento. Não conseguiam se perguntar se eram bem-vindos, ao simples cheiro de um café gostoso que, modéstia à parte, sei fazer muito bem.

Meu ex-marido adorava o lugar. Como viajava muito, curtia os poucos dias que esta casa de suposto veraneio poderia lhe proporcionar. Eu, que ficava ali direto e só saía para trabalhar, fiquei com a parte pesada: a obra da casa, que durou um ano e quase meio e o resto do convívio. Não consegui acabar de escrever um dos meus livros acadêmicos, embora faltasse apenas o último capítulo e a conclusão. Não tinha como, no meio de um bulício e uma agitação constante, da invasão de minha privacidade, nas horas mais impróprias, e, principalmente, do barulho infernal dos vizinhos de baixo.

Também não conseguia ver meus amigos, em minha casa, com a mesma privacidade de sempre. Minhas visitas, desnecessário dizer, combinam com o meu perfil e não achavam muita graça em virem me visitar e não poderem usufruir da minha companhia, senão com o compartilhamento desnecessário de convivas que não eram convidados por mim. Apenas passavam pelo jardim e entravam, convidando-se eles mesmos a serem apresentados e a participarem de conversas que deixavam de ser privadas, naturalmente. Com isso, deixei de receber minhas visitas queridas, como acontecia no meu apto de Copacabana. Pediam desculpas, eram sinceros ao dizerem os motivos de seu afastamento e, simplesmente, desapareciam. Não os condeno. Eu teria feito o mesmo. Caramba, onde fora atracar o meu belo e tranquilo barco...

De veraneio, aquela casa só tinha a aparência para mim. E também não podia chover. O subsolo inundava por uma infiltração vinda direta do morro, por dentro do solo, o que dava a impressão de que a casa poderia despencar morro abaixo, a qualquer instante, problema que só resolvi com uma obra monumental nos oito últimos meses.

Comprar um jornal era uma excursão. Descer pelo plano inclinado (como chamavam aquela “espécie de elevador”), andar três quadras em busca da primeira banca. A padaria? Que padaria? Naquela época, por ali, nenhuma. Farmácia idem. Supermercado, só de carro. Sem contar com subir com as sacolas, em dia de greve de elevador. Mais comentários?

Havia as orquídeas enfeitando o quintal, que eram cultivadas com muito carinho. Tinham vindo do apto de Copacabana onde a coleção chegara a vinte vasos, com floradas todos os anos. Adoraram o quintal ensolarado. Essa era a parte boa. Também havia os pássaros, com seu canto sonoro e sempre primaveril, fosse qual fosse a estação do ano. Eu podia tomar sol como num campo naturalista, quando conseguia fazer minha presença despercebida de meus vizinhos, o que exigia uma estratégia particular ardilosamente arquitetada, é claro. Também resolvi um problema de dor no joelho direito, conseqüência dos tempos em que jogava vôlei no time do colégio. De tanto subir aquelas escadas de inumeráveis degraus, consegui musculatura suficiente para mantê-lo saudável. Gostava de respirar o ar da montanha que ficava logo atrás de mim. A vista das árvores lembrariam repouso, não fosse o constante barulho dos já citados vizinhos de baixo...

Desfiadas as principais razões, voltei radiante para o apartamento de Copacabana, que felizmente não tinha vendido. As orquídeas vieram também e acho que também muito contentes, diante das alegrias de sua dona. Morara naquela rua desde 1973 e é onde estou até hoje, fora esse intervalo de pesadelos. A vida em Copacabana só me inspira boas lembranças. O apartamento é uma graça, com sol pela manhã, lua à noite, sossego de rua meio afastada, com beija-flores na janela (imagine!!!) e tudo à mão, bastando andar uma quadra: farmácia 24 horas, padarias e mercados à disposição.

Dizem que quem compra um barco tem duas alegrias: uma quando compra e outra quando vende. Era o mesmo, com aquela casa. Só que eu não conseguia vendê-la de jeito nenhum!

Mas tudo tem seu tempo e agradeço por isso! Ficou empacada, dando despesas de impostos e manutenção de 1989 a 1993.

Em 1993 precisávamos vendê-la de qualquer jeito, pois o divórcio veio à tona e tínhamos de dividir os bens. Aí é que dou graças à vida. Se não tivesse ficado empacada, talvez o dinheiro tivesse ido embora e eu não teria, então, como negociar os bens. Como disse, tudo tem seu tempo. Só que... continuava lá, grudada, sem sair do meu pé... sem compradores.

Foi então que uma amiga me recomendou ir ao Bonfim. Olhei-a meio crédula, meio incrédula, mas o desespero me convenceu. Segui à risca a receita dada: saia do Rio direto para Salvador, numa sexta-feira, passe pelo mercado modelo, compre flores brancas, vá direto ao Bonfim, acenda uma vela, procure uma das senhoras que cuidam da igreja, peça um vaso, arrume as flores, peça que ela as coloque no altar. Vá a um dos bancos, faça seu pedido e volte direto para o Rio. Nada de passear.

Saí daqui bem cedo na manhã de uma sexta, como mandava o figurino, cheguei ao aeroporto de Salvador, peguei um taxi que me esperou comprar as flores e fui direto para a igreja. Acendi as velas, e busquei uma das tais senhoras. Encontrei imediatamente uma e fiz o meu pedido. Ela gentilmente me trouxe um vaso, no qual arrumei as flores e, como dizia a receita, pedi que ela o colocasse no altar.

