domingo, 27 de junho de 2010

O ANEL E A FLOR


É difícil encontrar alguém que possa dizer que viveu uma paixão avassaladora. Vivi. No México, em agosto de 1984. Estava indo a um congresso, apresentar um trabalho acadêmico, o que se deu logo no primeiro dia. Quem apresenta trabalhos em congressos sabe do privilégio que é livrar-se do encargo logo no primeiro dia. Significa que a tensão vai logo embora. Ademais, não vamos a uma cidade, principalmente fora do país, só para ficar o dia todo no congresso. Por mais cdf que seja uma pessoa, como eu era, não se faz isso. Passeia-se também. E, diga-se com ênfase: o México é pródigo para o devaneio turístico e cultural. Cidade lindíssima, sítios arqueológicos impecáveis, pirâmides, berço de civilizações antigas. Cultura por toda parte e um povo super interessante.

Logo no primeiro passeio, conheci Manuel. Era o guia turístico, encarregado de me buscar no hotel. Detesto excursões, mas entrei nessa. Também evito sair em grupo com o pessoal do congresso, dificilmente ligado em conhecer a cidade tal como ela é, preferindo os lugares comuns, as compras, as fotos. Eu queria a vida local, as pirâmides, um bom guia turístico. Consegui esta indicação no próprio hotel e uma camionete veio buscar os passageiros, que eram sete ao todo, com este guia turístico muito muito muito interessante. Tão logo reuniu o grupo, cuidou de nos acomodar de modo que eu ficasse no banco da frente, exatamente ao seu lado. Não tinha saída. Aliás, adorei a iniciativa. E não precisamos de muita apresentação. Parece que já tínhamos marcado aquele encontro. O dia foi maravilhoso, com passeios por Teotihuacan, Quetzacoatl, nomes que, com cuidado de lingüista, aprendi a pronunciar com perfeição, para impressioná-lo. A subida à Pirâmide do Sol foi indescritível, naquela tarde magnífica de verão mexicano. Em segundos, aprendi todas as lendas e histórias, pormenores citados e explicados por tão interessante personagem.

Havia um encantamento que não poderia terminar no final daquela tarde, mas eu ainda não sabia como encompridá-la. Gosto de ser seduzida, prefiro não tomar a iniciativa. Isto faz parte do encanto para mim. Mas ele mesmo se encarregou disso, levando cada turista a seu hotel, passando pela frente do meu por duas vezes. Tornou-se óbvio: eu teria uma boa esticada de dia. Todos entregues, ele fez questão de me mostrar “um México que os turistas não conhecem”. Fomos a um café. O café mexicano é simplesmente péssimo. É um chafé, de xícara inteira, insuportável, ridículo, imbebível. Mas eu estava achando tudo ótimo. Passeamos por sítios arqueológicos não muito conhecidos, fomos a recantos inusitados, conheci a cidade por dentro, em conversas gostosas, muito riso, insinuações deliciosas.

O congresso virou acessório, embora eu o frequentasse. No dia seguinte, ele iria levar turistas a um passeio de meio turno e estaríamos novamente juntos pelo resto do dia. Redobradas caminhadas por aquela maravilhosa cidade, que se fazia como pano de fundo para aquela figura esguia, masculina, única, que me conduzia como em sonho. Não foi direto à sedução explícita. Sentia que ele queria certificar-se de que, quando pedisse um beijo, não caberia um não. Eu fazia o jogo que a maioria das mulheres sabem fazer bem: um pouco provável não, um certo talvez, um possível sim. Juntava-se a sedução ao saboroso clima daquela cidade encantadora e cheia de inenarrável luz mística. O Museu Antropológico foi um dos museus mais fantásticos que já visitei, embora conheça vários outros europeus e americanos. Sem contar com a vantagem de um guia fenomenal, especialista contumaz das culturas asteca e maia. Eu estava vivendo ou levitando?

Mas uma semana passa muito depressa, ainda mais nessas condições. E eu não podia ficar mais. Estávamos em agosto e teria de estar no Rio, mais especificamente dando aula na minha universidade, dentro de dois dias. Naquela noite, fomos à Zona Rosa bairro de turistas e restaurantes noturnos, pequenos bares aconchegantes. Foi para lá que meu gentil cavalheiro me levou. Entramos numa espécie de bar noturno, a meia luz, para um papo mais íntimo. Um barzinho interessante, típico, pouco espaçoso, muito bem decorado, em cujas mesas sentavam-se casais isolados. Parecia um lugar para receber pares, não mais do que isso e... com uma característica especial, da qual logo me dei conta: de vez em quando, um dos acompanhantes se levantava, ia ao microfone e cantava para sua dama. Perguntei a ele o que era aquilo e ele me explicou que era exatamente o que eu estava vendo. Os casais iam ali, ficavam conversando e, volta e meia, o cavalheiro se levantava para cantar para sua amada. Era um costume e ele queria que eu conhecesse. Nada de bater palmas, nada parecido com caraoquê. Nada disso. O ambiente era de puro romantismo. Fiquei encantada. Agradeci-lhe a gentileza por ter me levado a um lugar tão interessante. Ele sorriu, levantou-se, dirigiu-se ao microfone, falou alguma coisas aos músicos e, então, cantou para mim: “El dia que me quieras...” que voz...