É aí que começa a história do galo. A senhora me olhou com um sorriso acolhedor e me perguntou se eu mesma não gostaria de colocar as flores no altar.

- Claro, se me for permitido.

Ela me conduziu ao altar, indicou o lugar onde deveria colocar o vaso e me perguntou:

- Gostaria de ver o sacrário por dentro?

Eu não tinha nenhum interesse em ver sacrário algum por dentro, mas, para retribuir tanta delicadeza, não pude recusar. Ele me instruiu a esperar ali no altar mesmo, enquanto iria buscar a chave. Demorou um pouco e voltou com uma daquelas chaves antiqüíssimas, do tempo do império, enrolada numa corrente meio fina. Entregou-me a chave enrolada e disse:

- Enquanto desenrola a chave, faça o seu pedido.

Será que a mulher lia pensamentos? Pois não é que era justamente da chave de uma casa que eu queria me livrar? Não discuti. Sem fazer nenhum comentário, desenrolei a chave devagar, contrita em meus pensamentos. Finalmente, entreguei a chave à senhora que, sorrindo, me disse.

- Bem, já que estamos aqui, vamos ver o sacrário.


Com esta frase, ficou claro para mim que a visita ao sacrário era apenas uma formalidade. O importante ela já tinha feito, que era me oferecer a oportunidade de “desenrolar a chave”!

Vimos o sacrário e depois de agradecer-lhe, estava pronta para me despedir. Foi quando ela, sempre muito simpática e acolhedora, me disse:

- Uma parte foi feita. Mas é preciso completá-la. Há alguém que trabalha com você que sabe o que deve ser feito a seguir. Pergunte a ela e terá a orientação necessária. Ela também poderá ajudá-la a completar o que falta.

Pelos deuses! Eu não havia dito nada àquela mulher! Como saberia de meus desesperos? Olhei aquele sorriso franco, acolhedor e, sobretudo, sábio. Agradeci sinceramente e voltei direto para o Rio, como mandava a receita. Alguém que trabalha comigo? Que alguém? Onde? Caramba, como achá-la? Na Universidade onde dava aula? Passaram-se os dias. Numa sexta (numa sexta de novo!) dia de minha faxineira, me lembrei que ela era chegada a esses cultos. Resolvi, ainda que discretamente, comentar sobre o assunto. Ela sorriu como quem sabia o que estava acontecendo (ou teria sido só impressão?) e me disse que perguntaria a seu conselheiro espiritual. Na outra sexta, veio com a resposta: ele disse que sabia, sim, o que deveria ser feito e já tinha trazido uma lista com as coisas para comprar: uma casa de cera em miniatura, chave idem e mais um monte de coisas como velas e outros apetrechos dos quais tenho pouca lembrança, mas que me pareceram bem cerimoniais.

- Ok, e o que faremos com isso?

- Vamos fazer uma oferenda num lugar que indicarei à senhora. Já que a senhora mora na zona sul e o lugar tem de ser tranqüilo, podemos ir à Barra da Tijuca. Chegando lá, saberei achar o lugar.


Não sei por que, minha intuição perguntou:

- E, depois de vendida a casa, o que terei de fazer?

Mostrou-me outra lista, para agradecimento, incluindo um galo vivo. Intui que seria sacrificado. Nada feito. Matar bichos não. Definitivamente, agradecia muito, mas dava o caso por encerrado. Pedi que agradecesse sincera e fervorosamente ao seu consultor espiritual, mas que não poderia fazê-lo. Ela disse que voltaria a falar com ele. Uma semana depois, voltou com o recado:

- Ele disse que não tem importância. O galo não precisa morrer, podemos entregá-lo vivo.

- Tem certeza?

- Pode confiar.

- Então tá. Já que estou no barco e não tem bicho morto, vamos em frente.


Comprei a lista inicial e, na outra semana embicamos para a Barra. Em 1993, não tão povoada quanto hoje. Achar uma rua tranqüila, vulgo encruzilhada, foi fácil. Ali ela depositou as oferendas, tomando o cuidado de colocar tudo num arranjo bem interessante, inclusive as comidas. Minha função era apenas estar presente. Eu não precisava pedir nada, segundo ela. “Ele” já sabia de tudo.

Estava eu, ali, peça do sincretismo brasileiro. Respeitosa, disciplinada, confesso que um pouco perplexa, mas contrita.

Desnecessário dizer que vendi a casa em torno de quinze dias. Sem problemas, à vista, pelo preço pedido, sem pechinchas. Num relâmpago. A família mora lá até hoje e simplesmente adora o lugar. Incrível.

Hora de agradecer e comprei toda a lista necessária. Menos o galo. Tinha de ser um galo especial que só minha faxineira sabia onde vendia. Trouxe na véspera do dia da oferenda para que ficasse aqui em casa. Que animal. Lindo! Porte de rei, empinado, garboso. Se eu fosse galinha...

Servi sua majestade com grãos que vieram junto e ele ficou em minha área de serviço até o dia seguinte, sem dar trabalho algum. Também não precisei dar muitas explicações ao meu então marido, pois sua mãe também era chegada a essas coisas (nunca me aprofundei muito em até que ponto) e ele não comentou nada.

Manhã cedo, acomodei as oferendas e o galo, este cuidadosamente embrulhado em jornal para não se debater no carro e seguimos em direção à Barra da Tijuca.

- Ok, perguntei, para onde vamos?

- Para o mesmo lugar, disse a faxineira.

- Mesmo lugar? Como assim? Você não disse que teria de ser o mesmo lugar!!! Eu não sei voltar lá!!!