Acredite: eu estava ali. Neste e no dia seguinte, apenas interrompemos nossos encontros pelo trabalho dele e pelo encerramento do congresso, felizmente muito curto. Eu queria ficar ali para sempre. No fundo, sabia que era uma paixão, não tinha certeza se poderia se transformar em algo mais e, ademais, tinha um compromisso conjugal me esperando no meu país de origem que, embora praticamente falido, estava em lento processo de ser resolvido.

Não sabíamos o que dizer um ao outro, na despedida. Eu pensei que fosse morrer, pois tinha um nó na garganta tão apertado que mal podia respirar. Ele não falava nada, apenas me olhava ternamente, sentados, ambos, em seu carro, em frente ao meu hotel. Eu voltaria no dia seguinte. Ele apenas disse que esperava firmemente que a vida nos desse a chance de nos reencontrarmos. Tirou seu anel de formatura e o colocou em meu dedo anular, como um compromisso. Até hoje eu não sei por que desci do carro. Na verdade, não me lembro de como fiz isso.

Marcamos de nos encontrarmos no dia seguinte antes de minha partida, mas isso não aconteceu. Ele não pode livrar-se do trabalho e me telefonou, se despedindo. Acho, no fundo, que ele não quis enfrentar outra despedida.

A viagem do México ao Rio custou-me uma dor concreta e íntima. Tinha a impressão de que estava dividida em pedaços que jamais encontrariam seus lugares novamente.

Uma semana depois, recebi uma carta dizendo o quanto ele sentia a minha falta. Respondi, dizendo que queria vê-lo novamente e que guardava o anel comigo. Não obtive mais resposta. Alguma coisa que eu não sabia o que era, aturdia o meu coração. Nada combinava com os dias e com a carta que ele me mandara uma semana depois de minha partida. O tempo passava e, coincidentemente, houve aquele avassalador terremoto na Cidade do México. Escrevi perguntando como ele estava, tanto para o endereço do trabalho, como de sua residência. Nenhuma resposta.

Comecei a sentir-me profundamente triste. Os dias pareciam cinzentos, tinha sonhos estranhos, sentia-me deprimida. O peito apertava-se, não conseguia respirar direito. Não conseguia concentrar-me no trabalho, no cotidiano, nas coisas mais banais da vida. Manuel ocupava todo o meu pensamento, todo o meu coração, os meus passos, minhas preocupações. O que teria acontecido?

Um dia, em outubro, sentada no chão de minha sala, junto à janela, com um livro de estudo nas mãos, procurava me concentrar na leitura. Não conseguia. Elevei meus olhos para o céu, através da janela e fixei meu pensamento nele. Pedi-lhe fervorosamente por um sinal, por um aconchego, por uma notícia. Fiquei assim, por algum tempo, olhos perdidos no espaço. Aos poucos, no entanto, vi algo diferente vindo do céu, como uma folha, talvez, voando em minha direção. Seria de algum andar de cima? Eu moro no oitavo andar, não poderia ser da rua. Fixei a vista. Era uma pequena florzinha, caída de alguma árvore, talvez do morro ao lado, ou vinda pelo vento, não sei como. Voava em minha direção. Pensei que passaria por minha janela, rumo ao térreo. Mas não. Entrou por minha janela e pousou no chão, perto de mim. Fiquei olhando estarrecida. Segurei a delicadíssima flor, de cor rosada, em minhas mãos, desacreditada do que estava acontecendo. Mas era verdade. A florzinha intacta, linda, gentil, estava ali. Eu não podia supor o que significava, mas parecia estar respondendo ao meu apelo. O que seria? O que estaria acontecendo? Por que o silêncio de notícias e por que a florzinha em minhas mãos, diante de meu desesperado apelo?

Nunca tive a resposta. Guardei a flor junto com o anel e é como estão, até hoje.

Dali, a vida passou a ter pouco sentido. Até setembro, conseguira, ainda, me distrair com a defesa de tese de doutoramento, que se deu, no dia 24. Depois disso, tomou-me o tremendo vazio do coração até o evento da flor, que me prostrou definitivamente. Em novembro, fiquei gravemente doente. Não tinha nada fisicamente, todos os exames nada acusavam, mas eu perdia as forças, a vontade de viver. Não havia médico que desse conta de minha fraqueza. Desmaiei durante uma de minhas aulas na universidade e tive de ser levada para casa. Felizmente, era final de novembro e as aulas terminavam. Eu não agüentaria continuar indo à Universidade por muito tempo. Passei dias de cama. Para mim, o tempo passava e não passava. Tanto fazia. Não se sabia o que fazer comigo. Eu sabia. Queria morrer. Não agüentava mais tanto aperto em meu peito, nessa profunda dor silenciosamente guardada em meu coração.

Fui levada a um médico acupunturista milagroso, segundo diziam. Ele diagnosticou falta de energia vital. Tivemos uma longa conversa e ele me perguntou diretamente o que me fazia não querer reagir. Olhei para ele, sem resposta. Não podia, não havia nada a dizer. Ele me olhou e disse que lhe cabia me ajudar. Eu estava com 33 anos, segundo ele, uma vida pela frente. Fosse o que fosse, havia um motivo para eu estar aqui e não poderia entregar-me à inércia. Entendi o recado, precisava viver. Pedi ajuda, sem dizer a causa de minha angústia. Tive várias sessões de energização dos meus centros vitais. A custo, comecei a comer, novamente, aos poucos sopas leves até a normalização alimentar, o que levou alguns meses. Olhei para o meu futuro, precisava arrancar de mim uma razão para prosseguir. Sim, havia um próspero futuro profissional, sem dúvida. Enfiei-me em pesquisas, voltei à tona aos poucos. Fiz da vida acadêmica o centro de minhas atenções e a vida começou a colorir-se novamente.