- Ah, patroa... tem de ser no mesmo lugar!


E agora??? Desespero interno, meu coração aos pulos. Não sei por que sussurrei:

- Só se o galo nos ensinar, ora essa...

Do banco de trás, o galo, que estivera mudíssimo até então soltou um “coc”. Achei estranho e segui em frente. Vou tentar lembrar mais ou menos onde foi e o resto é contar com a memória, nem que a gente fique aqui o dia todo, pensei. Dei a volta por baixo de uma ponte (disso eu me lembrava) e peguei uma das pequenas ruas vicinais. Quando me aproximei de uma esquina, o galo, de novo: “coc”. Um só, como o primeiro. Instintivamente, virei. Dirigi passando por um ou duas quadras e, de novo: “coc”. Virei. Para resumir, os “cocs” me guiaram exatamente ao ponto das oferendas da primeira vez. Sozinha, tenho certeza, eu não o teria encontrado com tanta facilidade, enfiado que era, no meio daquele fim de mundo dos meus deuses! Minha faxineira achando tudo natural. Eu, divina e silenciosamente perplexa!

Descemos, peguei o galo com carinho. Suas penas (plumas?), suaves ao toque, enfeitavam a sua altivez. Deveria segurá-lo, enquanto ela preparava as oferendas, muito ou mais bonitas do que da primeira vez. E o galo? Seria o último. Finalmente, com tudo pronto, deveria depositar o galo ali. E, como mandava o ritual (tinha sido assim, também da primeira vez), sairmos sem olhar para trás, pegarmos o carro e irmos embora. Minha faxineira o fez, sem a menor hesitação. Eu, no entanto, à medida que me afastava, tinha ímpetos de olhar para trás, como a mulher de Ló, no episódio bíblico de Sodoma e Gomorra. Mas não o fiz. Obedeci à ordem do misterioso e do místico. Afastei-me do local deixando para trás o farfalhar forte, garboso e incessante das asas de sua majestade.

Sem saber como, envolvida que fui desde minha ida ao Bonfim, vivi a certeza de que mistérios como esses existem... e desafiam a nossa razão.

sábado, 21 de agosto de 2010

SAPO


Não havia segredo no internato que eu não conhecesse, regra que eu não soubesse, travessuras que não tivesse feito, recanto da casa que eu não dominasse. No fundo, acho que as freiras acalentavam a idéia de que um dia, eu seria uma delas. Doce ilusão, pois não conheciam o espírito que vivia dentro de mim. E este espírito é a alma das minhas aventuras no internato: instalada assim, como se estivesse em casa (e, na verdade, estava...), é claro que me sentia à vontade para as mil traquinagens, tão comuns na infância e na adolescência.

Das travessuras da infância, destaco uma, da qual participei, mas não fui autora. Algo tão ingênuo quanto o gosto infantil pelas coisas simples, ao mesmo tempo que indica que o ser humano, desde pequeno, não se isenta de espertezas e oportunismos.

Era o trote nas mais novas. Não conhecíamos isso pelo nome. Na teoria, nunca tínhamos ouvido falar, mas liguei o fato à minha entrada na universidade, muitos anos depois. O trote. Um trote bem maldoso, por sinal, se pensarmos na suposta simplicidade da alma infantil.

Às refeições, era-nos permitido repetir elementos do prato salgado, mas jamais a sobremesa. Na melhor das hipóteses você pode estar pensando que as freiras tinham o honrado compromisso de nos ensinar a preferência pelas proteínas e a distância dos açúcares. Nada disso, pois eu fiz questão de perguntar. A resposta foi a de que devemos comer o prato salgado porque nos alimenta e o doce, como é prêmio, deve ser comedido. Conclui-se, assim, que devíamos nos habituar ao sacrifício, pois o sacrifício é muito bem recebido por deus nosso senhor. Em outras palavras, o dever pode ser cumprido até em excesso, mas o prazer e a alegria devem ser comedidos.

De onde será que elas tiravam essas pérolas de sabedoria?

Era permitido a uma aluna, portanto, ceder sua sobremesa a outra, quer por sacrifício, quer por não apreciá-la. Tínhamos de comer de tudo que fosse o prato principal, gostássemos ou não gostássemos. Mas, a respeito da sobremesa, era permitido até ceder, não apenas recusar.

Em outros termos, você pode ceder no prêmio ou no prazer, jamais na obrigação.

Custei a me desvencilhar dessa prática ardilosa e subterraneamente plantada em minhas atitudes de vida adulta, principalmente no que se referia à prioridade ao aspecto profissional, mesmo em se tratando, muitas vezes, de domingos e feriados.

Mas voltemos às refeições: havia uma sobremesa de especial paladar, cobiçada por todas internas. Até hoje não conheço a receita, guardada a sete chaves em algum lugar não accessível a nossa sedenta curiosidade, segredo jamais revelado, nem às vésperas de eu sair do colégio. Posso adiantar, no entanto, que pelo paladar sentíamos o sabor de banana, açúcar e canela. Acho também que era frita, mas sequíssima, posso garantir! Para completar a delícia, não era muito doce e nada enjoativa mesmo para mim que sou chatíssima para cheiros e paladares. Um manjarzinho divino e raro. Aparecia uma vez por mês. Talvez fosse o sacrifício consagrado das freiras da cozinha prepararem cerca de duzentos desses manjares de uma só vez (éramos cerca de 100 internas e 100 semi-internas). Devia mesmo dar um trabalhão. Mas eram simplesmente deliciosos. Só de me lembrar deles, sinto o cheiro, o gosto, o apetitoso prazer. Mas tinha uma forma estranha. Por saber cozinhar, imagino que fosse desses doces de tachos em que você mete um colherão, pega uma porção e joga no óleo quente ou coisa assim. Ficava um doce meio deformado e, por incrível que pareça, com um jeito parecido com a de um sapo esparramado. Essa era a analogia que fazíamos, crianças habituadas a fazerem o recreio em espaços cercados pela frondosa, pura e plena floresta da Tijuca. Assim, todas nós nos habituamos a denominar “sapo” a esse deliciosíssimo quitute dos deuses.