Nunca mais soube de Manuel, do que aconteceu, porque não tive mais notícias. Ainda escrevi mais uma vez, busquei-o pela internet, muitos anos depois. Aliás, seu nome não consta, numa varredura pelo Google. Nada. A paixão passou, mas nunca a lembrança.

“El dia que me quieras...”. Eu quis. Nunca neguei viver tudo o que me foi oferecido.

Agradeço à vida por ter acontecido. Agradeço àquele médico por ter me resgatado. Agradeço a mim, por ter preservado com tanto carinho essa lembrança doce e forte em meu coração.

O anel e a flor continuam guardados, na mesma pequena caixinha, prova irrefutável de que uma verdadeira paixão povoou meu coração.

sábado, 19 de junho de 2010

NEGUINHA, uma lição de vida


Como prometi, completo minha história com minha querida amiguinha, iniciada na semana passada.

Trouxe Neguinha para casa e saí desabalada para providenciar os apetrechos de sua residência e alimentação básica. Também urgia apresentá-la ao André. Não faria como da última vez. Ela passaria por um exame clínico completo. No mesmo dia, soltei Neguinha pela sala. No mesmo dia, veio bicar meu dedo como me cutucando. Tive a impressão de que queria brincar. Foi assim que nasceu a brincadeira de capa e espada. Sua capa (suas asas) se abriam quando avançava sobre meu dedo em riste e também as usava para voar meio para trás, quando o dedo avançava. Mas não se intimidava... logo o bicava, me empurrando, novamente. Também não se intimidava quando eu apertava o seu biquinho com meu polegar e indicador, apertando um pouquinho seu “nariz” e virando de um lado para outro, como fazemos carinhosa e delicadamente com as crianças sapecas:

- Vou pegar o seu nariz...

Já no primeiro dia passou abusadamente a pousar em minha cabeça. Quantos anos teria? Eu não sabia nada sobre ela, só sabia que éramos completamente amigas. Dr. André também ficou encantado. Disse que tinha idade suficiente para cruzar. Imediatamente, me convenci de que teria de arranjar um macho. Não poderia privá-la dessa felicidade. Ela me parecia muito feliz e, ao contrário da maioria das canárias, cantava divinamente. André me instruiu de que deixaria de cantar, quando tivesse um macho. E foi o que aconteceu. Mas isso não teve a mínima importância para mim. Meu amor por ela era, definitivamente, incondicional.

Antes do episódio do casamento, no entanto, Neguinha quase acabou comigo, numa quarta-feira, de manhã. Lembro-me, porque tinha deixado de dar aula às quartas, e ela ficava solta quase todo o dia, passeando pela sala, voando de um lado para outro, colocando suas asinhas ao sol, bicando aqui e ali. Irresponsavelmente, eu não notara que uma frestinha da janela ficara um pouco aberta. A janela da sala tinha um defeito: quando a puxávamos para fechar, ás vezes, ela carregava, consigo um pouquinho da outra banda. Isso acontecera. E Neguinha escafedeu-se por ali, mundo afora. Um apto em Copacabana, no meio de milhões de janelas! Como ela voltaria? Como a encontraria? Desci alucinada para a rua. Foi quando descobri o quanto as pessoas tomam conta da vida da gente. Perguntando a um e a outro, principalmente aos porteiros dos prédios vizinhos, se tinham visto uma canária assim e assado, ouvi várias vezes:

- Aquela canária que fica solta dentro de casa?

Como eles sabiam??? Foi assim que descobri que, mesmo numa cidade grande, você quase não tem privacidade... é como se morasse numa vila, com as pessoas tomando conta de sua vida. Seria preciso ter olheiros para ficarem de binóculos ou sei lá o quê para perceberem que uma canária ficava voando solta dentro (dentro!) de um apto, no oitavo andar de um prédio, entre montes de outros prédios da rua! Centenas de janelas! No meu desespero nem notei o detalhe... só me dei conta disso depois de passado o susto.

Depois de andar como uma barata tonta pelo meio da rua, acabei por ouvir sua vozinha, vindo de uma das árvores. Fiquei buscando meu tesouro por entre os ramos e... achei-a! Fiz sinal para o meu porteiro, pois era justamente a árvore em frente ao prédio.

- Fique aqui, olhe onde ela está e não a perca de vista.

Subi, vesti uma calça comprida, pronta para subir na árvore, se preciso. Desci com a gaiola aberta, esperançosa de que ela ouvisse meus apelos, como de costume: quando eu precisava sair para trabalhar, apenas batia na gaiola e, rápida, ela voltava para sua casinha. Comecei a chamá-la, esperançosa de que ela cumprisse o ritual. Juntou gente. Pedi, encarecidamente, que as pessoas se afastassem, pois ela não voaria para baixo, com tantos desconhecidos à volta. Ninguém arredou pé. Eu estava a ponto de escorraçar todo mundo, tal era o meu desespero, quando Neguinha simplesmente voou para o prédio ao lado, entrando em um apto, exatamente no prédio em que eu morara antes de comprar o meu, e exatamente na janela da coluna onde eu morara, anos atrás: coluna 01. Neguinha entrara no primeiro andar. Entrei enlouquecida pelo prédio, perseguida pelo porteiro, também enlouquecido, dizendo que eu não poderia subir. Não poderia o escambau!... eu já estava escada acima, em busca da campainha do 101. Uma velhinha calminha e desavisada abriu a porta (naquele tempo, isso ainda acontecia). Eu poderia ter matado a velhinha de susto, imagine! Entrei porta adentro, sem pedir licença, apenas dizendo que minha canária tinha entrado na casa dela. Ela assustou-se, não conseguia falar, mas apontou para a janela. Lá estava minha jóia, dentro de uma pequena gaiola, com a porta aberta. Em frente a ela, outra gaiola, esta, com porta fechada. Era o pássaro da velha senhora, cujo nome soube depois: D. Marly. Aproximei-me devagar. Tinha medo de que Neguinha, sapeca como era, alçasse vôo novamente. Eu não sabia que o medo também povoava o seu coração. Devagar coloquei minha mão portinha adentro e a peguei no colo. Ela, muito suada, acomodou-se e piou. Só então, chorei. De alívio, de culpa, de desespero, de alegria, de gratidão. Pela primeira vez, olhei a velha senhora que, gentilmente me disse que tinha uma gaiola aberta, com comida, para que passarinhos da rua viessem fazer companhia ao seu. Neguinha, talvez acostumada por mim a voltar para a gaiola, vendo essa com porta aberta e longe do bulício, ali refugiou-se.

Voltei para casa brigando com minha doce amiguinha. Na verdade, brigando comigo. Trazia meu bichinho junto ao peito e atravessei a rua enfrentando os curiosos que diziam que isso só acontecia uma vez em um milhão. Não conheciam a força do amor. Só sabiam de estatísticas. Não disse nada, entrei em casa e liguei correndo para o André. Ele prescreveu os cuidados das primeiras 24 horas, quando ela poderia desidratar, depois de tanto esforço. Havia risco de vida, para um pássaro não acostumado a ficar solto na natureza! Não fui trabalhar por 24 horas, cuidando de minha filhota que, felizmente, restabeleceu-se bem e, logo, estava de novo voando solta e lépida, como se nada tivesse acontecido.

Por todos os natais seguintes, até a morte de D. Marly, nós duas lhe mandávamos um cartão de agradecimento, assinado por mim e pelas patinhas de Neguinha.

Mas voltemos ao episódio do acasalamento, de acordo com as prescrições do veterinário, agora meu grande cúmplice nos cuidados de minha pequena donzela.

Quis levá-la à casa de canários para escolher o seu par. Não sei por que acedi às observações de meu ex-marido, que achou um exagero sair por aí, com uma gaiola nas mãos e ficar em casa de animais perguntando ao seu bichinho de estimação com quem desejaria se casar. Coisas de antigamente e, como eu fazia naquela época, para evitar conflitos, cedi à observação conservadora e comportamento tão tradicional e me mandei para a casa de passarinhos, jurando a minha amiguinha que encontraria o príncipe de seus sonhos. Passei a manhã inteira observando cada gesto, cada canto, cada movimento de uma galeria de machos... não sabia o que fazer, mas acabei me decidindo por um. Comprei o bichinho, gaiola e todo o resto de um enxoval digno de um príncipe. Queria apresentá-lo lindo, garboso e com aparência digna dela.

Entrei em casa e não a apresentei de pronto. Limpei cuidadosamente a gaiola de seu futuro noivo (será que ela o aprovaria?). Enquanto limpava, no entanto, perceberam a presença um do outro. Embora eu tivesse colocado a gaiola em um canto da área de serviço em ângulo que não pudessem se ver, eles se ouviram. Ela piou, ele respondeu e... seguiu-se um silêncio total de ambos os lados. Eu observava tudo, atentamente.

Uma vez acabada a preparação da gaiola, levantei-a e a aproximei o pretendente da gaiola de Neguinha. O que se seguiu é quase indescritível, um quadro magnífico: Neguinha ficou petrificada, imóvel, enquanto o canário soltou um canto, o mais lindo que já ouvi!!! Era nítido o mútuo encantamento. Se eu fosse uma canária, não quereria ouvir nunca mais canário algum! Que canto! Belíssimo, prolongado, apaixonado. Neguinha estática! Ele, estarrecido. Lembro-me perfeitamente que senti meu coração bater mais forte e, ainda agora, consigo trazer aos meus sentidos a memória desse momento inesquecível.

Quantos humanos poderiam se encontrar dessa forma tão amorosamente feliz?