A primeira aluna que percebia o movimento da cozinha e via a sobremesa nos bandejões passava adiante a senha da sobremesa do dia. Assim, tão logo essas alunas sentadas mais próximas à cozinha descortinavam qual seria a sobremesa, era questão de segundos a notícia se espalhar por todo o refeitório. Um telefone sem fio perfeito, apenas com movimentos dos lábios, já que nosso silêncio só poderia ser quebrado depois que o último prato salgado fosse recolhido da mesa. Dia de sapo era um bulício. Nem precisávamos da leitura labial. O mexer dos ombros, os sorrisos já denunciavam que “era dia de sapo”.

No primeiro dia do ano em que éramos brindadas pelo sapo, o trote acontecia. Tudo na maior linha, na maior ética, no maior requinte. Coitadas das alunas novas...

Uma veterana começava o teatro tão logo o silêncio era suspenso e poderíamos começar a falar:

- Oba, hoje a sobremesa é sapo!

A aluna nova ou as novas faziam uma cara de espanto:

- Sapo?

- É, a sobremesa mais gostosa do colégio, você vai ver!

- Mas é sapo mesmo?

- Ué, claro que é sapo, você vai ver. É uma delícia.

- Como é feito?

- Não sabemos, mas tem um gosto parecido com banana, leva açúcar, canela e a receita é secreta, as freiras não contam, não tem jeito.


Era muito convincente, já que na mata, com certeza, haveria milhares de sapos à disposição para qualquer tipo de empreitada culinária, se quisessem. Mas tínhamos o requinte:

- Naturalmente, as freiras devem levar muito tempo para juntarem a quantidade de sapos suficiente, pois só temos dessa sobremesa uma vez por mês, portanto, aproveite a oportunidade, coma saboreando bem, pois já sabe que só terá outra chance no mês que vem.

As carinhas de espanto se transformavam rapidamente em carinhas de nojo, tanto da sobremesa como das comensais. Como tínhamos coragem de comer sapo e, ainda, por cima, dizermos que era a sobremesa mais gostosa do colégio? As nossas expressões eram angelicais, dessas de filme. Depois de colocarmos o manjar dos deuses em seu devido lugar e incentivarmos ardorosamente nossas novas colegas a experimentarem o batráquio, dizíamos:

- Bem, se vocês não vão querer mesmo, se importam de nos dar?

Assim, todos os anos, no primeiro mês, as veteranas tinham a sobremesa repetida ou dividida irmamente nos pratinhos de sobremesa. Quanto mais novatas houvesse em nossa mesa, melhor: mais sapos a serem divididos.

O ardil só seria descoberto mais tarde e, como único consolo, no ano seguinte, elas poderiam passar o trote nas novatas.

sábado, 14 de agosto de 2010

O MARIDO QUE NÃO ERA


Pouco depois de divorciada, em 1996, tive um namorado sociólogo e antropólogo. Conversa vai, beijinhos vêm, acabou sabendo das minhas aventuras de internato. Acredito que ficou curioso por conhecer o testemunho de tantas aventuras, assuntar sobre o ambiente, curtir as sensações. Não sei ao certo as motivações. O fato é que gostaria de conhecer o colégio por dentro, depois de eu contar que era um prédio magnífico, digno de ser conhecido por sua altivez, espaço, acolhimento. Talvez sua formação acadêmica tivesse aguçado sua curiosidade. Acabei providenciando a visita, num lindo domingo ensolarado.

Era preciso telefonar, cumprir a receita protocolar: marcar dia, hora, enfim, todos os requisitos já tão meus conhecidos, mesmo trinta anos depois de ter passado por lá. Tudo na mesma: “quem quer visitar, porque, quem vem, quem não vem”. Tempos e mentes supostamente congelados ou era só preconceito meu? Marcados dia e hora, lá fomos nós. Adverti-o dos possíveis desconfortos: não sabia se, depois de tantos anos, haveria alguma freira que me reconhecesse e, se assim fosse, que não se incomodasse com o preconceito, já que elas teriam conhecido meu ex-marido e poderiam olhá-lo meio de viés. Além disso, havia o fato de ele ser quinze anos mais novo do que eu o que, por si só, mesmo na possibilidade remota de acharem que eu ficara viúva, já chamaria a atenção. Alertado cuidadosamente para isso, tocamos a campainha. O mesmo som, de há tantos anos passados.

Uma freira veio à janela e me apresentei, como sendo a tal ex-aluna visitante. Aguardamos na portaria, à espera de alguma outra religiosa que nos acompanhasse durante a visita. Muito esquisito para mim, que andara por aqueles corredores como quem anda por sua própria casa. Se você leu “o segredo”, logo verá que a superiora mudou. Em 2010 andei sozinha por todos os cantos, a fim de tirar fotos para o blog. A superiora mudou e, provavelmente, os tempos também. Mas, naquela tarde de 1996, tive de esperar que viesse uma religiosa que me tratasse como visita e não como a ex-aluna de tantos anos. Coisas da vida. Para minha surpresa, veio uma freira conhecida, a irmã da enfermaria. Quantas e quantas vezes eu inventara uma dorzinha de barriga só para subir ao quinto andar, refrescando um pouco a cabeça da sala do estudo da tarde. Não me reconheceu, mas, boa anfitriã, honrou a educação que eu mesma recebera, delicadamente nos levando por todos os cantos do prédio, o enorme colégio que precisa mesmo de um guia turístico para traçar todos os seus aposentos e corredores.