As recomendações de André eram inflexíveis. Aproximar as gaiolas, deixá-las bem próximas até que se acostumassem um ao outro. Só depois seria possível uma aproximação definitiva. Eu segui as prescrições à risca, mas à risca do meu encantamento, é preciso ressaltar. Levei as duas gaiolas para a sala de jantar e abri as portas das duas. A natureza que fizesse o resto. E fez. Neguinha saiu lépida e fagueira. Ficou de fora da gaiola do macho, piando para ele, andando de um lado para outro. Com certeza, ele estava habituado às grades, desde pequeno. Custou muito a colocar suas patinhas para fora. Não fosse a sedução de tão encantadora princesa, provavelmente, estaria na gaiola até hoje. Em pouco tempo, ambos estavam voando pela sala, ele, um pouco tímido no início, esbarrando um pouco aqui e ali. Mas foi questão de uns vinte minutos. Logo começou a tomar conta do ambiente, embora voltasse com freqüência para as grades da gaiola, mesmo que fosse por fora. Acho que ele não encontrava a porta. Eu me conservei à distância por um bom tempo, mas Neguinha veio me desafiar para as brincadeiras de sempre. Brincamos e, pouco depois, ansiosa por saber o que iria acontecer, fiz o de hábito: bati na gaiola de minha amiguinha, chamando-a para casa. Neguinha veio e começou a chamar pelo macho. Titubeante a princípio, ele ficou rodeando a gaiola de sua pequena princesa. Ela vinha até a porta e piava para ele. Acabou entrando e, desde aquele dia, se tornaram um casal inseparável. Nunca vi um ninho tão bem bordado, pois foi exatamente o que ele fez para ela. Usando pedacinhos de pequenos barbantinhos que coloquei espalhados pela sala e alguns fiapos de algodão, logo foi construído um ninho em cima desses que a gente compra em casa de pássaros. Não havia material suficiente da natureza para que eu providenciasse o que gostariam de ter. Então, aproveitaram o artesanato humano e fizeram algo bem acolchoado por cima. Neguinha também saía em busca de material e não poupou meu cabelo. Pousava em minha cabeça e tentava arrancar os fios para o ninho. Não tinha forças para isso, então, eu mesma arrancava um e ficava segurando na minha cabeça. Ela o pegava do meu dedo e voava para o ninho. Eu me sentia a mãe-sogra e futura avó mais feliz da face da terra.

Era inverno e fazia frio. Geralmente, os canários domésticos dormem nos poleiros, com exceção da fêmea, quando choca. Neguinha estava choca, mas seu marido não se contentava em ficar empoleirado. Dormia de mau jeito à beira do ninho, colocando uma de suas asas sobre sua querida amada, talvez para aquecê-la. Dormia em puro desequilíbrio e pleno malabarismo. Era mesmo uma paixão avassaladora. O dia todo era dedicado a alimentar e cuidar de sua pequena amada. Não sei o que houve, mas acho que a dedicação foi extrema. Antes que a primeira ninhada vingasse, ele amanheceu sem vida, no chão da gaiola. Nenhum sinal de ferimento, André não encontrou nenhum motivo aparente para o fato. Ele apenas morreu.

Neguinha entrou em depressão. Abandonou o ninho e os ovos, não queria mais brincar comigo. Piava baixinho e apenas aceitava ficar no meu colo, com meu cafuné. Eu não sabia que canários poderiam ser assim.

Aos poucos, muito aos poucos, Neguinha voltou à vida, mas... nunca mais cantou.

Arranjei-lhe outros machos, mas ela batia em todos! Não conseguiam se aproximar dela de jeito nenhum. Enfim, achei um marido suportável. Por que fiz isso? Porque percebi que ela adoraria ser mãe. Soube disso desde a primeira promessa de ninhada, com o carinho que a via cuidar dos ovinhos. E foi mãe várias vezes. Tão logo se sentia grávida, lá estava ela, arrumando o ninho, toda fofa, toda choca, toda feliz. Neguinha teve muitos filhotes, todos muito queridos e amados. Por ela e pela avó.

Lembro-me, com freqüência, de quanto nos dávamos bem. Neguinha pode ter aprendido muitas coisas comigo, mas, inegavelmente, deu-me várias lições. Por muitas tardes me peguei observando os vôos de minha pequena companheira, vôos despregados e plenos! Neguinha me ensinava, aos poucos, os caminhos da liberdade, uma liberdade interna, intensa, que eu jamais conhecera. Serviu de exemplo para muitos de meus novos caminhos que comecei a empreender na década de 90. Ensinou-me que gaiolas não são refúgios, mas um lar que deve ser amado e feliz. Voltar para ele, deveria ser motivo de repouso e aconchego e não obrigação.

Neguinha é, até hoje, uma grande companheira de vida. Quando morreu, escrevi, impulsivamente, tudo que ela tatuou, na verdade, em meu coração:

Já que deixaste minhas mãos vazias,
voa, por mim, bem alto,
com seu vôo pleno e sem limites,
onde, ainda, não posso alcançar.


Minha amiguinha morreu em abril de 1992. E foi justamente a partir desse ano, que comecei a dar meus primeiros passos em direção ao meu definitivo vôo para a transformação de minha vida.

sábado, 12 de junho de 2010

NEGUINHA



Neguinha fez parte intensa de minha vida. Talvez uma de minhas melhores amigas dos anos 90. Irrepreensível em suas atitudes. Meiga, suave, forte, fiel, colaboradora, vivaz, malandra, brincalhona, sutil, abusada. Tudo isso. Guardo até hoje seu jeito doce de se acomodar no meu colo. Uma filha sem escrúpulos, confiante, garbosa. E... dengosa. Ai de mim, se não lhe desse atenção nessas horas de aconchego! Morou conosco por uns três ou quatro anos e enfeitava a minha vida todos os dias. Todos!

Se não falasse com ela, em primeiro lugar, logo que chegasse em casa, era uma tragédia. E, claro, isso acontecia com freqüência. Neguinha se empertigava toda, emburrada. Se é que bico emburra, pois é preciso esclarecer que era uma canária. Ficava toda “gorda”, com as penas ouriçadas e, quando eu punha minha mão na gaiola, me bicava para valer, como querendo me castigar. Ao contrário, se eu chegava e ia direto conversar com ela, punha comidinha entre meus dedos, como quem dá comidinha aos filhotes.