Não havia mais internato, o que modificou toda a estrutura dos antigos dormitórios. As salas de estudo, no entanto, continuavam as mesmas, chão impecavelmente lustroso e limpo, ambiente de quietude e discreto luxo. Mesmo cheiro, mesmos recantos que me contavam mil histórias. Meu companheiro era tratado com o maior cuidado e respeito, um tal de senhor para cá, senhor para lá. Ele me olhava com olhares de quem queria desdizer tantas de minhas recomendações anteriores. Nenhum preconceito. De minha parte, nenhuma saudade. Encontrei uma ou outra freira, na verdade, apenas duas, do meu tempo de escola: a professora de matemática (inesquecível) e a professora de pintura em porcelana, doce criatura. Todas bem, como se tivessem tomado formol importado por todos aqueles anos. Soube que muitas de minhas antigas mestras já haviam falecido, outras estavam aposentadas em casas da irmandade, em outros Estados, em algumas das muitas filiais dessas religiosas, espalhadas por todo nosso país.

Para meu companheiro, a visita foi de puro encantamento. O prédio, magnífico por fora e por dentro, recendia a aventura, bom gosto e, por que não dizer, nobreza. Na hora do lanche, fomos brindados com os quitutes da casa. Não resisti e perguntei se tinha “sapo”. O nome foi reconhecido pela irmã da enfermaria. Sorriu. Talvez eu tivesse tocado em algum momento feliz de seu passado. Olhou-me buscando em sua memória o que ou quem eu poderia ter sido. Mas, trinta e poucos anos não passam assim à toa, mesmo eu tendo sido quase filha da casa. Ademais, minha aparência tinha mudado muito, agora com mais de quarenta anos de idade e sem nenhum resquício da disciplinada aluna que eu fora. Senti que não ela conseguia alçar-me em sua memória, mas o “sapo” tinha sido um código de passagem, uma senha de um passado, talvez nostálgico, irrecuperável. Os tempos, com certeza, tinham mudado e, com ele, a juventude não só minha, mas da velha anfitriã. Disse-me que a sobremesa não era mais reconhecida por aquele nome e que, infelizmente, naquele dia não havia nenhum para servir-me. Mas tinha o bolinho de milho, que fazia questão de nos oferecer. Santos deuses, o bolinho de milho que eu tanto detestava... O que dizer, no entanto, diante de tão boa vontade? Rumamos para o refeitório, para meu sacrifício. O cheiro do chá, meu conhecido, mostrava que deveriam ser por volta das 15 horas, horário que reunia a comunidade para o lanche da tarde. Tínhamos chegado um pouco depois e o refeitório já estava vazio. O chá nos foi servido, com os tais bolinhos de milho. Fingi comer um deles, esperando um deslize da freira para passá-lo para o prato de meu companheiro. Boa boca, ele já estava se deliciando com o segundo deles. A freira foi buscar qualquer coisa e me aproveitei da oportunidade para passar-lhe o meu. Quando voltou, vendo meu prato vazio, me ofereceu generosamente mais um. Tentei recusar, dizendo-me satisfeita. Meu companheiro prendia o riso diante de meu constrangimento. Mas, diante da insistência, impossível negar. Ainda mais porque o bolinho era considerado sobremesa e sobremesa, para elas, significava prêmio. Acabei por comer um, com muito sacrifício, em nome dos passeios pelos corredores que esta freira, há trinta anos atrás, em seu antigo ofício, me proporcionara, deixando-me tomar um comprimidinho qualquer antes de voltar vagarosamente para minha sala de estudos, não sem antes passear um pouco pelo terraço.

A tarde, enfim, terminara e fomos gentilmente, levados até os portões do magnífico edifício incrustado no esplendor da Floresta da Tijuca. Na volta, ouvi comentários sociais e antropológicos a respeito de meu preconceito quanto à intolerância das freiras que, ao contrário do que eu preconizara, tinham acompanhado o desenvolvimento de nossa sociedade, tal a generosa forma com que ele fora tratado. Os tempos tinham mudado e eu, no entanto, é quem continuara com uma visão retrógrada em relação àquelas gentis e avançadas religiosas. Engoli o sermão bem quietinha e também perplexa por tão inesperada acolhida.

A vida é muito interessante. Eu nunca tinha me encontrado com aquelas religiosas na rua, durante tantos e tantos anos. Um mês depois, no entanto, passando pela Rua da Assembléia em pleno centro carioca, por incrível que pareça, eis que me deparo nem mais nem menos, com a mesma irmã anfitriã, devidamente acompanhada de uma outra da comunidade. Tinham vindo ao oculista, se não me engano. É preciso esclarecer que, por princípios religiosos, elas nunca saem sozinhas. Estão sempre em dupla ou em tripla. Abordei-a por causa da coincidência, achando interessante nos encontrarmos novamente, um mês depois, após tantos anos sem nunca ter visto nenhuma delas pelas ruas. Ela sorriu e me perguntou:

- E o marido, como está?

- Marido?


Caiu a ficha. Em ambas. Eu, por recuperar, de pronto, toda a minha ciência sobre um preconceito supostamente não existente; ela por sentir-se enganada, traída em sua confiança. Afinal, tratara tão bem a quem?

- Aquele senhor não era seu marido?

- Não, eu me separei há mais de um ano...


A freira que a acompanhava arregalou os olhos:

- Você se separou, minha filha? Por quê? Ele batia em você?

Olhei-a, incrédula! Juro pelos deuses que foi o que ouvi. Apesar de ter sido educada por elas, a pergunta não conseguia fazer sentido para mim!

- Não, ele não me batia.

- Então, por que se separou?

- Ué, não deu certo.

- Minha filha, você está vivendo em pecado diante de deus nosso senhor! Os casamentos são para sempre, até que a morte os separe!

- Irmã, não me sinto vivendo em pecado. Pecado seria submeter-me à infelicidade!

- Mas você está vivendo em duplo pecado agora,
disse a irmã anfitriã, lembrando-me de meu acompanhante.

- Irmã, Deus sabe de minhas intenções.

- Como você consegue dormir à noite? Isso é inconcebível diante das leis de deus!


Não quis lembrá-la do antigo testamento e do monte de “poligamias lícitas” nele contidos. Não valia a pena. Apenas respondi:

- Durmo com meu travesseiro e na santa paz do senhor, que tudo sabe. Poupei-a de acrescentar “e com o meu namorado”. Seria demais.

A outra irmã indagou, como que querendo salvar-me de um naufrágio iminente:

- Você teve filhos?

- Não.

- Ah, minha filha, então ainda há salvação: peça anulação do casamento.

- Anulação do casamento? Depois de 22 anos de casada e divorciada?

- Sim,isso é possível, pois o casamento não foi abençoado! Você pode entrar com um processo no Vaticano.

- Para quê?

- Para redimir-se diante de deus.

- E preciso de um papel dos homens para redimir-me diante de Deus?

- É a única forma de salvar a sua alma. Só então poderá casar-se novamente e viver em paz na fé da santa amada igreja.

- E quem disse que eu quero me casar com o meu namorado?


Foi o suficiente. Quase me arrependi de ter dito isso. As freiras estavam horrorizadas. Pensei que poderiam ter um ataque ali mesmo. Tentei consertar:

- Irmãs, fiquem tranqüilas. Eu me sinto em paz com Deus. Ele sabe de todas as coisas e também da minha retidão.

As freiras pareciam petrificadas. Tive pena, mas não havia mais jeito. Elas estavam perplexas e eu condenada às chamas do inferno para sempre! Destino selado, depois de tantos anos de uma educação religiosa perfeita. Eu tinha posto tudo a perder. Elas pareciam inconsoláveis. A irmã anfitriã baixou os olhos, senti seus dedos buscarem o rosário que eu sei que elas sempre trazem no bolso, um pouco à mostra. Queria assegurar-se de que deus estaria por perto. A outra segurou o crucifixo que trazia ao peito. Foi um momento de constrangimento entre o céu e a terra. Não havia como sossegá-las. Talvez, quem sabe, só na próxima encadernação. Nesta, já estavam mesmo comprometidas demais com seus dogmas. Paciência. Ensaiei uma despedida cortês, logo recebida por elas. Afastaram-se às pressas, querendo distância do convívio com as tentações terrenas e com as infestações desta alma perdida para a fé da igreja para sempre.

Cheguei em casa ávida para contar as novidades ao meu companheiro. Ele apenas sussurrou:

- Quem diria... e eu estava tão crente... Sorriu. Eu me senti em casa. Aconcheguei-me a ele e por minha mente passaram muitas e muitas recordações de hábitos e costumes, felizmente não arraigados em meu coração.

Ficamos, assim, em silêncio, ele tendo percebido meu recolhimento, minha satisfação interna de não estar impregnada por repressões sem sentido. E, como prêmio, condescendente, enlaçou carinhosamente sua ilustre pecadora.

sábado, 7 de agosto de 2010

O SEGREDO - A REVANCHE



A revanche prometida no conto da semana passada:

As alunas tinham um conselho. Chamávamos de “conselho das alunas”. Isso mesmo, coisa de filme, de livros romanescos. As freiras não sabiam que existia, aliás, muitas alunas também não. Era uma espécie de irmandade secreta, que entrava em vigor quando alguma coisa era considerada errada e deveria se submeter a julgamento, segundo nosso critério. Um julgamento necessário, de alguma coisa que teria “escapado” à ética estabelecida pelo poder da ordem local, no caso, as freiras. Aprendi muito com o conselho das alunas, do qual, aliás, eu era uma das líderes, dada a minha posição de aluna antiqüíssima. Geralmente, as moças ficavam internadas apenas de um a três anos, no máximo, só para tomarem um banho de loja “princesesca”. Eu era a anfitriã de todas elas, mesmo das mais velhas. Quando alguém chorava com saudades de casa, se sentia só, triste, mal nos estudos, eu era a “aluna irmã” que estava ali, para uma palavra amiga, para ajudar nos estudos, para dar uma solução. Eu me sentia em casa e, portanto, conseguia ver isso tudo com mais naturalidade e segurança. O colégio me ensinou a ver as pessoas que me cercam como irmãos, pois o que contava ali não era o sangue, era o convívio. Outro presente da vida, para as intempéries do futuro, em meu percurso pelo mundo.