Geralmente, as pessoas não acreditam muito quando falamos assim de animais de estimação. E eu mesma custo a acreditar no que digo e, vez por outra, revejo os filmes que tenho como lembrança, dignos de publicação! Isso mesmo: uma canária esparramada no meu colo, adormecendo com um cafuné. Momentos de aconchego. Outras vezes, brincava de lutar comigo, duelo de dedo com bico. Ensinava seus filhotes a pousarem em minha cabeça e eu ficava frequentemente enfeitada com esses bichinhos coloridos. É preciso dizer que nunca me sujaram, nem a minhas roupas. Não sei como explicar, mas nunca fizeram suas necessidades em mim, nos muitos anos de convívio.

Levar Neguinha ao veterinário era uma festa. Fechávamos portas e janelas e abríamos a gaiola. Ela voava, primeiro, para minha cabeça para se assenhorar do ambiente. Depois, voava para lá a para cá até pousar perto de um dos funcionários ou mesmo em sua cabeça. Com isso estava querendo dizer que poderia ser pega por este, pois, se outro tentava pegá-la, alçava vôo direto para mim. Se fosse o escolhido, no entanto, ela deixava. Pode um bichinho desses? Pois era assim mesmo.

Incrível contar como Neguinha chegara a minhas mãos. Antes dela, tinha tido um canário que escolhera o meu apto para morar. Provavelmente, fugira de alguma gaiola e, perdido, entrara em nosso apto. Isso se deu em 1986. Entrou, ficou, ganhou gaiola, nome e sobrenome. Eu não podia pensar em um bichinho preso dentro de casa, motivo pelo qual nunca tinha tido nenhum animal de estimação. Mas ele escolhera o recanto e eu me senti sem saída. Então, enquanto estava em casa, levava a gaiola para a sala, fechava portas e janelas e o soltava. Ele voava direto para minha renda portuguesa, o lugar mais alto da sala. Ali, cantava até se desmanchar. Um canto alegre, forte, gentil, inebriante. Eu tentava estudar, mas passava muito tempo contemplando aquele precioso presente da natureza. Planta e pássaro num quadro perfeito. Resolvi chamá-lo de Zugspitze, o monte mais alto da Alemanha, que eu tivera o privilégio de conhecer. Lugar onde vi neve pela primeira vez, em pleno verão. Me entalei de frio, mas valeu a pena, já que três horas depois, usufruía novamente do calor exuberante ao pé da montanha. Zugspitze me impressionara pela neve, pela beleza e pela sensação de ter tocado o cume da Alemanha. Ao fitar aquele canário no topo de minha sala, só pude pensar nesse portentoso nome. Estava batizado. Meu canário se chamaria Zugspitze. Um nome desses, no entanto, merecia um primeiro nome familiar... então, para mim, ele era “Pitico”.

Pitico Zugspitze viveu conosco durante dez dias. Dez dias de encantamento.

Sentada à mesa da sala, às vezes, eu o chamava:

- Pitico, vem cá, vem!

E ele, incrivelmente, saía do topo da "montanha", sobrevoava a minha cabeça, tirando um fino (!) e voltava para seu lugar favorito, entre os verdes ramos da renda portuguesa. Não gostava de ser tocado, mas quase me tocava em seus vôos. No final do passeio, voltava sozinho para a gaiola.

Um acidente, que prefiro não descrever, levou esse incrível bichinho de nosso convívio. Um mês depois, minha belíssima e frondosa renda portuguesa de anos, estava completamente seca. Enlutara como eu ou meu luto a enlutou. O fato é que não resistiu ao convivio com a saudade.

Uma parte de mim morreu, com certeza. Jurei a mim mesma nunca mais ter bichinho algum. Sentia-me responsável pelo acidente. Hoje sei que foi uma responsabilidade que não me pertenceu. Mas não poder evitar, foi cruel. Enfim, melhor não ter mais ninguém. Minha faxineira, no entanto, pensando me consolar, apareceu com outro canário, um mês depois. Esse antecedeu Neguinha. Não tive como recusar a gentileza e acabei ficando com ele. Só que não cantava de jeito nenhum... como não cantava, passei a chamá-lo simplesmente por Piú. Piú só fazia “piú” mesmo... e era tremendamente tímido. Não gostava lá muito de sair da gaiola... era preciso enxotá-lo sempre para que voasse um pouco e exercitasse as asas. Se você não sabe, fazer os pássaros voarem é o melhor preventivo para que não fiquem doentes. Canários, de modo geral, morrem de complicações pulmonares. Pássaros foram feitos para voarem, não para ficarem presos em gaiolas. Então, Piú era enxotado para exercícios diários, mas logo voltava para casa. Era preciso respeitar sua timidez e reserva e fora os exercícios de praxe, eu aceitava esse novo serzinho do jeito que ele era: tímido e sem canto. Um belo dia, no entanto, olhei para Piú e ele tremia mais do que vara verde. Peguei-o com cuidado e ele não parava de tremer. Achei estranho ficar em minha mão, pois ele era muito arisco. E tremia tremia tremia. Apavorada, liguei para André, nosso veterinário, ex-veterinário dos pássaros do Jardim Zoológico e, naquela época, dono de uma clínica de animais. Entendia horrores de pássaros naturalmente e, com certeza, me salvaria.

- Pelo amor aos deuses, André, eu não sei o que está acontecendo! Piú não pára de tremer!!!

Ele começou uma série de perguntas sem fim, mas eu só queria levá-lo lá! De repente, eu disse:

- Não precisa mais, André! Está resolvido!