E foi porque conseguia entender essas angústias, e por ser também uma aluna e não uma freira que, espontaneamente, o conselho das alunas começou a ser criado, pois me procuravam para ajudar a resolver casos insolúveis pela “lei local”. Instintivamente, fui achando o peso grande demais para minha responsabilidade e acabamos por formar uma espécie conselho, pois, assim, poderíamos ponderar, ouvindo mais vozes, a cada vez que fosse necessária uma intervenção dessa lei marginal, mas, convenhamos, a nosso ver, de uma ética interna impecável. Tudo, é claro, aos nossos olhos adolescentes. Contarei, em outra oportunidade, histórias interessantes advindas do conselho das alunas, o mais democrático que conheci. Por ora, voltemos à história.

Nos reunimos no recreio, fazendo pequenas rodinhas, fingindo brincar de alguma coisa como “escravos de Jó”, ”conte-me seu segredo” ou coisa assim. Era para disfarçar, pois não tínhamos privacidade suficiente, no contexto social, para segredos que freiras não pudessem ouvir. No caso, como já éramos maiores, até que tínhamos um pouco mais de privacidade. Mesmo assim, nesses casos, dávamos um jeito de disfarçar. Escolher que tipo de castigo nossas colegas estraga-prazeres teriam não foi fácil. Tinha de ser algo tão grandioso que ficasse na história. E ficou.

Aproveitamos um privilégio que a tal turma que sofreria a revanche tinha conquistado a duríssimas penas, pois ninguém no colégio tinha conseguido algo igual. Deveria ter sido por muita influência da mestre de classe (a tal irmã coordenadora) somado a um comportamento impecável da turma, durante muito tempo: elas podiam tomar banho antes de se deitarem. Todas as turmas tinham horário para o banho, dependendo da série, mas ninguém antes de deitar. Motivo: poderia fazer muito barulho e as pequenas acordariam. As pequenas (7 e 8 anos) deitavam-se às 19.30. Pois bem, a tal turma tinha conseguido o privilégio de tomar banho às 20 horas, para dormirem bem quentinhas. Isso, no frio do Alto da Boa Vista é de um privilégio sem tamanho. E o que elas teriam de fazer em troca? Serem absolutamente silenciosas, andando pé ante pé pelos corredores da ala dos dormitórios para não acordarem os anjinhos do colégio. E faziam. Com muita classe, diga-se de passagem. Eu tinha sido uma delas, quando fui da turma do quarto ginasial (assim denominado na época). O pé ante pé, incluía o ritual de tirar as toalhas dos cavaletes de madeira, super frágeis. As toalhas ficavam penduradas ali e os cavaletes ficavam apenas apoiados no chão. Qualquer deslize faria barulho e qualquer barulho naquele casarão principesco no silêncio noturno do Alto da Boa Vista ecoava por toda a mata. Pois bem, nós faríamos algo que provocasse um barulhaço. Como? Dando nós em algumas toalhas. Quando puxadas, trariam consigo os cavaletes e as madeiras, caindo no piso marmóreo, fariam o maior barulho da história do colégio.

Ok, aprovado por unanimidade. E agora, quem vai dar os nós nas toalhas? Muito difícil, pois as alas do colégio não podem ser assim visitadas a qualquer hora. Você só podia ir à zona dos dormitórios por motivos heróicos: deitar porque está doente, trocar de peças íntimas nos dias femininos e coisas assim. De qualquer forma, nunca mais de uma aluna de cada vez e, com licença expressa de uma mestra de classe para se afastar do grupo da turma. Isso quer dizer que tínhamos a obrigação expressa de só andarmos sozinhas ou em bando. Mas isso é outra história, que trouxe vantagens e desvantagens para minha vida futura. Deixemos estes detalhes para outro momento.

Quem faz? Eu, que tive a idéia, claro, me incluí. Carmen Lucia, minha grande amiga de quarto fez eco. Ninguém mais se atreveu, embora a idéia tenha sido aprovada com louvor. Fizemos. Desnecessário dizer que foi durante o recreio após o jantar (das 19.10 às 19.30), tendo eu pedido licença para ir ao banheiro e Carmen para trocar de peças íntimas. De propósito, pedimos para freiras diferentes para que desse certo as duas poderem sair ao mesmo tempo. Já tínhamos essa estratégia, quando necessário. O recreio do jantar era no salão de cima, um salão enorme que ocupava metade de todo o andar do colégio, chamado por nós de “terraço”. Este recreio juntava, apenas nesta hora do dia, quase todas as alunas do colégio. Era, então, mais fácil de escapulir, cada aluna pedindo para uma freira diferente. Elas não tinham notado isso. Toda a segurança tem lá seus furos.

Entrar na ala dos dormitórios completamente às escuras, encontrar os cavaletes certos e fazer o combinado só poderia ser conseguido por alguém que conhecia muito bem o colégio como eu, driblando a vigilância pela escada de serviço, etc. Como você vê, se já passou pelo capítulo de minha história em Braga – “golpe de mestre” - minha juventude já ensaiava amar a vida temperada com suspense, um bater de coração mais rápido. Mas eu mal sabia o que me esperava!...

Cumprida a tarefa, voltamos para o recreio a tempo de nos juntarmos às colegas para o estudo da noite, na outra ala do prédio. Inusitadamente, as maiores quiseram se deitar mais cedo naquele dia. Claro, queríamos ouvir, no camarote da cama, o resultado da façanha.