Breve silêncio do outro lado da linha (provavelmente, ele havia pensando no pior).

- O que houve? perguntou enfim.

Eu estava espantadíssima:

- André, o Piú acaba de botar um ovo... esse bicho é fêmea!

Daí por diante, Piú virou Piúa e, claro, dispensada do canto harmonioso dos machos...

Piúa viveu conosco por quase um ano. Morreu uns quatro meses depois que nos mudamos para a casa do Humaitá. Como a dona, detestou aquela moradia e, se no apto pouco saía da gaiola, lá se negou peremptoriamente. Decididamente, aquela casa fez muito mal às fêmeas da família...

Falecida Piúa, levando mais uma parte de meu coração, mais um motivo para não querer mais ter bicho algum.

E assim foi, por um ou dois anos.

Um dia, por pura e mera curiosidade e por amor à admiração pelas belezas da natureza, ao passar por uma praça, num recanto da Tijuca, vi uma feira de pássaros. Parei o carro e desci. Resolvi passear por ali, encantada com a plumagem e canto de canários de gaiola... acho que era uma feira de expositores. Estava tão distraída que não reparei em um senhor que se aproximou de mim, segurando uma gaiolinha minúscula, dessas que se usa apenas para portar o passarinho de um canto para outro. Pois bem, o senhor se aproximou de mim e perguntou:

- Você gostaria de comprar minha canária?

Fiz questão de não olhar para a gaiola e respondi categórica:

- Não senhor.

O homem insistiu:

-Mas eu preciso vendê-la.

Respondi enfática:

- Sou contra ter animais de estimação. Não quero ter um bicho em casa, mesmo que seja um canário.

O homem não se deu por vencido:

Ela precisa de um bom dono e sei que você cuidaria bem dela. Eu e minha esposa estamos mudando de Estado, não podemos levá-la e tomei como responsabilidade arranjar alguém que sei que cuidará dela como nós cuidamos.

Olhei-o incrédula:

– Como o senhor sabe que eu cuidaria bem dela?

- Meu coração diz isso. Por favor, fique com ela, eu a dou para você!

– Não, obrigada. Eu lhe agradeço a gentileza, mas não quero.

– Mas você não gostaria sequer de ver como ela é?


Eu tinha me recusado a baixar os olhos para vê-la, embora a gaiola fosse comum e deixasse o pássaro à mostra. Ele notara isso, levantou um pouco a gaiola e a aproximou de mim. Tentei desviar o olhar e afastei a gaiola delicadamente com a mão. Senti algo tocar o meu dedo e olhei, instintivamente. Era o bichinho, me dando uma leve bicadinha. Uma canária linda. Linda! Irresistível. O senhor notou meu encantamento a aproveitou a deixa:

- Ela gostou de você!

Acabei comprando a canária, a contragosto, mas amando por dentro. Tínhamos feito um pacto de amizade desde o primeiro segundo. O senhor, sedento por encontrar um novo e confiável dono, no caso, dona, e talvez receoso que eu desistisse da responsabilidade ou, quem sabe, disfarçando a custo a dor da separação, deixou a gaiolinha em minhas mãos e sumiu. Afastou-se apressadamente e desapareceu entre as pessoas. Não me deu tempo sequer de perguntar-lhe o nome do bichinho!!! Olhei-a e, de pronto, sempre soube que se chamava “Neguinha”. Sorri e coloquei o dedo entre as grades. Ela, dengosa, colocou uma das patas sobre ele. Estava feito o pacto. Seríamos inseparáveis até a morte.

Mas a história é mesmo longa... conto o resto na semana que vem!

domingo, 6 de junho de 2010

O POLICIAL


22h30min, chuva fina, voltando da universidade para casa. Cansada mas feliz. Gostava da universidade, gostava dos alunos, dos colegas, do meu trabalho. Vinha pela Presidente Vargas, cuidadosa com os sinais, já que, a essa hora, não se pára nessa avenida de graça. Aliás, nem pagando.

O sinal verde ameaçava abrir e um ônibus a minha direita avançava devagar. Eu, na cola dele, também fui indo, usando-o como escudo. Mal sabia... de repente, pela frente do ônibus um carro ainda aproveitando o verde do sentido transverso. Tempo daria, se não estivesse chovendo. Derrapei direitinho em direção à porta do motorista e não deu outra: bati mesmo, não forte, mas em cheio, amassando tudinho. No meu e no dele.

Desnecessário dizer que estava bem na altura da Central do Brasil, o ponto mais perigoso da avenida, mesmo nos idos tempos da década de 90. O homem louro, alto, encorpado e ágil que saiu do fusquinha não estava para brincadeira. Dirigiu-se a mim como um tornado e disse rápido e autoritário:

- Saia do carro.

Eu, sozinha, ainda muito assustada, só consegui dizer.

- Ok, calma, vamos conversar.

- Vamos conversar aqui fora. Aí dentro, não posso proteger você.


Tirou a carteira de policial civil e já abria a porta do meu carro. Me pegou tão de surpresa que me vi fora, na chuva, enquanto ele tirava o próprio casaco impermeável e o colocava em minhas costas (eu não tinha nenhum agasalho) para me resguardar da chuva, deixando-se, ele próprio, ao relento. Foi então que ele me explicou que preferia me ter a sua mão e não dentro do carro, para qualquer providência, pois aquela área era muito perigosa. Fiquei atônita. Ele nem tocara no fato da batida. Estava, pude constatar, muito mais preocupado com a minha segurança! Isto posto, perguntou-me se eu tinha seguro. Tinha. Ele não. Foi então que pedi desculpas, ele disse que isso acontece e que as providências precisavam ser tomadas.