Não posso descrever o que foi. O barulho foi tão intenso, que me arrependi. Parecia que o colégio estava vindo abaixo, que algum andar estava despencando, que estruturas estavam desmoronando. Choro desesperado, angústia das pequeninas, luzes se acendendo rapidamente, freiras correndo e acudindo de todos os lados. O que foi o que não foi, etc. Nós lá, deitadas, quietas. Eu, com pena das pequeninas, nem conseguia curtir a vingança. Não tinha me lembrado do horror que poderia causar-lhes. Alunas que arriscaram se levantar tinham comandos imediatos de suas mestras: voltem para a cama meninas, quietas, aguardem, está tudo bem, durmam. Durmam?

Vozes das duas mestras de classe – da nossa e da tal turma da quarta série - despencadas no ar, a alto e bom som:

- Foram suas meninas!

- Por que as acusa? Como pode provar?


Chega a Senhora Superiora. O que houve, o que não houve, quem foi, quem não foi. Nossa mestra empacada na palavra:

- Minhas meninas não foram.

–Veremos. Vamos perguntar a elas.


Nossa mestra começou pelo primeiro quarto do outro lado do corredor. Nessa ordem, o nosso seria o último. Ouvíamos o som do interruptor da luz e o fio de claridade, na penumbra do corredor, se aproximando de nosso quarto, a cada vez. Acende a luz:

- Foi você, Beth?

- Não senhora.

- Foi você, Lucia?

- Não senhora.

- Foi você Laura?

- Não senhora.


Apaga a luz, outro quarto, acende a luz...

- Foi você Fernanda?

- Não senhora.


Comecei a suar frio. Carmen Lucia queria vomitar. Não sabíamos que daria nisso. A coisa era séria, tão séria quanto a aventura da terceira série, dois anos antes, que conto outro dia. Só que lá, não houve “culpadas” e a coisa ficou por isso mesmo. Aqui, não. Era pessoal e daria expulsão do colégio, na certa! Carmen Lucia tremia, eu queria morrer. O que vamos fazer? Ela disse que mentiria. Eu disse que não iria conseguir, mas achava que não estaria viva para responder. Isso mesmo, deu uma compressão tal no peito, meus ouvidos zuniam de tal forma, eu suava tanto que pensei mesmo que teria um ataque iminente. Um ataque qualquer, fatal. A voz de nossa mestra se aproximava, quarto a quarto. Pensei rápido. Eu não poderia ser expulsa, pois estava lá por determinação do juiz. Pelo menos, assim achava. Carmen Lucia queria terminar o curso normal para se casar depois. Disse que seus pais jamais a perdoariam. Eu disse para mentir e que eu pensaria até lá. Não estava disposta a mentir. Acho que não me perdoaria. Eu não inventei a vingança? Quem mandou? Acho que nunca me arrependi tanto. Sério. A voz de nossa mestra estava muito próxima.

– Foi você Cristina?

- Não senhora.
Quarto ao lado!!!

Pensei que fosse desmaiar, na verdade, acho que estava bem próxima disso. Sabia que seria incapaz de me levantar, sentia tudo zonzo, minha honra comprometida, pois sempre fora uma aluna exemplar. Das traquinagens, nunca descoberta. Era vez de me enfrentar, talvez pela primeira vez. Testar-me na minha sempre tão defendida correção. Pensei em morrer com honra. Quem tem dezesseis anos é assim mesmo. A luz do quarto ao lado se apagou. Eu ainda não tinha decidido o que fazer, mas sabia que seria a próxima. Ouvi a voz de nossa mestra dizer:

- Foram todas interrogadas.

Ouvi a Superiora perguntar:

- E este?

Deveria se referir ao nosso quarto.

- Este é o meu quarto, respondeu a irmã.

Não acreditei. A voz compenetrada de nossa mestra escondia que conhecia bem o seu “rebanho” e simplesmente nos acobertava, feliz pelo enfrentamento a sua arqui-inimiga, a mestra da quarta série.

Inacreditável. Num segundo percebi tudo. Ela sabia... talvez tivesse, até, o conhecimento do conselho de alunas, quem sabe? Meu colchão estava encharcado de suor. Eu estava num mundo que não era esse. Até hoje não sei se a Superiora também se sentiu cúmplice, pois eu era muito conhecida em todo o colégio e seria estranho não ter se lembrado que o interrogatório não tinha passado por mim. Achei estranho. Mas estava profundamente aliviada. E foi assim, no susto, que fui apresentada a um protótipo de mundo político, não muito diferente do que vivemos aqui fora.

Até hoje, na hora H, não sei o que diria. Gosto de pensar que defenderia minha honra me responsabilizando por tudo. Jamais saberei, pois ninguém se conhece tão profundamente quanto gostaria. Mas serviu de estágio para o futuro, ao assumir melhor a responsabilidade pelos meus atos, pelas minhas atitudes diante da vida.

Isto eu devo ao internato, à necessidade cotidiana premente de estar sempre atenta. Melhor a lição que o castigo. Será que minha mestra, boa psicóloga que era, sabia disso?

Dois anos depois, saí do internato. Voltei a visitá-lo algumas vezes, pois, como você já sabe, fora a minha casa por dez anos. Deixei raízes, embora tenha levado pouco tempo para me livrar delas, tão díspare é o mundo real, aqui fora. No início, no entanto, busquei, algumas vezes, os corredores, os ecos, a mata para meu aconchego, como quem volta à casa materna, em busca de abrigo.

Na primeira visita, ao me ver, minha mestra me puxou para um canto e apenas perguntou:

- Foi você?

Nossos olhares se esbarraram. Respondi com um leve aceno de cabeça.

E juro que vi um sorriso discreto, de secreta cumplicidade, jamais revelada.