Na década de 90, por incrível que pareça para você que lê o conto agora e provavelmente nem se lembra, poucas pessoas tinham celular. Nenhum de nós dois tinha e ele usou de sua autoridade para ir parando os carros na rua, até que achou um e chamou pela perícia. Isso tudo, comigo bem a seu lado esquerdo, para lá e para cá, resguardada pelo seu casaco enorme, enquanto ele mesmo pegava chuva, uma chuva fina, mas que não deixava de molhar sua camisa. Ele estava a paisana, fora do horário de serviço.

Enquanto a perícia não vinha, disse-lhe que talvez fosse melhor entrarmos no carro. Não quis de jeito nenhum. Preferia estar comigo sob controle, ali fora, do que numa armadilha, como ele denominou. Então, só nos restava esperar pela perícia, pois não podíamos deixar os carros ali sozinhos. Quando a perícia chegasse, segundo suas instruções, aí, sim, poderíamos buscar um telefone para ligarmos para o meu seguro. Ok. A essa altura, eu não estava ali para discutir nadica de nada.

Assim, só nos restava conversar e soube que ele era casado, tinha 27 anos e estava terminando a faculdade de direito. Naquele momento, estava voltando da aula quando se deu a batida.

A perícia chegou logo e, como eram todos colegas, ele pediu que tomassem conta dos carros, enquanto iríamos em busca de um orelhão. Eu precisava ligar para o seguro e ele para casa. Atravessamos a rua e seguimos em direção à Central do Brasil. Encontrado o orelhão, ele me pediu para ligar para casa da mãe, primeiro, para que esta avisasse a esposa que morava perto. Ele não tinha telefone em casa. Enquanto discava, me colocou entre ele e o aparelho, me cobrindo com seu corpanzil. Eu estava achando aquilo um pouco de exagero, mas não soltei um pio de reclamação. Minha vez de ligar e o fiz com rapidez. Queria sair dali. Seriam precisos dois reboques, pois ambos os carros estavam sem condições de locomoção. No momento em que estava dando minhas instruções, notei que ele começou a falar. Virei-me e quase tive um treco. Ele cobria o meu corpo, me colocando a suas costas e tinha nas mãos uma arma (parecia uma pistola) prateada bem encorpada e dirigia a palavra para três marginais que estavam se aproximando:

- Circulando, circulando, tão pensando que eu sou quem? Só por que sou louro? Não tô prá brinquedo não. Passo fogo. Circulando!

Algo mais ou menos assim, num jargão que mal conheço mas que os marginais, com certeza, identificam logo como sendo da polícia. Deveriam estar desarmados, graças aos deuses olímpicos e saíram logo, dizendo que estava tudo em paz ou coisa do gênero. Meu herói simplesmente se virou para mim e disse que poderia continuar minha ligação com calma. Com calma??? Fiz o mais rápido que pude e voltamos para os policiais da perícia que já estavam de saída para outro chamado.

O primeiro reboque chegou logo e era o dele. Por todo o tempo que seu carro era guinchado, ele sorria e conversava, mas notava que seus olhos estavam sempre atentos, olhando em volta. Com certeza, se sentia em serviço, protegendo uma civil. Não importava se esta civil teria causado danos a ele. Naquele momento, minha segurança, eu sentia, era sua responsabilidade. No meio do papo, senti o quanto aquele policial gostava de seu trabalho, o quanto se orgulhava de ser o que era!

Com o carro no reboque, a parte dele estava completa e ele poderia ir. Mas não. Ficou até que o meu reboque chegasse e me colocou dentro de um taxi rumo a minha casa.

Deixou comigo o número de sua mãe para que eu pudesse me comunicar para as providências de praxe e se foi. Vim para casa meio entontecida. Em nenhum momento, ele se irritou. Se gritou comigo, foi apenas no começo, para me fazer sair do carro. Me cobrira com seu enorme casaco e me protegera o tempo todo. Isso existe.

Na manhã seguinte, liguei para a mãe dele. Engatilhei um rosário de elogios ao seu filho e à belíssima educação que recebera, pois, sem dúvida, haveria uma mãe prestimosa responsável por alguém tão especial. Choramos as duas, eu de gratidão e ela de orgulho maternal. Amigas de cinco minutos. Foi a única vez que falei com ela. Mas o suficiente para dar a essa mãe o testemunho que ela mais precisava: ter seu tesouro reconhecido.

Falamos muito por telefone, o jovem e eu, até que todas as providências tivessem sido tomadas para que ele estivesse bem servido todo o tempo. Soube, por fim, que o que ele mais queria tinha acontecido: perda total. Ele estava torcendo por isso pois estava vendendo o carro e, se fosse apenas consertado, não o venderia tão bem. Do jeito que foi, ao contrário, como o carro já era bem velho, a perda total até que havia lhe dado melhores condições. Fiquei muito feliz com o resultado.

Nunca mais vi Francisco, mas guardo essa noite impecável em minha memória. Outras noites chuvosas me pegaram na Avenida Presidente Vargas. E dezenas de vezes, depois disso, passei pela Central do Brasil à noite. Sempre, sempre me lembro dele, do Francisco, de seu orgulho de ser o que escolhera ser.

Se eu tivesse tido um filho, com certeza, um desses me teria feito muito feliz.